CAIFAZES
Os guerrilheiros da Abolição
A campanha abolicionista ganhou
força na década de 1880. E não ficou restrita apenas aos jornais e ao
Parlamento, como em anos anteriores. A campanha se deslocou para as ruas e se
tornou um movimento popular. A partir do Rio de Janeiro, surgiram, em diversas
províncias, sociedades abolicionistas que agitavam a opinião pública. Esse
processo levou ao surgimento da Confederação Abolicionista, em 1883, reunindo
as sociedades e os movimentos antiescravistas de todo o país. Nesse contexto,
um papel destacado coube a um movimento libertador, surgido em São Paulo,
conhecido como Caifazes. Esse
movimento está intimamente ligado à personalidade de seu criador, Antônio Bento de Souza (1843-1898), filho de rica família
paulistana. Neste ponto é preciso contar um pouco da trajetória dessa figura excêntrica.
Antônio Bento
Era visto como uma figura excêntrica por seus modos e aparência, que atraiam
a atenção dos mais desavisados quando ele passava. As
descrições dele feitas chamam a atenção para as peculiaridades de seu perfil –
como fica claro nestas palavras de Raul Pompéia, escritas no dia de morte de
Antônio Bento: “Magro, estreitado, do
tornozelo à orelha, no longo capote preto como num tubo, chapéu alto, cabeça
inclinada, mãos nos bolsos, quebrando contra contra o peito pela fenda da gola
o rijo cavaignac [cavanhaque, a barba que cresce no queixo dos homens] de arame, o olhar disfarçado nos óculos
azuis como lâmina no estojo, marcha retilínea de passo igual tirado sobre
articulações metálicas...” (Raul Pompéia, “Antonio Bento”, Gazeta de Notícias, 27 de agosto de
1888.)
Antônio
Bento havia nascido na capital da província em 17 de fevereiro de 1843. Formou-se
pela Faculdade de Direito de São Paulo, em 1868, e três anos depois, foi
nomeado juiz municipal em Atibaia, no ano de 1871, aos 29 anos. Pouco depois
passou a exercer também a função de delegado de polícia, na mesma cidade.
Tornou-se uma figura polêmica na cidade, emitindo com frequência despachos
favoráveis aos escravos nas demandas judiciais. Seu argumento era que a
escravidão era ilegal desde que o tráfico negreiro havia sido abolido por duas
leis: uma de 1831, que não foi respeitada, e por outra de 1850. (Tráfico negreiro
era como se chamava o transporte de escravos da África para o Brasil.)
Quando
era preciso arbitrar o preço da alforria de um escravo, ele costumava nomear
abolicionistas, e isso já era o bastante para provocar contra Antônio Bento a
hostilidade das elites locais, geralmente formada por proprietários de escravos
e defensores de seus interesses. Chegou a sofrer um atentado em 1871: no
momento em que fechava a janela de sua casa, às 10 horas da noite,
dispararam-lhe um tiro da rua, ficando toda a carga da espingarda na folha da
janela, “a 4 polegadas acima da sua altura.” Diversas reclamações contra ele
chegaram ao presidente da província. Entre outras reclamações, ele era acusado
de “abuso da autoridade” e de ter pouco “conhecimento das matérias de direito”.
As reclamações chegaram ao Ministério da Justiça e ele acabou demitido em 1875, “a bem
do serviço público”. Afastado de suas funções oficiais, o ex-juiz se entregou
de corpo e alma ao abolicionismo. E se tornaria célebre por isso.
Mudou-se
para a capital da província em 1877, passando a dedicar-se à advocacia e ao
jornalismo. Em 1880, travou relações de amizade com o abolicionista Luís Gama, que viria
a falecer dois anos depois. Diante do túmulo do amigo, fez o juramento de
continuar o combate pelo fim da escravidão. Mas sua opção de luta seria diferente
daquela de Luís Gama: não seguiria pelo caminho da batalha jurídica, mas sim
pelo caminho da ação direta. Nascia ali a ideia de organizar o movimento dos
caifazes.
Os Caifazes
A
historiadora Maria Lucia Montes, em
artigo publicado na Revista de História, nos conta como seria a ação dos
caifazes e o papel que teve Antônio Bento. “Negando o instrumento legal
da alforria como única via de emancipação, o grupo valia-se da força e da
astúcia para atacar diretamente a propriedade escrava. Para isso, contava com
centenas de colaboradores anônimos. Organizados em pequenos grupos de ação nas
cidades ou disfarçados de caixeiros-viajantes no interior – os chamados
“cometas” –, promoviam fugas em massa das fazendas, roubavam escravos em casas
de família e realizavam mirabolantes resgates em estações ferroviárias. Depois
ajudavam os fugitivos a chegar a refúgios seguros, como o Quilombo do
Jabaquara, organizado e mantido por abolicionistas santistas a partir de 1882,
e por onde se calcula que passaram cerca de 10 mil escravos fugidos.
senhor de proteger seu escravo da liberdade com um guarda-chuva. |
“Os mais
abastados bancavam os deslocamentos dos caifazes e “cometas”, a fuga e o
refúgio aos escravos foragidos e até as custas dos processos para conseguir sua
libertação ou a compra das cartas de alforria. Tratavam também de conseguir
para os escravos resgatados colocações como trabalhadores livres em fazendas de
café de outras regiões, no porto ou em pequenos serviços urbanos, como
carregadores, carroceiros, pedreiros ou vendedores.
“Por sua
vez, a arraia miúda do povo, organizada em torno das irmandades negras, dava ao
movimento um apoio invisível, mas vital. Era o caso dos modestos empregados das
estradas de ferro – ironicamente, a última novidade destinada a incrementar a
exportação do café. Graças àqueles caifazes, os trens se tornaram o principal
meio para as fugas de escravos, que eram conduzidos clandestinamente até a
capital ou o porto de Santos. Cocheiros e carroceiros das estações eram outros
a favorecer escapadas espetaculares, em resgates feitos em plena luz do dia.
Houve mesmo um caso em que se juntaram a cerca de 500 populares na astuciosa
armação de um conflito de rua, onde destemidos capoeiras desbarataram um grupo
de policiais e capitães do mato para impedir que dez escravos por eles
recapturados, depois de chegarem a Santos escondidos em tonéis de vinho, fossem
embarcados no trem que iria conduzi-los de volta a fazendas do interior.
“Em Santos,
gente do povo e até imigrantes se encarregavam de cuidar das necessidades
cotidianas da população flutuante de fugitivos do Quilombo do Jabaquara. Era o
caso da negra Brandina, uma dona de pensão, e seu amásio, Santos “Garrafão”,
português empregado numa casa de comércio de um influente abolicionista.
Juntos, Brandina e o português mantinham um pequeno quilombo na Ponta da Praia
e forneciam alimentos e cuidados de saúde na Santa Casa de Misericórdia para os
refugiados no Jabaquara. “Garrafão” era um dos principais articuladores entre
os caifazes de Antônio Bento em São Paulo e os abolicionistas santistas.
"Fuga de escravos", tela de François Auguste Biard , de1859. |
“Ao
confiscar a mão de obra escrava e inserir os recém-libertos no mercado de
trabalho assalariado, Antônio Bento e seus caifazes conseguiram desarticular as
bases da economia cafeeira paulista na década de 1880. Suas ações refletiam um
sentimento que cada vez mais se generalizava entre todas as classes sociais: o
repúdio à escravidão. Quando as próprias forças de segurança começaram a se
recusar a perseguir os escravos fugidos tal o seu número, não era difícil
antever a proximidade da abolição. Muito mais que uma concessão do poder
imperial, ela foi, em São Paulo, uma conquista do povo e dos próprios escravos.”
Bibliografia:
AZEVEDO, Elciene.
MONTES,
Maria Lucia.
Luiz Gama e Antônio Bento já se conheciam desde 1873 - as lojas maçônicas América e Piratininga ficavam no mesmo prédio - o que torna impossível a teoria de ambos se conhecerem em 1880.
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