quarta-feira, 25 de abril de 2018


CONHECIMENTO  TRADICIONAL: CONCEITOS  E  DEFINIÇÕES
                     Tony Marcos Porto Braga1



INTRODUÇÃO
A região amazônica está sendo atualmente explorada pela imposição de vários sistemas de utilização desenvolvidos em outros locais e frequentemente inapropriados às suas características. Diante disso, surgem alguns questionamentos que podem nos levar a uma melhor clareza e reflexão do tema em questão. Morán (1994) afirma que nos últimos anos do século XX já vivíamos com uma grande preocupação: será que a imensa floresta amazônica sobreviverá às recentes depredações?
Poderá a medicina e a farmacologia descobrir na floresta novas substâncias químicas para a cura de doenças até agora incuráveis? Serão as populações indígenas arrasadas e dizimadas cultural e biologicamente? Diante desses questionamentos, chegamos à outra questão proposta por Albuquerque (2006): podem os cientistas, hoje, trabalhar a serviço da terra, se estamos mergulhados em um referencial etnocêntrico? O mesmo autor afirma que esse etnocentrismo2 não nos permite reconhecer que outras culturas3 (ou pessoas), diferentes da nossa, podem possuir um sistema de conhecimento igualmente válido, o qual possa responder, orientar e organizar as relações dessas culturas com o seu ambiente. Mais do que isso: trata-se de indagar como esse corpo de conhecimento pode interferir na nossa própria percepção de realidade.
Sem sombra de dúvida é preciso discutir essas questões, sobretudo as questões ambientais decorrentes das atividades humanas sobre o meio ambiente, pois estão entre os temas modernos que exigem uma abordagem interdisciplinar. Discutir esses conceitos em um período de nossa história científica caracterizado pela intolerância e pelas ideias de superioridade étnica foi e continua sendo uma tarefa árdua.
Diegues (2001) afirma que os especialistas de várias disciplinas se veem forçados a cooperar entre si em razão do surgimento de problemas complexos inerentes à vida social moderna, como demonstram estudos sobre o desenvolvimento, a paz e o meio ambiente. No entanto, essa cooperação entre as várias disciplinas do campo científico pode tornar-se falaciosa (4) quando ocorre em situações como as existentes na elaboração da maioria dos Estudos de Impactos Ambientais (EIA). Em grande parte desses estudos, existe uma “pseudo-interdisciplinaridade”, na medida em que seu objetivo está pré-determinado: a aprovação de projetos de desenvolvimento que apresentam impactos sobre o meio ambiente. O mesmo autor esclarece que, no geral, trata-se de uma justaposição de diagnósticos realizados por técnicos ou pesquisadores de várias disciplinas nas áreas de biologia, geologia, geomorfologia, geografia, sociologia, economia e outras, sem que haja a menor interação entre eles. O relatório final consiste na justaposição de dados por um chefe de equipe que conhece de antemão qual deva ser a conclusão final.
O estudo dos impactos da ação humana sobre o meio ambiente se localiza, no entanto, na interface entre as diversas ciências naturais e sociais, demandando a contribuição e a ação das diversas disciplinas e dos diversos tipos de conhecimentos. Dito de outra forma, na atual questão da conservação da biodiversidade é preciso a participação ativa e o engajamento de diferentes profissionais em um esforço articulado envolvendo as populações locais (e seus conhecimentos tradicionais) nesse empreendimento. Diversos estudos já documentaram que populações locais podem apresentar um conhecimento refinado do ambiente em que vivem. Dessa forma, excluí-las de processos que envolvam garantir a conservação da biodiversidade existente parece ser uma fórmula ineficiente e danosa. Mas não se confunda essa participação com educação ambiental, a ideia de que “essas pessoas precisam ser instruídas sobre as questões ambientais”. Não se trata aqui de “educar” essas populações, mas de estabelecer parcerias que possam assegurar a sua sobrevivência biológica e cultural e que podem subsidiar alternativas viáveis e politicamente sérias de desenvolvimento sustentável (Diegues, 2001; Albuquerque, 2006).

1 CONHECIMENTO TRADICIONAL: HISTÓRIA E A RELAÇÃO DO HOMEM COM O AMBIENTE
Internacionalmente, o termo “tradicional” é utilizado como adjetivo, referindo-se a tipo de manejo, tipo de sociedade, forma de utilização de recursos, de território, modo de vida, grupos específicos e tipos culturais. Diegues & Arruda (2001) definem conhecimento tradicional como o conjunto de saberes e saber-fazer a respeito do mundo natural e sobrenatural, transmitido oralmente, de geração em geração.
Precisamos, portanto, conhecer os caminhos percorridos historicamente por diferentes gerações e suas ideias próprias sobre suas relações com o meio ambiente, com o mundo natural. Este conhecimento, além disso, se faz necessário para entendermos as polêmicas causadas por imprecisões de definição e pela utilização de certos conceitos (muitos deles ecológicos) por áreas como sociologia, antropologia e outras. Begossi (1993), ao estudar a “relação do homem com o ambiente”, inclui tantos outros fatores (como econômicos, sociais, psicológicos), que transcende a ecologia.
Sociedades relativamente autônomas, como, por exemplo, algumas populações isoladas da Amazônia, terão relações íntimas e de profunda familiaridade com o meio ambiente do qual dependem para suprir suas necessidades, enquanto uma sociedade na qual as comunidades são interdependentes e especializadas, como, por exemplo, as urbanas, dependerão tanto ou mais das suas relações institucionais com outras comunidades do que do ambiente físico para sua sobrevivência.
Portanto, quando falamos das relações entre o homem e o ambiente, temos que observar com precisão o grau de relacionamento entre a população humana e seu ambiente. Em alguns casos, o ambiente com o qual interage a população é um ambiente físico (a natureza), enquanto em outros casos tal ambiente serão principalmente as instituições sociais (isto é, a sociedade). Contudo, com a possível exceção dos bandos primitivos da mais remota pré-história, as comunidades humanas dependem da mediação social tanto ou mais do que dependem do ambiente físico. Portanto, as relações ambientais do Homo sapiens só podem ser compreendidas se nessa reflexão incluímos o papel da cultura e das instituições sociais que, por milhares de anos, intervêm entre nós e o ambiente.
A diversidade de interações que as culturas humanas têm com o ambiente vem sendo tema de trabalhos com enfoques variados. Essas relações de conhecimento e ação entre populações e seu ambiente podem ser estudadas tanto do ponto de vista das ciências biológicas como das ciências sociais. Para se ter uma ideia, vejamos a interação da Ecologia com várias outras disciplinas, a qual possibilitou, de forma extraordinariamente rica, analisar o comportamento humano em interação com a natureza, representando o que se denomina Ecologia Humana, como é bem exposto por Saldanha (2005) (5).
A história das teorias homem/natureza no mundo ocidental tem criado certos temas persistentes e contraditórios.
É possível observar a influência de tais temas nas contradições e nas atitudes relativas ao ambiente natural da Amazônia. De um lado, há a tendência a considerar a Amazônia um “Inferno Verde”, uma região na qual só populações com técnicas de subsistência simples podem sobreviver, devido às limitações do ambiente quente e úmido, de solos pobres e chuvas torrenciais, como afirmou Betty Meggers (1977). Morán (1994) afirma que esse enfoque justificou a falta de atuação da sociedade brasileira na Amazônia, bem como a falta de “progresso” por parte das comunidades no interior da região. De outro lado, temos a tradição intelectual que vê a Amazônia como o “paraíso”, o “celeiro e o pulmão do mundo” ou o “El Dorado”.
Morán (1994) faz uma revisão das teorias sobre a interação homem/natureza formuladas desde a Antiguidade e afirma que as mesmas refletem aspirações de grupos dominantes nas sociedades hierarquizadas em que foram apresentadas. Essas teorias, que serão mencionadas mais adiante, tiveram alguns de seus elementos constituintes perpetuados por culturas tradicionais em diversas partes do mundo. Antes de abordarmos o tema, porém, vale a pena apontar quais eram as relações dos primeiros habitantes da América com os “descobridores”, cotejando essas informações com as teorias que serão expostas.
Os livros de História têm registrado que a América foi descoberta por Cristóvão Colombo no dia 12 de outubro de 1492, quando aportou na ilha que denominou de São Salvador (hoje Watling), no arquipélago das Bahamas, e que o Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral no dia 22 de abril de 1500.
Tais registros, entretanto, são frutos do etnocentrismo europeu, pois os “descobridores”, ao encontrarem a América, ou melhor, o Novo Mundo, habitado por populações em graus diferentes de desenvolvimento cultural, às quais chamaram de índios (porque Colombo pensou ter chegado às Índias), viram nelas seres inferiores, exóticos, que precisavam ser “civilizados”, colonizados e cristianizados. Por outro lado, as pesquisas arqueológicas, botânicas, genéticas, linguísticas e outras têm levado a evidências que demonstram ser o homem americano originário da Ásia. Assim, se ele não é autóctone, foi, portanto o descobridor real desse Novo Mundo que os europeus revelaram ao Velho Mundo. Eram, provavelmente, grupos de caçadores, os quais possuíam maneiras peculiares de pensar, agir e sentir, maneiras estas que representavam a sua adaptação diante da vida. Eles, provavelmente chegaram ao novo mundo com a finalidade de sobreviver e aí viveram sem a preocupação de colonizar seus semelhantes, se quisermos contrastar seu modo de vida com o processo de colonização que se iniciou com a chegada dos espanhóis e portugueses (Oliveira, 1983, p. 144).
As mais antigas teorias conhecidas sobre as interações homem/natureza foram produzidas sob o estímulo do contato entre a civilização grega e outras culturas. Os gregos no período pré-helênico penetraram no Egeu como figuras dominantes do Mediterrâneo, criando colônias desde o Norte da África até o Mar Negro. O conhecimento tradicional acumulado pelos babilônios, persas, egípcios e hindus encontrou um ambiente acolhedor na Grécia, e ali novos elementos foram incorporados no dia-a-dia da população e também em diversas teorias. A “teoria dos humores”, que chegou a um alto grau de elaboração na Índia, entre as culturas védicas, sofreu desenvolvimento ainda maior na Grécia. Empédocles (504-443 a.C.) considerou o mundo como composto por quatro elementos: fogo, terra, água e ar. A união desses elementos criava tudo o que é vivo, enquanto que a falta de harmonia entre os elementos seria responsável pela doença e morte. As teorias de Empédocles eram dinâmicas, destacando equilíbrio e mudança como as duas forças responsáveis pelo fluxo dos humores. De acordo com essas teorias, se uma mudança ocorria, o sangue mudava em espessura e o sistema tentava voltar ao equilíbrio pelo uso de substâncias que diluíam ou esfriavam o sangue. As teorias de Empédocles influenciaram o pensamento cientifico por vários séculos e suas ideias sobre equilíbrio dinâmico enquadravam-se bem com ideias contemporâneas sobre o processo adaptativo.
O pensamento biológico dos gregos foi ainda mais influente através da obra de Hipócrates. As teorias de Hipócrates incorporaram os quatro elementos de Empédocles adicionando quatro qualidades que estariam presente em todas as coisas: o frio, o calor, o seco e o molhado. Junto aos quatro humores (isto é, sangue, fleuma, bile amarela e bile negra), esses fatores (agora se tornam oito) serviam para diagnosticar todos os estados de saúde, doença e personalidade. O sangue representava um humor que era quente e úmido; a fleuma um humor frio e úmido; a bile amarela um humor quente e seco, e a bile negra um humor frio e seco. Os órgãos do corpo produziam humores que tinham que se manter em equilíbrio de forma a evitar doenças. Da produção equilibrada dos humores vinha saúde, bom caráter e inteligência. Do desequilíbrio resultavam a doença e a morte. Essas ideias persistem até hoje na medicina popular do Brasil, e em partes da América Latina, para onde vieram trazidas pelos espanhóis e portugueses.
Hipócrates é responsável pelo começo de uma tradição que continuou até o século XX, que tentava explicar as diferenças entre as etnias a partir de diferenças climáticas. Por exemplo, Hipócrates considerava que os asiáticos eram estoicos em consequência do clima estável que levava a uma atitude tranquila e serena.
As teorias gregas surgiram tanto de observações do homem e da natureza como da herança de tradições antigas.
De acordo com tais teorias, climas quentes e secos reduziam a vitalidade, populações de climas mais brandos tinham uma natureza apaixonada, e povos de climas frios possuíam fortaleza física. Implícito nessas teorias estava o reconhecimento de que a posição estratégica dos gregos no Mediterrâneo em grande parte era responsável pelo seu poderio. Por sua localização, os gregos consideravam-se o povo mais bem governado e com um equilíbrio que lhes dava o direito de serem os dirigentes de outras civilizações.
A ascendência de Roma deu continuidade à tradição que apresentava a posição geoclimática como justificativa para exercer o domínio político de uma área. O autor romano Vitrício associou o sucesso romano à localização ideal de Roma e o perfeito equilíbrio dos romanos graças ao efeito salutar das latitudes médias. Para ele, os povos das latitudes nórdicas eram fisicamente capazes e até corajosos, mas sem inteligência.
Enquanto que os povos das regiões quentes eram capazes de aguentar febre e sofrimentos, porém faltavam-lhes sangue e coragem. Os romanos, ao contrário, achavam-se numa posição intermediária em relação aos extremos climáticos, possuindo tanto coragem como inteligência.
O fim da dominação romana trouxe uma mudança no epicentro do “perfeito ambiente” – das áreas mornas do Mediterrâneo para as áreas mais frias da Europa. O domínio passou para regiões ocupadas por povos considerados anteriormente corajosos, mas de pouca inteligência e com baixa capacidade de organização política. Da mesma maneira, os árabes, que foram a civilização dominante por vários séculos após a queda do império romano, acharam que seu controle era consequência das condições geográficas.
Uma das grandes tradições nos estudos das relações homem/ambiente é tentar desenvolver classificações tipológicas que os relacionem. Uma das mais antigas contribuições ao desenvolvimento de tipologias vem do grande historiador e geógrafo árabe Ibn Khaldum. Ele dividiu o mundo e seus habitantes em zonas climáticas e tentou analisar a contribuição do clima sobre aspectos sócio-culturais. Khaldum considerou os habitantes de climas frios lacônicos e com falta de vivacidade, em contraste com habitantes de climas quentes que eram apaixonados e dados a prazeres físicos intensos. Povos das latitudes médias e temperadas reuniam em suas personalidades o melhor das duas zonas, ou seja, vivacidade e inteligência.
Como seu próprio país não ficava dentro de nenhuma dessas zonas, Khaldum argumentou que uma corrente fria ao largo da costa tinha um efeito amenizador sobre o clima e que na realidade seu país possuía um clima ideal e temperado.
Os estudiosos árabes preservaram, traduziram e adicionaram suas ideias aos clássicos greco-romanos. Assim, quando esses textos recomeçaram a ser lidos na Europa, continham comentários dos intelectuais árabes e judeus de Córdoba, Sevilha, Toledo, Bagdá e Damasco. Santo Tomás de Aquino, por exemplo, aceitou as ideias de Aristóteles e de outros sobre a influência do clima nas civilizações, acrescentando que uma área urbana deve ser bem ventilada e drenada, além de possuir fontes de água. Assim, Santo Tomás de Aquino fez uma importante conexão entre saúde de uma população e seu padrão de desenvolvimento. Como Hipócrates, Aquino observou que os desequilíbrios ecológicos traduzem-se em problemas sanitários, uma vez que a saúde resulta de um equilíbrio homeostático entre um organismo e o meio físico e biótico em que normalmente vive.
O século XVIII foi produtivo no que se refere às tipologias sobre a evolução humana. Turgot, na sua História Universal (1750), fundamentou-se em bases ecológicas: sociedades de caçadores desenvolveram uma organização social no nível de bandos em função da necessidade de se deslocarem para seguir a caça, resultando numa forma de organização dispersa que contribuiu para a difusão dos povos pelo planeta. Observou também que a presença de animais facilmente domesticados conduzia à formação de sociedades pastoris e à concentração populacional, aumentando a possibilidade do surgimento de civilizações. De acordo com Turgot, quanto maior a abundância de recursos naturais, maior seria a população e mais provável o surgimento de sistemas políticos estáveis.
As ideias evolucionistas são muito antigas, mas no século XIX começaram a receber mais atenção. Podemos considerar Lamarck o primeiro grande evolucionista. Ele sugeriu uma teoria baseada no gradualismo evolutivo por meio de herança de características adquiridas. Essencialmente, Lamarck propunha modificações físicas para adaptar-se às mudanças ambientais.
Até este ponto, Lamarck estava certo. Ele errou ao acrescentar que tais mudanças que ocorrem na vida do indivíduo poderiam ser transmitidas às gerações seguintes. Como sabemos hoje, as teorias de Lamarck aplicam-se ao processo de adaptação e evolução cultural, mas não ao processo de evolução das espécies.
O caminho para uma síntese de teoria evolutiva foi facilitada pelas contribuições da geologia. Lyell, em sua obra Princípios de Geologia (1830), utilizou, pela primeira vez, registros geológicos com o objetivo de documentar mudanças evolutivas de plantas e animais, relacionando as entidades biológicas extintas com as ainda vivas. Lyell enfatizou o papel das mudanças ambientais e temporais sobre as formas das comunidades bióticas. Darwin leu a obra de Lyell na sua famosa viagem ao redor do mundo e reconheceu que sua leitura alterou sua percepção sobre os processos de evolução biológica. Lamarck e Lyell também influenciaram Herbert Spencer que, por sua vez influenciou Darwin. Spencer enfatizou o papel da competição entre indivíduos, em vez do papel da adaptação populacional. Spencer foi o primeiro a utilizar o termo “a luta pela sobrevivência”, tentando explicar como o progresso resulta da competição. Infelizmente, suas teorias foram utilizadas na construção de teorias racistas na Europa do século XIX, justificando o colonialismo europeu na África e na Ásia, assim como o comportamento dos colonizadores. A luta pela sobrevivência como justificação das exigências do progresso reinou suprema tanto nas ciências biológicas como nas ciências sociais.
A posição de Charles Darwin nesse cenário representava uma sutil e importante diferença. De acordo com o pensamento darwiniano, a evolução é um processo oportunístico e imprevisível que não necessariamente avança para um ponto melhor, para o progresso, ao contrário do que insistia a maioria dos intelectuais da sua época. Em oposição a Lamarck, sua noção de competição não enfocava o sucesso do indivíduo, mas o sucesso reprodutivo da espécie. Contrastando com os argumentos contendo preconceitos raciais de seus contemporâneos, Darwin apresentou dados biológicos detalhados para apoiar suas ideias sobre a “seleção natural” na obra A origem das espécies (1859). As teorias de Darwin foram simultaneamente sugeridas por Alfred R. Wallace. Darwin enfatizava que a variação genética resulta de processos aleatórios e não-direcionais, sem objetivos particulares. As forças seletivas atuam sobre essa variabilidade e promovem o sucesso reprodutivo diferencial.
A teoria de Darwin não tem o atrativo da teoria de Lamarck, porque apresenta um universo sem significado algum.
Outros cientistas e filósofos propuseram ideias até hoje influentes nesta época fértil do evolucionismo. Karl Marx propôs um esquema evolutivo baseado na luta, não entre as espécies, mas entre classes sociais. Marx sugeriu uma metodologia para estudar o processo de evolução social, baseada na compreensão das formas de organização para a produção, das alternativas econômicas da população, da competição entre grupos sociais pelo controle dos meios de produção e da relação entre trabalho, produção e consumo. Tal como Darwin, Marx via o processo evolutivo como fora do controle dos indivíduos. Para ele, mudanças nas relações de classe, mudanças na tecnologia de produção e lutas de classe eram resultado de uma dinâmica fora de controle dos participantes.
Outra tendência do fim do século XIX que visava compreender a variabilidade humana utilizou um método simples de análise: o agrupamento de artefatos e costumes por localidade geográfica. Geógrafos e mais tarde etnólogos usaram tal metodologia para explicar a presença ou a ausência de artefatos e costumes. O mais influente estudioso da Escola de Antropogeografia foi Friedrich Ratzel. Suas ideias foram influentes no desenvolvimento da Escola Difusionista Alemã e nas várias formas de determinismo ecológico do século XX.
Ratzel concebia o ambiente, em vez da invenção particular ou do esforço do indivíduo, como a causa principal da diversidade e da distribuição das culturas. Para ele a sociedade respondia à natureza do mesmo modo que um animal a seu meio. Sua tese enfatizava o papel das migrações dos povos na difusão cultural e reintroduziu o conceito da posição “geoclimática” no surgimento de sistemas políticos. De acordo com essa perspectiva, montanhas promoviam isolamento e estabilidade cultural, enquanto que áreas niveladas favoreciam migrações e instabilidade cultural.
Verifica-se que o determinismo cultural coexistiu com um renascente determinismo ecológico no fim do século XIX e começo do século XX. A maioria dos cientistas nesta época aderiu a uma ou outra das formas de determinismo anteriormente descritas, especialmente em suas versões racistas.
Em tal cenário surgiu Frans Boas, participando primeiramente da linha antropogeográfica, para então rejeitá-la posteriormente pela falta de evidência científica apresentada. Boas e seus seguidores introduziram novos e rígidos padrões de pesquisa etnográfica mantidos até os dias atuais. Em sua primeira obra, The Central Eskimo (publicada originalmente em 1888), Boas (1964) apresentou um enfoque das inter-relações entre o ambiente físico e fatores culturais que lembra a estratégia de Ratzel. Já no final dessa obra, porém, Boas passou a duvidar da sua análise antropogeográfica e do papel do ambiente sobre a cultura esquimó. A partir de então, não deu mais peso ao papel do ambiente, enfatizando em seu lugar o papel da história no desenvolvimento cultural. Para Boas, o ambiente não é um fator determinante, mas um fator que o homem utiliza de acordo com sua herança cultural. A cultura seleciona o que será utilizado do ambiente. Para Boas, o comportamento humano só é compreensível no contexto cultural, um enfoque que substitui o determinismo ecológico pelo determinismo cultural.
Goldenweisser (1937), um seguidor de Boas, interpretava que o homem criava seu ambiente e não era determinado por ele – um argumento que será mais tarde utilizado por Ferdon (1959) na sua resposta crítica a Meggers sobre as limitações ambientais ao desenvolvimento cultural (1954). Boas e seus estudantes enfatizaram que fatores históricos particulares eram tão significativos na explicação de mudanças sociais como o eram os fatores geográficos e ambientais. Lowie, por exemplo, na sua obra Cultura e Etnologia (1917) tentou demonstrar que o determinismo geográfico da época estava errado, mostrando que nas mesmas condições geográficas se desenvolvem culturas muito diferentes. Lowie demonstrou que a presença de recursos naturais não predispõe uma população a utilizá-los e que fatores históricos, geralmente imprevisíveis, são os que explicam o uso particular dos recursos pelas populações.

2. CONHECIMENTO TRADICIONAL E O SURGIMENTO DA ETNOCIÊNCIA
Nas suas origens, a Etnociência e as etno-x (onde x é uma disciplina da academia) enfatizaram em suas pesquisas os aspectos linguísticos e taxonômicos, relegando a um segundo plano a diversidade e a dinâmica das relações entre “ser humano de uma dada cultura” e “natureza”. O termo “ethnobotany” foi um dos primeiros que surgiram na literatura cientifica, associando o prefixo “etno” a uma das subáreas da biologia, tendo sido cunhado por Harshberger (1896) para trabalhos que tinham como objetivo o estudo do uso de plantas por populações aborígenes. A partir da segunda metade do século XX, muitas pesquisas passaram a utilizar explicitamente termos precedidos pelo prefixo “etno”: Etnobotânica, Etnoecologia, Etnoictiologia, entre outros. O termo Etnociência aparece pela primeira vez no livro Outline of cultural materials de autoria do pesquisador Murdock e colaboradores, editado em 1950.
Em 1954, Kenneth Pike cunhou os termos “êmico” e “ético” para explicar as aproximações que existiam entre idioma e cultura, com a intenção de estabelecer um parâmetro mais resumido às explicações sobre o entendimento que o outro (entrevistado, informante ou mesmo observado) possui a respeito do mundo exterior a partir de sua formulação própria, independentemente dos dados científicos e da provação científica. Para tal explicação Kenneth Pike usou o termo “êmico”, referindo-se ao que o pesquisador obtinha do entendimento do seu pesquisado.
Quanto à abordagem “ética”, ela se compõe de categorias e valores “do observador”, pré-estabelecidos pela ciência, utilizados na descrição e análise por ele realizadas, os quais não correspondem, necessariamente, àqueles que vigoram na sociedade ou cultura em estudo. Enquanto a abordagem ética é conceitualmente lapidada antes do conhecimento, podendo ser considerada a mais convencional, que o pesquisador conhece previamente, independentemente do universo da etnia que será estudada, a abordagem “êmica” baseia-se no entendimento dos valores daquela cultura em especial no “desarmamento” do pesquisador, permitindo-se à abertura para novos conceitos, os quais, para a sua existência, não dependem dos conceitos científicos.
D’Olne Campos (2002) faz um interessante comentário quanto o uso do “ético” e “êmico”, termos inspirados em fonética e fonêmica. Nos primórdios da Sociolinguística, alguns pesquisadores acreditavam que, apenas a partir de transcrições fonéticas, poder-se-ia estudar uma língua estranha. Como em geral, isso se referia a sociedades ágrafas, nelas, por mais forte razão, muito se perderia da entonação (fonêmica) no contexto da fala. Ético e êmico são usados em alguns casos como o que anglo-saxônicos chamam, por um lado, de situação de observador “outsider” (de fora), a partir e com as “ferramentas” da sua ciência, vendo o outro como um “insider” (de dentro), emicamente.
Pesquisas com populações tradicionais revelaram modelos cognitivos complexos, tais como sistemas de classificações de animais e plantas, estratégias de coleta/captura de espécimes, medicina e farmacologia, astronomia, além de uso e manejo de recursos. Esses trabalhos ajudaram a revelar a existência de conhecimentos sofisticados, sob domínio intelectual de populações tradicionais. É permissível assumir, portanto, que foi durante o século XX, marcado pela emergência de novos paradigmas (principalmente o da interdisciplinaridade) e do abandono de velhos preconceitos (principalmente o do etnocentrismo), que a Etnociência se consolidou. Segundo Marques (2002), o que hoje chamamos de Etnociência já emergiu no panorama científico não como um conjunto de disciplinas, mas sim como um campo interdisciplinar, de cruzamentos de saberes, que geraram novos campos. Estes saberes foram oriundos do diálogo entre as ciências naturais e as ciências humanas e sociais.
A Etnociência trata do estudo das percepções culturais do mundo e de como os indivíduos organizam essas percepções por meio de linguagem. Esta ciência, que parte da linguística para estudar o conhecimento das populações humanas sobre os processos naturais, tentando descobrir a lógica subjacente ao conhecimento humano do mundo natural, as taxonomias e classificações totalizadoras, está entre os enfoques que têm contribuído para os estudos das relações entre o homem e o meio ambiente. Os resultados desses estudos, que envolvem o conhecimento tradicional, podem facilitar a concepção de novos modelos de sustentabilidade do uso e manejo dos recursos naturais.
Segundo Berlin (1992), há três áreas básicas de estudo na etnociência: a da classificação, que se preocupa em estudar os princípios de organização de organismos em classes; a da nomenclatura, em que são estudados os princípios linguísticos para nomear as classes folk; e a da identificação, que estuda a relação entre os caracteres dos organismos e a sua classificação.
A grande atração que a Etnociência exerce vem de sua promessa de encontrar as representações paradigmáticas precisas e altamente elucidativas dos fenômenos culturais que estariam associados às descrições linguísticas da fonologia e da gramática.
Costa Neto et al. (2002) discorrem sobre as dificuldades encontradas para que se realize um estudo nas etnociências.
Afirmam que há pelo menos três dificuldades quando se pretende realizar um estudo “etno” e que elas são intrínsecas e extrínsecas ao pesquisador. A primeira se apresenta como um preconceito da ciência ocidental que, de um modo geral, cria diversas barreiras para aceitar as etnociências. Tradicionalmente, os cientistas foram treinados para se considerarem os únicos capazes de descrever o universo e de dar a ele um sentido lógico.
Essa é a perspectiva que aponta para que a ciência ocidental julgue qualquer hipótese ou interpretação elaboradas fora de suas próprias regras de preceitos, as quais fujam de sua estrita objetividade, como muito duvidosas, e para que estas sejam quase que totalmente banidas dos meios acadêmicos.
A segunda dificuldade, notadamente importante, é a questão que trata da excessiva especialização dos biólogos e cientistas sociais. Normalmente os cientistas sociais não recebem o devido treinamento que os capacite para trabalhar com informações das ciências biológicas. O inverso também é constatado, sendo que muitos biólogos consideram os dados das ciências sociais como de pouca ou nenhuma importância para os seus estudos e raramente levam em consideração os fatores culturais, entre os quais os costumes, a cosmogonia e a cosmologia de uma dada comunidade, não se preocupando com dados históricos – ou mesmo atuais –, não estritamente relacionados à biologia, dos sistemas ecológicos.
A terceira dificuldade diz respeito ao etnocentrismo, que, como se sabe, conceitualmente é uma visão de mundo em que um grupo se considera o centro de todos os outros e em que a tendência é considerar as categorias, normas e valores da própria sociedade, neste caso da ciência ocidental, os únicos parâmetros verdadeiros e testáveis, enquanto os outros não são verdadeiros e, tradicionalmente, são considerados errados, falsos ou de menor valor.
Essa dicotomia dos saberes leva a caminhos conflituosos.
Muitas vezes as comunidades dotadas de um saber-fazer que as acompanha por várias gerações dificilmente são levadas em conta quando se planejam formas de uso sustentáveis de recursos naturais. Configura-se, nesse caso, o confronto de dois saberes: o tradicional e o científico-moderno. A esse respeito, Diegues (2001) afirma que, de um lado, está o saber acumulado sobre os ciclos naturais, a reprodução e migração da fauna, a influência da lua nas atividades de corte de madeira e de pesca ou sobre sistemas de manejo e, de outro lado, está o conhecimento científico, que não apenas desconhece, como também, na maioria das vezes, despreza o conhecimento tradicional acumulado.

3. CONHECIMENTO TRADICIONAL E CONHECIMENTO CIENTÍFICO: O DIÁLOGO DOS SABERES
Muitos pesquisadores em manejo de recursos naturais têm discutido as razões para tantos exemplos de insucesso no manejo de recursos naturais ao redor do mundo. A crença de que os especialistas têm toda a informação necessária para saber como utilizar de forma sustentável os recursos está relacionada ao etnocentrismo intrínseco a algumas ciências, das quais seus respectivos especialistas acreditam ter as habilidades necessárias a uma autosuficiência para manejar os recursos naturais, mantendo-se céticos com relação a algum outro tipo de conhecimento, principalmente aquele que nem sempre permite verificação cientifica, como o conhecimento tradicional possuído por comunidades.
Na perspectiva de resolver esta carência de um conhecimento mais dinâmico e integrador sobre os ecossistemas, muitos especialistas em manejo têm procurado esta possibilidade no conhecimento tradicional, ou conhecimento ecológico tradicional (CET) como alguns preferem chamar. Berkes (1999) define esse conhecimento como um [...] corpo acumulativo de conhecimento, práticas e crenças das comunidades tradicionais sobre a relação entre os seres vivos (inclusive o homem) e o seu ambiente, que se desenvolve ao longo do tempo através de um processo adaptativo e é repassado através de gerações por transmissão cultural.
Através dessa perspectiva é possível reconhecer diferentes relações e as suas implicações ecológicas e culturais, como sugere a Ecologia Humana. Posey (1987) nos mostra que essa relação compreende ao mesmo tempo uma interação e uma modificação constantes. Isso significa que, do ponto de vista ecológico humano, a definição de biodiversidade não se limita a um aspecto unicamente biológico. Mais do que uma diversidade genética de indivíduos e de espécies, a biodiversidade representa o resultado de práticas milenares dessas comunidades.
A prática dessas comunidades pode estar relacionada à ideologia conservacionista, mas não necessariamente. Essa ideologia pode levar a uma exploração limitada dos recursos, no entanto, podem-se ter práticas culturais que naturalmente sejam conservacionistas sem que necessitem de qualquer tipo de ideologia ou de rotulação. Isso significa dizer que existem populações que simplesmente seguem regras culturais locais para o uso e apropriação dos recursos naturais, e estas, por sua vez, é que se definem como sustentáveis. Trata-se de uma relação que ultrapassa a consciência conservacionista e se expressa como uma forma de vida.
As comunidades tradicionais aprendem de forma cumulativa, no decorrer dos tempos, em um processo contínuo de aprimoramento e revalidação de suas práticas. Faz parte de sua cultura a “atividade inventiva”. Não existem regras para o sucesso de uma prática sem que esta se submeta a tentativa de acerto e de erro. É dessa forma que essas comunidades acompanham os padrões oferecidos pela natureza e é assim que respondem progressivamente aos obstáculos encontrados.
A cada geração o conhecimento se renova e novos valores são incorporados; apesar de se constatar mudanças e conflitos, muitas práticas permanecem, assim como os traços tradicionais característicos de cada cultura.
Para se manejar um recurso ou para se ordenar um espaço é preciso conhecer profundamente cada elemento físico, biológico, ecológico, simbólico, mitológico, etc., que compõe o ambiente. Essa complexidade, no entanto, só é apreendida por aqueles que de alguma forma reconhecem esses elementos como parte de sua dinâmica de vida, incorporando-os de forma natural – o que caracteriza a identidade do grupo com o meio.
Nas últimas décadas têm-se retratado evidências da habilidade que os grupos desenvolvem para utilizar e alocar os direitos de uso entre seus membros, evidências essas relevantes sobre o manejo de recursos comum. Vale destacar, para a região amazônica, os acordos de pesca que vêm sendo firmados nos últimos anos e que estão se proliferando, na medida em que as comunidades ribeirinhas buscam proteger os lagos da pressão da pesca comercial.
Os acordos de pesca representam formas participativas de gestão, de regulamentação dos recursos pesqueiros das regiões de várzea da Amazônia Central desde os anos 1960 e 1970. Este novo paradigma da pesca na Amazônia parte do princípio de que a sustentabilidade é possível manejando o recurso como um bem comum e não como recurso de uso exclusivo ou restrito. Fatos como esses contradizem a teoria de Hardin (1968) em a Tragédia dos comuns, obra na qual o autor nega a possibilidade de arranjos institucionais ou de qualquer outra forma de interação e de ligação entre os indivíduos envolvidos. No entanto, destituídas de qualquer burocracia oficial, as instituições informais mantêm sistemas tradicionais de acesso ao recurso, nos quais residem as grandes forças de manejo e do direito consuetudinário (direito de uso fundamentado em costumes locais).
Muitos estudos têm sido desenvolvidos nesta área temática, enfocando as relações entre as comunidades tradicionais e os recursos naturais do ambiente, e alguns destes têm proposto que a incorporação do conhecimento dessas comunidades é fundamental no desenvolvimento de planos de manejo sustentável. No entanto, o respeito às diferentes culturas deve ser levado em consideração. Viertler (2001) afirma que cada cultura induz os seus portadores a desenvolver vivências peculiares a partir do entre-jogo de certas modalidades privilegiadas de percepção do mundo natural. Tais modalidades privilegiadas de percepção ou primazias de percepção variam de uma para outra cultura.
Uma tribo indígena Kashinawa, por exemplo, não confere primazia aos aspectos visuais do mundo físico tal como nós o fazemos. No mundo Kashinawa, o mundo visível constitui um mero reflexo de um mundo mais real e importante, não visível, que se manifesta por meio de experiências tais como os sonhos, as visões tidas durante os transes, os cheiros e os sons emanados dos cantos e das danças religiosas. Neste contexto, Viertler (2001) nos faz o seguinte questionamento: como dialogar com um Kashinawa sem recair em monólogos ou imposições? Além desta dificuldade, lembremo-nos que, enquanto o pesquisador tenta desenvolver o seu trabalho de pesquisa, também o informante Kashinawa não desistirá de tentar se comunicar. Isto porque o informante tentará tirar alguma vantagem material ou, quando for mais generoso, educar ou socializar o pesquisador para que este aprenda a fazer perguntas que tenham um mínimo de sentido. Esta é uma situação possível de ocorrer em outras comunidades, como os ribeirinhos amazônicos, por exemplo, já que é constatada uma intrincada teia de dificuldades e armadilhas que nos impedem a comunicação mais espontânea e habitual com representantes de sociedades culturalmente diferentes da nossa.
Entre os índios Bororo do Mato Grosso, por exemplo, o “não falar” associado ao ficar de “rosto sério” e ao “cruzar de braços” significa reprovação ou crítica muda. Este padrão de comunicação social ou “etiqueta” é bastante disfuncional no contexto das relações destes índios com os não índios e outras tribos indígenas brasileiras. Isto porque, ao se apegarem a esta etiqueta, os Bororo não chegam a contestar abertamente as autoridades, etiqueta esta interpretada como “passividade” ou “desinteresse” pelos não índios. Já os índios Xavante, cujo padrão social permite que gritem, “falem duro” e discordem abertamente, acabam alcançando vantagens econômicas e políticas junto a órgãos do governo, a missionários e a outras forças políticas de não índios. Portanto, do ponto de vista da etiqueta ligada à comunidade social e intercultural, os Xavante possuem maior “afinidade” ou “comunicabilidade” com os não índios do que os Bororo, estes últimos mais fechados, apesar de terem sido obrigados a conviver com o dominador branco há mais tempo do que os primeiros.
A fim de alcançar uma real comunicação com os portadores de outras culturas, é preciso descobrir tais etiquetas de comunicação intercultural. Se o “falar” é importante à comunicação, o “não falar” pode ter vários significados, desde a timidez e humildade até a discordância ou a reprovação.
Antes de finalizarmos esta temática queremos ressaltar que a partir da Etnociência, vista anteriormente, originaram-se vários campos de domínios específicos, entre estes a Etnobiologia (com suas sub-áreas), recebendo contribuições basicamente da sociolinguística, da antropologia estrutural e da antropologia cognitiva. A etnobiologia, na esfera da produção do conhecimento científico, caracteriza-se como uma ponte entre as ciências humanas e as ciências biológicas e vice-versa, fornecendo ferramentas essenciais para a interdisciplinaridade entre ambas e proporcionando ao pesquisador desenvolver um trabalho mais profundo e abrangente, testando hipóteses que dificilmente seriam elaboradas sem uma metodologia interdisciplinar. A conceituação epistemológica, neste caso, resulta da recusa de interpretação reducionista. Para se estudar um assunto por meio das etnociências, como a Etnobiologia, é indispensável o reconhecimento de que não há divergências entre as diversas linhas de pesquisa, mas sim que existe uma complementaridade entre elas e que a ciência não é “monolítica” e acabada, bem como o conhecimento e o saber não são estanques, ou exclusivos de um determinado grupo.
Abaixo, trecho de um trabalho sobre a cognição comparada entre o conhecimento tradicional dos pescadores de pirarucu (Arapaima gigas), no estado do Amazonas, sobre a reprodução da espécie e a literatura científica disponível, o qual nos mostra a congruência entre esses tipos de conhecimentos.
Quem cuida dos filhotes é o macho, que fica boiando manso com queixo e o rabo vermelho” (citação dos pescadores).
“...Somente no período de reprodução é possível a identificação do sexo dos pirarucus, uma vez que o macho adquire acentuada coloração escura na parte superior da cabeça e na região dorsal, que se prolonga até quase a inserção da nadadeira dorsal, enquanto os flancos, ventre e parte caudal adquirem coloração vermelha.” (Braga, 2009) (citação da literatura).

CONCLUSÃO
No decorrer do texto verificamos que o conhecimento tradicional, de senso comum, ou conhecimento popular, como também se ouve falar, durante muito tempo vem, de alguma forma, sendo utilizado e transmitido por várias gerações, mesmo sendo visto por muitos como um conhecimento de menor importância e desprovido de razão. Nas últimas décadas já se observa uma tendência em curso que é a distinção entre as diversas formas de conhecimento. Nesta linha, Santos (2006) afirma que a ciência moderna construiu-se contra esse conhecimento por considerá-lo superficial e ilusório, ou até mesmo falso. Já a ciência pós-moderna procura dar maior crédito ao senso comum por reconhecer virtualidades nesta forma de conhecimento que ajudarão a enriquecer a nossa relação com o mundo.
Do estudo científico sobre o conhecimento tradicional verificamos a emergência de um novo campo de pesquisa, denominado por alguns autores de “Etnociência”. No entanto, é preciso, antes de tudo, se reconhecer a existência nas comunidades tradicionais de outras formas de se perceber, representar e manejar a biodiversidade, igualmente válidas e além daquelas oferecidas pela ciência reducionista. E isso já vem ocorrendo, pois se percebe que nunca houve tantos cientistas interessados no estudo do conhecimento produzido do lado de fora do mundo acadêmico e usado por comunidades para compreender o mundo.
Concordamos com o Prof. Antonio Carlos Diegues (2009) de que não é tarefa fácil romper com os padrões clássicos dessa ciência reducionista, pois nossas instituições de pesquisa e ensino são, em geral, unidisciplinares, discriminadoras dos saberes tradicionais, marcadas por “correias de transmissão” que nos ligam aos grandes centros, dentro e fora do país, onde são gerados modelos científicos reducionistas que, transformados em práticas (ou ideologias), levam a uma forma de conservação autoritária e pouco eficaz, subordinada a interesses não locais.
É preciso, portanto romper com essas “correias”, superar esses modelo e práticas e dar a devida importância a esse tipo de conhecimento, seja como ferramenta local para compreender o mundo, seja como um atalho para se produzir conhecimento científico a partir de “dicas” populares. Isto deve ser feito principalmente nas análises de problemas ambientais, onde a constituição de equipes interdisciplinares compostas de pesquisadores das áreas das ciências naturais e humanas já se mostrou não ser suficiente. As comunidades devem participar do processo, e os resultados dos trabalhos também devem ser  submetidos à critica da sociedade, dentro de processos de consultas democráticas, para que as opiniões dos comunitários estejam incluídas e façam parte da pesquisa.

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NOTAS
1) Mestre em Biologia de Água Doce e Pesca Interior pelo INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia) e professor do ICTA (Instituto de Ciências e Tecnologia das Águas) da UFOPA (Universidade Federal do Oeste do Pará).
2) O autor usa o termo etnocentrismo no sentido em que habitualmente é empregado e entendido entre alguns cientistas, mas ressalta: é preciso admitir que o etnocentrismo é uma atitude universal e inerente aos indivíduos e difere do racismo, que é uma atitude própria do Ocidente moderno e que melhor representa a ideia esboçada acima.
3) Cultura: é um dos principais conceitos necessários para o entendimento do comportamento de populações humanas. De forma prática, cultura é o conhecimento adquirido; é passada através de gerações por processos de socialização, a qual inclui um conjunto de regras para a convivência, relacionados a comportamento em grupo, valores, linguagem e tecnologia (Kormondy & Brow, 2002, p. 41).
4) As falácias são discutidas no texto 2 deste livro (Introdução à Filosofia), quando se discute “lógica”.
5) “Em ecologia humana focalizamos as interações entre dois sistemas. Um é o Homem, sistema bem mais complexo que aqueles encontrados entre os mamíferos superiores, onde a inteligência, a criatividade, o livre-arbítrio e o domínio de artes e ciências geram desempenhos que excedem o condicionado pelo binômio genes-ambiente. O outro é o meio ambiente do Homem, também mais complexo que qualquer outro, uma vez que é constituído não só do universo abiótico e do universo biótico, mas também do ambiente construído pelo Homem, suas religiões, suas doutrinas e teorias, sua economia, suas máquinas, seus governos, sua sociedade, seus mitos, etc.”

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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segunda-feira, 23 de abril de 2018


FILOSOFIA  DA  CIÊNCIA
Elizabeth de Assis Dias1


Introdução
Os filósofos de um modo geral sempre pretenderam ter uma compreensão mais adequada do que vem a ser a ciência, de quais são seus procedimentos e métodos e de como ela chega a seus resultados. Esta pretensão remonta à Antiguidade, uma vez que já encontramos, aí, as primeiras preocupações teóricas acerca dos fundamentos da ciência. Essas reflexões foram realizadas, no quadro geral de uma Metafísica, de uma Lógica ou de uma Teoria do conhecimento, mas a rigor não podemos dizer que exista propriamente uma filosofia da ciência, nesse período, pois a ciência em seu sentido mais restrito e preciso, tal como a conhecemos hoje, ainda não se havia constituído. 
Aristóteles, em sua Metafísica e em seus escritos lógicos, principalmente em sua obra Segundos Analíticos, oferece-nos diversas reflexões sobre a ciência. Nessa obra ele pretende estabelecer os critérios que uma disciplina deve satisfazer para receber a designação de conhecimento científico. Diz o filósofo: Julgamos conhecer cientificamente cada coisa, de modo absoluto e não, à maneira sofística, por acidente, quando julgamos conhecer a causa pela qual a coisa é, que ela é a sua causa e que não pode essa coisa ser de outra maneira. (Aristóteles, 2005, p. 253)
Segundo esta afirmação famosa de Aristóteles, um campo do saber que tiver a pretensão de ser científico deverá, em primeiro lugar, conhecer a causa que explica a natureza do que se propõe a estudar; deste modo, só é possível o conhecimento científico de uma coisa se conhecemos o nexo que a une a uma causa. Em sua Física (2009), Aristóteles nos esclarece que “as causas se dizem em quatro sentidos”: como matéria (causa material); como quididade (causa formal, a forma ou configuração dada à matéria); como principio do movimento (causa eficiente); e como fim (causa final). Então, qual ou quais desses sentidos dizem respeito à causalidade científica? O autor nos esclarece que é por todas essas espécies de causa que a ciência conhece a natureza de uma coisa.
Em segundo lugar, aquilo que é objeto de conhecimento científico deverá ter um comportamento regular, que não admite variação, ou seja, é algo que se dá necessariamente, isto é, aquilo que não pode ser de outro modo. Aristóteles exclui, assim, do âmbito da ciência, as coisas que são contingentes, isto é, que podem ser de outra maneira. “Não há demonstração nem ciência, em sentido absoluto, das coisas perecíveis.” (Aristóteles, 2005, p. 268) Trata-se, portanto, de uma ciência que tem por objeto um ser necessário e eterno.
A causalidade e a necessidade são, portanto, na visão de Aristóteles, as características fundamentais do conhecimento científico. Se esses dois traços não se fizerem presentes em um campo de estudo, temos apenas um conhecimento acidental, à maneira sofística, que pretende fazer-se passar por ciência, sem possuir a qualificação para tal.
Os antigos filósofos podiam muito bem procurar determinar as condições que um conhecimento da natureza deveria satisfazer a fim de que pudesse ser verdadeiramente qualificado de científico, mas a única maneira de sabermos o que realmente é a ciência requer que antes ela seja constituída.
É somente a partir de Galileu Galilei que podemos vislumbrar uma nova ordem de conhecimento que ficou conhecida como ciência moderna, ou mais precisamente, ciência físico-matemática, e que irá possibilitar a constituição de uma Filosofia da Ciência como disciplina autônoma. Mas como surgiu esta nova ordem de conhecimento, que irá suscitar uma reflexão autônoma sobre ela?
É consenso, entre historiadores e filósofos da ciência, que o termo ciência moderna designa uma nova ordem de conhecimento que surgiu com a revolução galileana do século XVII. Mas, como devemos entender esta revolução que deu origem à ciência moderna? Ou melhor, qual foi o caráter desta revolução preconizada por Galileu? E como devemos entender o seu fruto, a ciência moderna?
O termo “revolução científica”(2), de acordo com Thomas Kuhn, designa o momento, na história de uma ciência, em que um antigo paradigma(3), tido como verdadeiro, é substituído por um novo, devido ao fato de o antigo não ser mais capaz de resolver determinados problemas com os quais ele se defronta. No entender de Kuhn, esta revolução tinha como núcleo uma transformação na astronomia, e, portanto, na forma de se conceber o universo: a concepção de que o céu era imóvel, de que a terra estava parada no centro do universo e de que o sol e os planetas giravam em torno da terra foi substituída pela concepção galileana de que todos os astros do espaço celeste se moviam e de que a terra também se movia – e, mais ainda, de que a terra se movia em torno do sol, juntamente com os outros planetas.
Alexandre Koyré, em sua obra Estudos Históricos do pensamento científico, diz que o nome de Galileu está indissoluvelmente ligado à Revolução Científica do século XVII e considera esta revolução como uma das mais profundas do pensamento humano. A seu ver, ela teve como consequência uma radical transformação intelectual, da qual a ciência moderna é o fruto. O autor caracteriza a atitude mental ou intelectual da ciência moderna através de dois traços que se completam, a saber: “a destruição do Cosmo” e “a geometrização do espaço”. (Koyré, 1982, p. 154-155) A “destruição do Cosmo” significa a dissolução da concepção de mundo aristotélica, na qual há uma separação entre terra e céu. O cosmo, entendido como o todo ordenado, constituído de terra e céu, é concebido como constituído de uma estrutura finita (começa na terra e termina na abóbada celeste), cuja ordenação obedece a uma hierarquia (do menos perfeito para o mais perfeito), e do ponto de vista ontológico é entendido como qualitativamente diferenciado, ou seja, os elementos que compõem este cosmo possuem uma essência que define a sua natureza e o lugar que devem ocupar no mesmo. Esta concepção de cosmo é substituída pela concepção de um universo aberto, infinito, unificado e regido pelas mesmas leis universais. As mesmas leis que explicam os fenômenos terrestres também explicariam os celestes.
A “geometrização do espaço” significa a substituição da concepção de espaço cósmico qualitativamente diferenciado e concreto pela concepção de espaço homogêneo e abstrato da geometria euclidiana. Nesta visão, o universo, que inclui terra e céu, deve ser entendido como um “livro escrito em caracteres matemáticos.” (Galileu, 1987, p. 119)
Para caracterizar a Ciência moderna, tomaremos como referência principal a obra de Galileu O ensaiador. Esta obra foi escrita em forma de carta a Vicenso Cesarini, e nela se discute a origem dos cometas. A importância desta obra não está na hipótese defendida por Galileu acerca da origem dos cometas, que é falsa, mas na crítica detalhada ao método tradicional de tratar os fenômenos naturais e na defesa de novos métodos.
Galileu desloca o eixo da polêmica sobre os cometas para a discussão metodológica, o debate é sobre os procedimentos científicos tradicionais empregados pelos jesuítas. Neste debate podemos vislumbrar a concepção de uma nova ordem de conhecimento, que se passou a denominar de ciência moderna. Em primeiro lugar, Galileu definiu como objeto de investigação de sua ciência os aspectos constantes, quantificáveis e mensuráveis da natureza (“os acidentes primários e reais”), ou seja, aqueles aspectos passíveis de tratamento matemático. A natureza define-se precisamente pela sua possibilidade de ser pensada matematicamente. Galileu considera que, ao contrário dos aspectos qualitativos, como cores, odores, sabores, cheiros, as sensações em geral, que só possuem uma existência assegurada pela subjetividade perceptiva, os aspectos quantitativos participam necessariamente do conceito de corpo físico, tratando-se de atributos “residentes realmente na matéria”, que não podem ser eliminados. São eles: forma, figura, número, contato e movimento. Assim, a natureza não é mais vista como um enigma a ser desvendado, mas como quantidade de movimento, velocidade etc., ou seja, como relações quantitativas entre fenômenos.
Portanto, [...] concebo uma matéria ou substância corpórea, como termo e aspecto daquela ou outra substância, grande ou pequena em relação a outras, colocada naquele ou neste lugar, naquele ou neste tempo, movimento ou parada, em contato ou não com outro corpo, como sendo única ou poucas ou muitas, nem posso imaginá-la de forma alguma separada destas condições [...] (Galileu, 1987, p. 218)
A ciência galileana renuncia às pretensões metafísicas da ciência aristotélica, de buscar os princípios últimos de todas as coisas, para preocupar-se com os aspectos da natureza que podem ser objetivamente controláveis e quantificáveis. O que importa à ciência moderna não é conhecer a natureza da substância, mas sua função (ideia de funcionalidade).
Galileu escolheu a matemática como a linguagem de sua ciência, a linguagem que expressaria as relações quantitativas existente entre os fenômenos. Diz ele: A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se abre perante nossos olhos (isto é, o universo), que não se pode compreender antes de entender a língua e conhecer os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em língua matemática, os caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas, sem cujos meios é impossível entender humanamente as palavras; sem eles nós vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto. (Galileu, 1987, p. 119)
Os caracteres em que está escrito o livro da natureza são diferentes daqueles de nosso alfabeto, e nem todos são capazes de ler este livro. Os caracteres do livro da natureza são matemáticos ou geométricos, e só pode lê-los o pesquisador que estuda a natureza. A matemática é a linguagem das representações cientificas; ela é a forma de linguagem conceitual. Esta linguagem se distingue da linguagem poética, na medida em que, nesta, cada expressão possui ao mesmo tempo múltiplos sentidos, enquanto que, naquela, cada uma de suas expressões possui apenas um único sentido, pois se trata de relações quantificáveis entre grandezas, que são expressas através de medidas, números, figuras geométricas, equações, teoremas e fórmulas.
A ciência de Galileu reduz e estreita o conceito de causa, na medida em que pretende conhecer apenas a causa eficiente e deixa de lado as causas finais, formais e materiais da filosofia aristotélica. A causa que esta nova ciência pretende determinar é a causa próxima ou imediata, ou seja, a que produz o efeito. O conceito de causalidade na ciência moderna é liberto da acidentalidade da acepção empírica e do caráter abstrato da interpretação metafísica. A relação causal se dá entre fenômenos. Esta relação é universal, necessária e determinada quantitativamente. Assim, quando a ciência descobre as relações causais universais que regem os fenômenos, podemos dizer que ela os explica. Explicar, na visão de Galileu, quer dizer determinar as relações causais existentes entre os fenômenos e traduzi-las em termos de relações matemáticas.
O sucesso da ciência físico-matemática, engendrada por Galileu, possibilitou, mais tarde (no inicio do século XX), o surgimento de uma disciplina filosófica que passou a tomar a ciência como objeto de investigação, questionando os seus princípios, fundamentos, estruturas, resultados, condições de validade, procedimentos metodológicos etc. Essa disciplina recebeu, no decorrer dos anos, diversas denominações: Epistemologia, Teoria da Ciência, Filosofia da Ciência, Metaciência.(4)
Os filósofos da ciência de tradição anglo-saxônica compartilharam a ideia de que os grandes avanços científicos, principalmente os da Física, foram alcançados devido à aplicação de regras lógico-metodológicas que possibilitavam um controle mais rigoroso das hipóteses e teorias. A tarefa principal da filosofia da ciência era concebida como a de proporcionar uma teoria do método cientifico, ou seja, de definir com precisão as regras do método cientifico de modo a garantir a correta prática científica e o conhecimento válido. Em síntese, o objetivo geral era determinar as regras lógico-empíricas que encerravam o núcleo da racionalidade científica. Esta ideia geral sobre a função do método cientifico era comum ao empirismo lógico(5) e ao racionalismo crítico(6) de Popper, e foi criticada por uma “nova filosofia da ciência”(7), que tinha como principal representante Thomas Kuhn, e como pressuposto a ideia de que o conhecimento científico só pode ser entendido se levarmos em conta a sua História.
Considerando que é somente na contemporaneidade que emerge uma teoria da ciência(8) em sentido estrito, pretendemos abordar, de maneira breve, os elementos centrais da concepção de ciência proposta por Karl Popper (1902-1994) e Thomas Kuhn (1922-1996). Nosso objetivo é eminentemente pedagógico; trata-se de uma introdução a questões fundamentais da filosofia da ciência, na perspectiva desses dois filósofos. Não temos a intenção de esgotar a problemática que permeia as suas obras;  também foge completamente ao escopo deste texto a avaliação geral da filosofia da ciência de Popper e Kuhn, bem como o exame de seus críticos e seguidores.

1 A concepção de ciência de Popper
Em Popper, a epistemologia e a teoria do método científico encontram-se intimamente entrelaçadas, ou melhor, a epistemologia deve ser entendida como a teoria da investigação e descoberta científica. Deste modo, sua análise dos sistemas teóricos se processa para além da dimensão puramente lógica das relações entre enunciados científicos, atingindo uma dimensão metodológica, que diz respeito à escolha de métodos – análise do método ou do processo próprio da ciência empírica. Popper, em sua principal obra, A lógica da pesquisa científica (POPPER, 1972), nos apresenta os dois problemas epistemológicos que ele considera como fundamentais: o problema da demarcação científica e o da indução. Podemos dizer que o primeiro problema busca determinar os limites do conhecimento empírico e o segundo questiona os procedimentos metodológicos da ciência, ao indagar se é possível obtermos um conhecimento de caráter universal a partir da experiência.
Vejamos como o filósofo austríaco trata desses dois problemas.

1.1 O problema da demarcação científica: ciência e não ciência
Popper, ao tentar traçar uma distinção entre a ciência e a pseudociência, se defronta com o problema de encontrar um critério que possibilite identificar o discurso científico.
A questão que, no nosso entender, se delineava para Popper era a seguinte: sendo a ciência uma dentre muitas outras atividades com que se ocupam as pessoas, qual seria a marca do seu discurso? Como diferenciar o discurso da ciência daquele dos teólogos, filósofos, poetas e da magia primitiva? Onde se situam as fronteiras entre o discurso da ciência e os outros discursos? A busca de um critério para diferenciar a ciência das outras formas de conhecimento Popper denominou de “problema de demarcação”: Denomino “problema de demarcação” o problema de estabelecer um critério que nos habilite a distinguir entre as ciências empíricas, de uma parte, e a Matemática e a Lógica, bem como os sistemas “metafísicos”, de outra. (Popper, 1972, p. 35)
Esse problema foi tratado, de uma certa forma, por muitos filósofos, primeiramente pelos empiristas tradicionais e posteriormente pelos empiristas lógicos.
Os filósofos empiristas, seguindo a linha de Bacon, procuravam encarar o problema da demarcação a partir de suas bases empíricas, só admitindo como científicos os conceitos que derivassem da experiência, ou seja, os conceitos que pudessem ser reduzidos a elementos da experiência sensorial (sensações, impressões, percepções, lembranças visuais ou auditivas), estabelecendo, assim, a observação e a indução como método das ciências empíricas, e o método especulativo como característico da pseudociência e da metafísica.
Popper não poderia aceitar este critério indutivista, uma vez que ele, ao tentar eliminar a metafísica, aniquilaria a própria ciência natural, pois a moderna teoria física, especialmente a teoria de Einstein, que ele toma como base para formular seu critério de demarcação, é “altamente abstrata e especulativa” e encontra-se bastante afastada do que se poderia denominar de “base de observação”. Por outro lado, o critério empirista incluiria, como cientificas, pseudociências, como a astrologia, dado o seu grande acervo de evidência empírica baseada na observação.
Os empiristas lógicos, por sua vez, compreendiam o problema da demarcação em termos de problemas relativos ao uso da linguagem, ou concernentes ao significado das palavras, e seu objetivo era constituir uma linguagem pura, ou seja, uma linguagem livre de todo elemento “metafísico”.
Consideravam a metafísica destituída de sentido, ou constituída de pseudoproposições carentes de significado. Eles só admitiam como pertencendo ao âmbito da ciência os enunciados significativos ou dotados de sentido. Estabeleciam, assim, um critério para se distinguir a ciência da metafísica: o critério da verificabilidade. Segundo este critério, um enunciado, para ser considerado científico, deve ser verificado empiricamente, isto é, deve indicar quais as observações que o confirmam.
Assim, o significado de uma proposição se apresenta como o critério que nos permite distinguir as proposições pertencentes à esfera da ciência das da metafísica. Mas é adequada esta forma de se distinguir esses dois âmbitos do conhecimento?
Popper considera que esse critério não proporciona uma adequada distinção entre ciência e metafísica, porque o requisito radical de verificação empírica não apenas eliminaria os enunciados metafísicos, mas também todo o conhecimento científico-natural, uma vez que as leis científicas não são passíveis de verificação. Por que as leis científicas não podem ser verificadas? Para esclarecermos esta questão, faz-se necessário que examinemos a estrutura lógica dos enunciados que exprimem leis e a dos enunciados que descrevem fatos observados. Os enunciados que expressam leis, ditos nomológicos, são estritamente universais, ou seja, valem para todos os casos em qualquer tempo e lugar. Já os enunciados de observação são singulares, descrevem um fato ou evento ocorrido em um determinado tempo e em um determinado lugar. Assim, para verificarmos a verdade de um enunciado universal, precisaríamos examinar todos os casos envolvidos no universal, os presentes, os passados e os futuros. Esta verificação é uma tarefa ad infinitum e, portanto, impossível. Somente os enunciados singulares são passiveis de verificação; as leis científicas, por serem enunciados universais, não podem ser verificadas.
Ao rejeitar a indução e a verificação como critério de demarcação, Popper, para evitar os erros dos empiristas e positivistas lógicos, irá estabelecer um critério de demarcação que nos possibilite incluir, no domínio da ciência empírica, até mesmo os enunciados não susceptíveis de verificação. Ele irá considerar a falseabilidade ou refutabilidade como sendo a característica distintiva das teorias cientificas. Ou seja, uma teoria para ser considerada científica deverá ser falseável. Mas o que Popper entende por falseável e falseabilidade?
As expressões “falseável” e “falseabilidade” têm pelo menos dois sentidos(9), que devem ser distinguidos para evitarmos mal-entendidos. Primeiro, falseável deve ser entendido num sentido puramente lógico, pois se trata da relação lógica entre a teoria em questão e a classe dos enunciados básicos, que Popper denominou de “falsificadores potenciais”. Num segundo sentido, falseável é utilizado para indicar que uma teoria foi falseada, ou seja, foi “terminantemente” ou “demonstravelmente” falseada.
Popper propôs a falseabilidade como critério de demarcação no primeiro sentido de “falseável”: o sentido puramente lógico de “falseável em principio”. Desta forma, uma teoria é falseável se existir pelo menos um enunciado básico possível que esteja logicamente em conflito com ela. Por exemplo, podemos dizer que o enunciado “Todos os urubus são negros” é falseável se contradiz o enunciado “Um urubu branco foi visto na região do Ver-o-Peso às 15 horas do dia 18 de novembro de 2009”. Assim, de acordo com o critério de Popper, é possível chegarmos à falsidade de leis e teorias universais tendo por base enunciados de observações  singulares. Se afirmamos algo de modo universal, como no enunciado “Todo urubu é negro” e negamos este enunciado universal através de um enunciado particular, como no exemplo acima, em que admitimos a existência de um urubu não-negro (urubu branco), então, por dedução lógica, podemos concluir que há uma contradição. Vejamos outro exemplo de enunciado falseável no sentido estabelecido por Popper: “Todas as quintas-feiras chove”. Este enunciado é falseável porque é possível se conceber, em principio, que em uma determinada quinta-feira não choverá. O enunciado “Choverá ou não choverá aqui, amanhã” não é falseável, pois não é possível se conceber um enunciado de observação logicamente possível que possa refutá-lo.
O critério de falseabilidade, proposto por Popper, irá nos possibilitar distinguir as teorias científicas das não-científicas ou pseudocientíficas. As teorias científicas são passíveis de falseamento, ou melhor, de refutação. Se a observação mostrar que o efeito previsto não ocorreu, a teoria foi refutada, justamente porque é incompatível com certos resultados observados. A teoria que não for refutada por qualquer evento concebível não é científica: [...] Só reconhecerei um sistema como empírico ou científico se ele for passível de comprovação pela experiência. Essas considerações sugerem que deve ser tomado como critério de demarcação, não a verificabilidade, mas a falseabilidade de um sistema. Em outras palavras, não exigirei que um sistema científico seja susceptível de ser dado como válido, de uma vez por todas, em sentido positivo; exigirei, porém, que sua forma lógica seja tal que torne possível validá-lo através de recurso a provas empíricas, em sentido negativo: deve ser possível refutar, pela experiência, um sistema empírico. (Popper, 1972, p. 42)
Deste modo, a falseabilidade ou refutabilidade se apresentam como o único critério para determinar o caráter científico dos sistemas teóricos; ou seja, uma teoria que pretenda pertencer ao âmbito da ciência empírica, isto é, que pretenda fazer afirmações sobre o mundo real, factual, deve, em principio, ser falséavel.

1.2 O método da ciência
1.2.1 O problema da indução
Foi Bacon quem propôs pela primeira vez, de uma maneira sistemática, a indução como método da ciência. Por indução devemos entender uma inferência que conduza de enunciados do tipo dos que descrevem os resultados de observações ou experimentos, para enunciados universais, como hipóteses ou teorias. Popper questiona a validade de tal procedimento, pois no seu entender não há como se justificar a inferência de enunciados universais a partir de enunciados particulares, pois qualquer generalização obtida tendo por base a observação de casos particulares poderá ser falsa. Por exemplo, o fato de termos observado um grande número de pessoas que não gostam de ler não justifica a conclusão de que todas as pessoas não gostam de ler. Popper denominou de problema da indução a questão da validade ou verdade dos enunciados universais obtidos a partir da experiência. Diz Popper (1972, p. 28): “A questão de saber se as inferências indutivas se justificam e em que condições é conhecida como problema da indução.”
De acordo com a interpretação de Popper, foi o escocês David Hume (1771-1776) quem levantou pela primeira vez a questão do saber se as inferências indutivistas se justificam.
No problema da indução de Hume, podem-se discernir dois elementos: um lógico e outro psicológico.
O problema lógico da indução consiste em saber se podemos justificar os raciocínios que, partindo de casos observados, dos quais temos experiência, nos conduzem a outros casos, dos quais não temos experiência. Ou melhor, trata-se de saber se podemos inferir a verdade de uma lei universal a partir da verdade de certos enunciados observacionais.
Hume solucionou este problema mostrando que não existe justificativa para se inferir enunciados universais de enunciados singulares, pois não pode haver um raciocínio válido a partir de enunciados singulares de observação para leis universais da natureza. Não podemos raciocinar validamente do conhecido para o desconhecido, ou daquilo de que se teve experiência, para aquilo de que não se tem experiência. O fato de termos observado o maior número de vezes o sol nascer e pôr-se regularmente não nos garante a regularidade ou a lei do nascer e do pôr-do-sol. Tal solução é aceita por Popper.
Quanto ao problema psicológico, consiste em saber por que os cientistas são levados a crer que os casos dos quais não temos experiência poderão conformar-se com aqueles de que temos experiência. Ou melhor, por que muitas pessoas acreditam na validade da indução? A resposta de Hume é que é por causa do “costume ou hábito”, porque somos condicionados pelas repetições e pelo mecanismo da associação de ideias.
Existe uma incompatibilidade entre a solução dada por Hume ao problema lógico e a solução dada ao problema psicológico, pois, ao mesmo tempo que Hume nega validade a uma inferência indutiva, ele a aceita, pois ela continua desempenhando um papel indispensável na vida pratica na medida em que vivemos confiando na repetição. Popper (1975, p. 97) constata esta incompatibilidade quando afirma: “[...] Existe aqui um paradoxo. Mesmo o nosso intelecto não funciona racionalmente. O hábito, que é racionalmente indefensável, é [na visão de Hume] a força principal que guia nossos pensamentos e ações.”
Desta forma, Hume abandona o racionalismo, deixando de encarar o homem como um ser racional, para vê-lo como produto do hábito. Popper acredita ter resolvido o paradoxo de Hume. A sua solução nos é dada negativamente – nunca podemos justificar a verdade de uma crença numa regularidade, ou numa lei científica. Ele aceita o argumento lógico de Hume contra a indução. Discorda, porém, com relação à solução psicológica apresentada por ele para o problema. Não é, no seu entender, a observação de repetições que dá origem a uma convicção. A solução de Popper do paradoxo de Hume pode ser resumida nos seguintes termos: [...] é que não só pensamos racionalmente, e portanto contrariamente ao principio da indução, estabelecido por Hume como inválido, mas também agimos racionalmente; de acordo com razões e não com a indução. Não agimos baseados em repetição ou “habito”, mas baseados nas mais bem testadas de nossas teorias, as quais, [...] são aquelas para as quais temos boas justificativas racionais; não, sem duvida, boas razões para crer que sejam verdadeiras, mas para crer que são as de melhor aproveitamento do ponto de vista de uma busca da verdade ou da verossimilitude – as melhores entre as teorias concorrentes, as melhores aproximações da verdade. (Popper, 1975, p. 97)
Deste modo, Popper resolve o paradoxo de Hume. Este estava certo ao afirmar que a validade de uma inferência não pode ser justificada logicamente. Mas estava errado em sua associação psicológica, em acreditar que agimos com base no hábito, sendo, este, resultado da pura repetição. O que muitas vezes parece ser indução, para pessoas impressionadas com a “uniformidade da natureza” (por exemplo, o fato de o sol surgir e pôr-se todos os dias), não passa de crenças que podem ser facilmente refutadas pelos fatos. Assim, a indução genuína, por repetição, não existe.
Se não há justificativa para o procedimento indutivo, o que faz com que muitos acreditem que a ciência é indutiva? Ou melhor, o que fomenta a crença na indução, levando os cientistas a se debaterem em busca de dados que confirmem suas teorias?
Primeiramente, a crença errônea na indução é fortalecida, como vimos, pela necessidade de termos um critério de demarcação que nos possibilite estabelecer a diferenciação entre a ciência genuína e a especulação metafísica ou pseudocientífica.
O que se tem aceito tradicional e equivocadamente é que só a indução poderia fornecer tal critério. Em segundo lugar, tal crença é reforçada pela ideia de uma ciência que nos conduza a conhecimentos seguros e certos, porque estão assentados em evidência observacional e experimental, ou melhor, em fatos verificados e comprovados, e vem satisfazer o desejo de uma autoridade supra-humana – a autoridade da ciência, que deve estar acima da vontade humana. Em terceiro lugar está o desejo de ver a ciência não como obra de uma inspiração humana, mas como um decalque da natureza, obra mais ou menos mecânica, como se a natureza fosse um livro aberto que devesse ser lido sem preconceitos.
Podemos dizer que há uma crença estabelecida de que a ciência procede da observação para o estabelecimento de teorias, ou seja, indutivamente. Tal crença é um absurdo que ainda é aceito firme e amplamente. A observação não pode preceder a teoria, já que toda observação pressupõe um teoria.
A observação é sempre seletiva; para que ela se efetive necessita de um objeto escolhido, de uma tarefa definida, de um interesse, de um ponto de vista, de um problema.
Sempre uma observação é precedida por um interesse em particular, uma indagação, ou um problema – em suma, por algo teórico.
Afinal de contas, podemos colocar qualquer indagação em forma de uma hipótese ou conjectura, a que acrescentamos: “É assim?
Sim ou não?“ Deste modo, podemos afirmar que cada observação é precedida por um problema, uma hipótese (ou seja, o que pudermos chamá-lo); de qualquer modo, por algo que interessa, por algo teórico ou especulativo. Por isto é que as observações são sempre seletivas e pressupõem alguma coisa como um principio de seleção. (Popper, 1975, p. 314).
Por outro lado, o que essa crença em uma ciência indutiva não consegue ver é que a ciência não é um sistema de enunciados certos, precisos, bem estabelecidos, tampouco um sistema que avance continuamente em direção a um estado de finalidade. A ciência é produto humano e, como tal, ela é, no entender de Popper, conhecimento no sentido de doxa (opinião) e não da episteme (saber fundamentado). Tudo são conjecturas, por isso ela jamais pode proclamar haver atingido a verdade. Sua autoridade neste sentido é nula. A ciência com “C” maiúsculo, verificada, “confirmada ou exata”, não existe. O que temos em seu lugar é a ciência como produto do pensamento racional critico, cheia de fracassos e de limitações tipicamente humanas.

1.2.2. A concepção popperiana de método científico
A concepção que Popper tem da ciência e de seus métodos vem-se opor radicalmente ao erro que tradicionalmente se comete ao consolidar a ciência com um conhecimento tão certo quanto possível, sendo a “indução” o elemento capaz de assegurar a verdade desse conhecimento. Para Popper, “não existe um método científico” tal como os empiristas o concebem – para formular uma teoria científica, para averiguar a verdade de uma hipótese científica, tampouco para determinar se uma hipótese é provável ou verdadeira. Ou melhor, não existe um método no sentido de que uma vez aplicado levará com certeza ao êxito.
Segundo Popper, o procedimento dos cientistas para a formulação de teorias obedece ao método científico de propor hipóteses ou conjecturas ousadas e em submetê-las aos mais severos testes, no intuito de refutá-las, que ele denominou de método de conjecturas e refutações ou método hipotético-dedutivo.
Nesse método, os problemas constituem o ponto de partida de nossa investigação. Eles se manifestam sempre que nossas teorias nos trazem dificuldades e contradições. Cabe ao cientista encontrar uma resposta ou solução satisfatória para os problemas que lhe impressionam. A teoria científica apresenta-se, assim, como  uma tentativa de resolver um problema, de descobrir uma explicação para algum fato ou fenômeno. Em outras palavras, trata-se de oferecer explicações causais dedutivas para um fato, um fenômeno, uma regularidade destacada ou uma notável exceção à regra.
Por explicação causal de um fato, Popper entende uma dedução lógica que tem por conclusão uma descrição do fato a ser explicado (explicandum), dedução essa cujas premissas (explicans) são uma ou mais leis universais (ou leis naturais) e enunciados singulares – as “condições iniciais”.
Desse modo, podemos dizer, por exemplo, que explicamos causalmente o rompimento de um fio por ele ter uma resistência à ruptura igual a um quilo e nele ter-se prendido um peso de dois quilos. Nesta explicação causal encontramos, como partes constituintes: (1) a hipótese – “sempre que um fio é levado a suportar um peso que excede aquele que caracteriza a sua resistência à ruptura, ele se romperá” – que tem o caráter de um enunciado universal ou lei natural e (2) enunciados singulares ou “condições iniciais” – “o peso que este fio suporta é um quilo“ e “o peso preso a este fio foi de dois quilos“. Conjugando-se o enunciado universal e as condições iniciais, deduzimos (3) o enunciado singular – “este fio se romperá”. Esse enunciado recebe a denominação de “predição específica” ou singular.
É, portanto, a busca de solução para um problema que conduz o cientista a propor hipóteses e a deduzir a partir delas as consequências lógicas na forma de enunciados passíveis de testes. Estes testes podem ser entendidos como tentativas de refutar a teoria, ou seja, de identificar seus pontos fracos, de modo a rejeitá-la quando falseada.

2. A concepção de ciência de Thomas Kuhn
Kuhn (1975), contrapondo-se à Epistemologia clássica, procura mostrar que os requisitos lógico-metodológicos são insuficientes para definirem a racionalidade científica. O seu olhar de físico e historiador da ciência, preocupado em examinar o desenvolvimento científico, o levou a observar que muitos cientistas, ao realizarem suas pesquisas, violam cânones metodológicos, propostos tanto pelos empiristas lógicos quanto pelos racionalistas críticos, e que essa transgressão das regras não impediu o êxito de suas pesquisas. Sua análise não pretende determinar quais critérios ou requisitos lógico-empíricos devem ser satisfeitos para que uma disciplina atinja o status de ciência.
Ele se limita a mostrar como tem sido construída historicamente a cientificidade, ou seja, como uma determinada disciplina, em seu desenvolvimento, atingiu o estágio de ciência madura.
Kuhn, diferentemente do que vinha fazendo a tradição epistemológica, não está preocupado em definir cânones metodológicos, de modo a conferir cientificidade a um saber.
Tendo como pano de fundo a história da ciência e atribuindo à sociologia e à psicologia social papel importante em sua abordagem epistemológica, procura olhar a ciência sob outra perspectiva: a da sua prática efetiva, procurando determinar como e por que a ciência opera e as implicações sobre o comportamento dos cientistas para que o trabalho desenvolvido por estes seja exitoso.

2.1. A ciência norteada por um paradigma
Kuhn, diferentemente da tradição epistemológica clássica, não parece estar preocupado em definir a racionalidade científica estipulando um critério de demarcação, capaz de distinguir a ciência da pseudociência ou metafísica, tampouco procura definir cânones metodológicos capazes de conferir cientificidade a um saber. Na sua análise histórica, ele pretende desvendar “a estrutura essencial da contínua evolução de uma ciência”. Há assim um padrão, uma estrutura geral de desenvolvimento das diversas disciplinas científicas. Todas elas evoluem de um estágio mais preliminar (primordial) até atingir a sua maturidade científica. Em outras palavras, todas as disciplinas passam, ao longo de seu desenvolvimento científico, por fases ou etapas, que vão da pré-ciência à ciência madura.
Em sua principal obra, A estrutura das revoluções científicas, Kuhn considera a aquisição de um paradigma como reveladora do nível de maturidade de uma ciência: “a aquisição de um paradigma e do tipo de pesquisa mais esotérico que ele permite é um sinal de maturidade no desenvolvimento de qualquer campo científico que se queira considerar”. (Kuhn, 1975, p. 31)
Precisamos entender qual é o papel desempenhado pelo paradigma no desenvolvimento da pesquisa científica, pois é este que possibilita a uma disciplina entrar em sua fase de pesquisa convergente e unificada, denominada de “paradigmática”, na qual a pesquisa é desenvolvida sob a batuta de um paradigma.
Antes de atingir essa etapa, considerada pelo autor como de maturidade científica, faz-se necessário que uma disciplina supere sua fase de pré-ciência, seu estágio pré-paradigmático ou de pré-consenso, no qual uma multiplicidade de escolas compete pelo domínio de um campo de estudo determinado.
Nessa fase, não há unidade de propósitos investigativos, pois as várias escolas, inspiradas em alguma filosofia em voga, possuem maneiras diversas de conceber o mundo e praticar a ciência.
Predomina um intenso debate em torno dos fundamentos de um determinado campo de estudo, marcado por divergências em torno de métodos, problemas e padrões de solução legítimos.
As disputas e divergências entre as escolas em competição entravam o progresso, fazendo com que este praticamente inexista nesse período, pois os teóricos se veem obrigados a reconstruir seu campo de estudos desde os fundamentos, começando pelos primeiros princípios e justificando o uso de cada conceito. Como não há qualquer referencial teórico ou metodológico, bem como regras ou técnicas que norteiem a seleção dos fatos e a escolha de experiências e observações, estas são feitas livremente. Assim, os mesmos fenômenos são descritos e interpretados de maneiras diversas pelos estudiosos.
As investigações tendem a andar em círculo, voltando-se sempre aos mesmos pontos. Os resultados das pesquisas realizadas são apresentados em “grandes tratados”, nos quais os teóricos relatavam todos os seus procedimentos, os conceitos, princípios e definições utilizados no campo investigado, de modo a justificar o enfoque adotado a todos os possíveis interessados naquele objeto de estudo. Esses relatos são inteligíveis a qualquer pessoa dotada de cultura geral.
A transição da fase de pré-ciência para a da maturidade científica ocorre quando há o triunfo de uma das escolas em competição do período pré-paradigmático, dando fim aos debates e à constante reavaliação dos fundamentos. Podemos dizer que a maturidade científica ocorre com o consenso, com a redução da multiplicidade de teorizações acerca de um campo de estudo à unidade de propósitos investigativos estabelecida pelo paradigma. A pesquisa, neste estágio, torna-se esotérica, os seus resultados são apresentados sob a forma de artigos breves, dirigidos apenas aos colegas de profissão, únicos capazes de ler os escritos, dada a sua especificidade e profundidade.
A emergência de um paradigma e o consenso que ele produz são, pois, as condições para que um campo de estudo atinja o status de ciência paradigmática ou de maturidade científica. O conceito de paradigma se apresenta, assim, como fundamental para entendermos como uma ciência inicia sua maturidade. O que Kuhn entende por paradigma? Que ciências já atingiram sua maturidade? Na obra A estrutura das revoluções científicas, na qual Kuhn nos apresenta sua noção de paradigma (10), tal termo não é unívoco e gerou grandes dificuldades e polêmicas entre os seus críticos para o entendimento de sua proposta epistemológica.
Para efeito de nossa análise, iremos tomar o termo paradigma nos dois sentidos reconhecidos por Kuhn, em seu “Posfácio de 1969”, no qual, respondendo aos seus críticos, tentou eliminar os mal-entendidos acerca do termo. Os paradigmas enquanto norteadores da prática científica devem ser entendidos em dois sentidos diferentes: em primeiro lugar, em seu sentido mais estrito, o paradigma é uma espécie de “modelo” ou “exemplo” a ser seguido. É este o sentido originário do termo paradigma e mais fundamental para entendermos como uma ciência se constitui. Os paradigmas são “exemplos aceitos na prática científica real”, que fornecem “modelos dos quais brotam as tradições coerentes e especificas de pesquisa científica” (KUHN, 1975, p. 30). O paradigma fornece, assim, ao grupo científico, o modelo de solução de problemas que deverá orientar a sua pesquisa: os cientistas tentarão solucionar novos problemas seguindo esse padrão.
No “Posfácio de 1969”, os paradigmas dessa natureza aparecem sob a denominação de “exemplares”, entendidos como as “soluções concretas de problemas que os estudantes encontram desde o início de sua educação científica, seja nos laboratórios, exames ou no fim dos capítulos dos manuais científicos”(KUHN, 1975, p. 232). Para Kuhn, é o estudo dos paradigmas que prepara o estudante de um determinado campo de estudos para ingressar em uma comunidade científica especializada na qual atuará futuramente. Essa educação científica é uma iniciação dogmática a uma tradição preestabelecida de resolver problemas. O paradigma indica, em segundo lugar, “os compromissos ou adesões conceituais, teóricas, metodológicas e instrumentais” (Kuhn, 1975, p. 65) de uma comunidade científica. Este sentido é mais geral, pois envolve todos os “compromissos compartilhados” pelo grupo científico e fornece aos estudiosos de uma ciência amadurecida os parâmetros que irão nortear as formas básicas da investigação científica: “homens cuja pesquisa está baseada em ‘paradigmas compartilhados’ estão comprometidos com as mesmas regras e padrões para a prática científica” (Kuhn, 1975, p. 30). No “Posfácio de 1969”, Kuhn denomina “matriz disciplinar”11 a este sentido mais geral do termo paradigma, e o descreve como “a constelação de compromissos do grupo”. (Kuhn, 1975, p. 225) Uma matriz disciplinar comporta quatro componentes ou compromissos básicos: “as generalizações simbólicas, entendidas como os “componentes formais da matriz disciplinar”, que englobam as leis empíricas e definições de fenômenos empíricos; “as crenças em determinados modelos de representação do real, sejam eles modelos ontológicos do objeto de estudo ou procedimentos heurísticos; os “valores ou normasque definem a ciência praticada por um determinado grupo e proporcionam a seus membros o sentimento de pertencerem a uma comunidade global; e osexemplares, “as soluções concretas de problemas”.
Este último componente da matriz disciplinar, que corresponde ao sentido mais específico do termo paradigma, diz respeito aos exemplos aceitos da prática científica real, que fornecem modelos de solução de problemas.
O paradigma, ao definir no âmbito de determinado campo de estudo, os problemas que são reputados legítimos, as soluções exemplares e os procedimentos de investigação a serem utilizados, bem como ao gerar em torno de si um consenso, impõe de forma dogmática a exigência de um “referencial comum” como condição para a maturidade científica, ou seja, para um conhecimento atingir o estágio paradigmático, no qual não há qualquer possibilidade de divergências teóricas e da atitude crítica próprias da fase da pré-ciência.

2.2 A natureza da ciência normal
A ciência madura ou paradigmática, denominada por Kuhn de “ciência normal”, inaugura um tipo de pesquisa “mais especializada e esotérica”, voltada para a solução dos problemas propostos pelo paradigma. Nesse tipo de pesquisa, o progresso é evidente, pois os cientistas, ao estudarem os problemas científicos com mais profundidade e de maneira mais detalhada, aumentam a eficácia e a competência na resolução de problemas, o que era praticamente impossível na pré-ciência, na medida em que nesta fase os cientistas precisam dedicar boa parte de seu tempo à construção dos fundamentos do seu campo de estudo.
Os problemas científicos, estudados pela ciência normal, se assemelham a “quebra-cabeças”, pois são pensados como dotados de uma solução possível no âmbito do paradigma e sua resolução depende apenas da engenhosidade ou habilidade do cientista.
O paradigma que ele (o cientista) adquiriu graças a uma preparação prévia fornece-lhe as regras do jogo, descreve as peças com que se deve jogar e indica o objetivo que se pretende alcançar. A sua tarefa consiste em manipular as peças segundo as regras de maneira que seja alcançado o objetivo em vista. Se ele falha [...] esse fracasso só revela sua falta de habilidade. (Kuhn, 1975, p. 71)
Se o paradigma já define os problemas a serem investigados e as “soluções exemplares” a serem seguidas, o que faz a “ciência normal”? Qual é a natureza de suas pesquisas?
As pesquisas desenvolvidas pela “ciência normal” não visam fazer emergir novas espécies de fenômenos, tampouco a descoberta de novas teorias; geralmente, o grupo científico mostra-se intolerante com os colegas que propõem inovações. Os cientistas desenvolvem suas investigações no sentido de “forçar a natureza a encaixar-se dentro dos limites preestabelecidos e relativamente inflexíveis fornecidos pelo paradigma” (Kuhn, 1975, p. 45). Em outras palavras, o grupo científico, em suas pesquisas, se esforça para submeter a natureza aos esquemas conceituais ditados pelo paradigma. Nesta sua tarefa, os cientistas normais se propõem a investigar três tipos de problemas: determinar quais fatos são considerados significativos no âmbito do paradigma, estabelecer a concordância dos fatos com a teoria e garantir o rigor e a precisão da teoria. A ciência normal, ao explorar todas as possibilidades do paradigma, progride cumulativamente, pois vai enriquecendo-se de novos fatos, experiências, leis, instrumentos, contribuindo assim para aumentar o alcance e a precisão do paradigma.
Muito embora a ciência normal desenvolva pesquisas convergentes, consensualmente endossadas, visando ampliar o domínio do paradigma e não se mostre interessada na descoberta de novidades, porque estas subvertem seus compromissos básicos, ela é, paradoxalmente, a condição de possibilidade para a emergência do novo. A própria natureza da ciência normal assegura que a novidade não poderá ser suprimida por muito tempo. Em outras palavras, ao concentrar-se em problemas mais esotéricos e ao estudá-los de modo mais minucioso e detalhado, analisando cada pormenor, a pesquisa normal é a única capaz de perceber quando um paradigma falha ou apresenta dificuldades na solução de determinados problemas. Desse modo, são geradas anomalias, que indicam a necessidade de se buscar um novo paradigma para nortear a prática científica.

2.3 Anomalias, crises e revolução científica
As anomalias, entendidas por Kuhn como os problemas não resolvidos no horizonte do paradigma, desencadeiam um período de crise, no qual a confiança no paradigma é quebrada e as regras que regem a ciência normal se tornam menos rígidas.
A crise é o prelúdio para a emergência de uma inovação científica que rompe com a tradição existente da prática científica, substituindo-a por uma nova. A este processo de mudança de uma velha tradição paradigmática para outra mais nova, Kuhn denomina de revolução científica. A nova tradição paradigmática não incorpora os resultados exitosos anteriormente alcançados pelo velho paradigma; ao contrário, representa uma total ruptura com o modelo anteriormente em vigor. “Uma revolução”, diz Kuhn, “é uma espécie de mudança envolvendo um certo tipo de reconstrução dos compromissos do grupo” (Kuhn, 1975, p. 225).
Com a revolução científica, surgem novos campos de problemas, mudam as soluções exemplares, a visão do mundo e os compromissos compartilhados pela comunidade científica; enfim, é introduzida uma nova maneira de se praticar a ciência. A partir daí, a própria percepção que os cientistas têm da natureza precisa ser reeducada; eles precisam aprender a ver de uma nova forma situações com as quais já estavam familiarizados.
A revolução científica inaugura outra concepção de progresso em Kuhn, entendido não de forma cumulativa e homogênea como na ciência normal, mas como um processo que ocorre por meio de rupturas entre modos incompatíveis de se praticar a ciência. O progresso assim entendido não possui um plano preestabelecido, não obedece a uma teleologia, tampouco visa uma aproximação da verdade. Trata-se de um processo similar à evolução das espécies de Darwin, no qual há uma “luta pela sobrevivência” entre maneiras alternativas de se praticar a ciência no âmbito da comunidade científica, tendo como resultado final desta disputa a escolha da prática científica que se mostre “mais apta” na resolução de problemas.
A analogia [...] relaciona a evolução dos organismos com a evolução das ideias científicas [...]. O processo [...] descreve como a resolução das revoluções corresponde à seleção pelo conflito da maneira mais adequada de praticar a ciência – seleção realizada no interior da comunidade científica. (Kuhn, 1975, p. 215)
Para explicar a natureza das revoluções científicas, Kuhn se utiliza de uma analogia com as revoluções políticas. Estas iniciariam com um sentimento crescente, restrito a uma parcela da comunidade política, de que as instituições existentes se mostram incapazes de solucionar dificuldades e problemas que decorrem do meio para cuja criação elas, em parte, contribuíram. As revoluções científicas, de maneira similar, surgem quando o paradigma deixa de funcionar adequadamente na exploração de algum aspecto da natureza que antes ele era capaz de explicar.
Uma outra analogia entre essas duas revoluções diz respeito às mudanças que elas pretendem realizar. As revoluções políticas pretendem mudar as instituições políticas, mas a estrutura atual de funcionamento dessas instituições proíbe tais mudanças, pois as várias facções em disputa na sociedade divergem quanto à matriz institucional que devem seguir para viabilizar a mudança política. Devido a não reconhecerem uma estrutura supra-institucional capaz de julgar suas diferenças revolucionárias, as facções envolvidas no conflito revolucionário recorrem em última instância a técnicas de persuasão de massa e à força. No caso das revoluções científicas, o paradigma que norteava a ciência normal entra em crise e os conflitos interpretativos não têm como ser arbitrados com base apenas em argumentos lógico-racionais, mas também levando-se em consideração as técnicas de argumentação persuasiva que se mostram eficazes no interior da comunidade científica: “tal como a escolha entre duas instituições políticas em competição, a escolha entre paradigmas em competição demonstra ser uma escolha entre modos incompatíveis de vida comunitária” (Kuhn, 1975, p. 127). Essa disputa terá como desfecho a escolha e consequente adesão a uma nova maneira de se praticar a ciência, ou seja, a um novo paradigma. Podemos assim dizer que, para Kuhn, o padrão característico do desenvolvimento de uma ciência madura é de períodos de “ciência normal”, relativamente estáveis, no qual as pesquisas realizadas visam à solução de quebra-cabeças à luz de um paradigma único e consensualmente aceito pelo grupo, intercalados por períodos de mudança revolucionária, em consequência da qual um novo paradigma substitui o anterior no direcionamento das pesquisas. Em ambas as revoluções, o sentimento de funcionamento defeituoso, de que algo vai mal nas pesquisas desenvolvidas pela ciência normal, pode conduzir a crise, que é o prelúdio para as revoluções.

Conclusão
A pretensão do presente trabalho foi de apresentar de forma simples e clara algumas concepções filosóficas sobre a natureza da ciência. Este texto não deverá substituir as fontes originais para o estudante que deseja aprofundar o assunto.
Esperamos ter proporcionado um ponto de partida acessível de forma a introduzir o aluno nas questões prementes que são discutidas pela Filosofia da Ciência. Procuramos, ao longo do texto, indicar obras de referência para que o aluno possa sanar suas dúvidas ou, então, buscar maiores esclarecimentos ou aprofundamentos sobre o assunto. No final, indicamos alguns textos básicos para leitura complementar do aluno.
Sabemos que a ciência é altamente considerada e que há uma crença arraigada, em nossa mentalidade, na eficácia de seus procedimentos, a qual faz com que seus resultados sejam aceitos por todos. Acreditamos que a ciência nos conduz a conhecimentos seguros e certos, porque estão assentados em evidência observacional e experimental, ou melhor, em fatos verificados e comprovados. Basta atribuirmos o termo “científico” a alguma afirmação, a alguma pesquisa, ou dizermos que um produto novo lançado no mercado foi cientificamente testado, para que eles passem a ser aceitos sem contestação ou, então, sejam considerados como dignos de mérito ou de confiança. Podemos dizer que, ainda hoje, a ciência é vista como uma grande autoridade.
Para desmitificarmos essa crença errônea na ciência e nos seus procedimentos é importante conhecermos o pensamento do filósofo austríaco Popper. Ele nos apresenta uma concepção original de ciência, ao defini-la como um conhecimento falseável. Para o autor: [...] A ciência não é autoridade. Não é produto mágico do dado, dos dados das observações. Não é um evangelho da verdade. Sou eu e vós que fazemos a ciência, do modo que sabemos fazê-la. Sois vós e eu que somos responsáveis por ela. Poderíamos, por vezes, ter tendência para dizer que a ciência não é mais do que o senso comum esclarecido e responsável – senso comum alargado pelo pensamento critico e imaginativo. Mas ela é mais do que isso. Representa o nosso desejo de conhecer, a nossa esperança de nos emanciparmos da ignorância e da estreiteza de horizontes, do medo e da superstição. E isto inclui a ignorância do perito, a estreiteza de horizontes do especialista, o medo de que se mostre que estamos enganados, de que se mostre que estamos a ser “inexatos” ou de não termos conseguido provar ou justificar a nossa posição. E inclui a crença supersticiosa na autoridade da própria ciência (ou na autoridade dos “procedimentos indutivos ou das aptidões”). (Popper, 1987, p. 268)
A crença na certeza científica e na autoridade da ciência, para o autor, não passa de uma ilusão, pois a ciência é falível, sujeita a erros, justamente porque ela é um produto humano. Com o filósofo austríaco também aprendemos que o método indutivo apresenta falhas, ou melhor, não se fundamenta logicamente, na medida em que não há como se justificar a inferência do particular para o geral. Ele propõe em seu lugar o método hipotético-dedutivo. De acordo com este procedimento, a ciência parte de um problema que requer a formulação de uma hipótese para explicá-lo. Esta hipótese deve ser submetida a testes. Estes testes podem ser entendidos como tentativas de afastar as teorias falsas, de identificar os pontos fracos de uma teoria, de modo a rejeitá-la quando falseada. A hipótese que se revelar “verdadeira”, ou seja, que não for falseada, é dada como “corroborada”. Com o termo “corroborada”, Popper não quer dizer que ela foi confirmada ou verificada, mas que a hipótese em questão resistiu às tentativas de refutação, não foi falseada.
Mas, futuramente, ela poderá vir a ser falseada. Podemos dizer que, para Popper, o conhecimento científico sempre conserva o seu caráter hipotético, conjectural. Por mais bem testada que seja uma hipótese, ela não perde o seu caráter de conjectura.
Em suma, Popper rompe com a tradição indutivista, na medida em que ela nos dá uma falsa concepção de ciência.
O procedimento metodológico, proposto pelo filósofo, não pretende demonstrar a verdade das hipóteses, tampouco sua probabilidade, mas submetê-las a uma avaliação crítica, com o objetivo de eliminar aquelas que o teste mostrar que foram falseadas. A via de eliminação das hipóteses falsas é dedutiva e não indutiva.
Enquanto a epistemologia de Popper se preocupa com os aspectos lógico-metodológicos da ciência, a abordagem epistemológica de Kuhn representa uma mudança de perspectiva no modo de se entender a ciência e a produção do conhecimento científico. O caminho trilhado pela ciência, para o autor, não obedece ao procedimento indutivo, tampouco tem a ver com a refutação de teorias e hipóteses, conforme propõe Popper.
Kuhn nega-se a determinar o traço distintivo da racionalidade científica por meio dos critérios verificacionistas e falsificacionistas, não porque veja deficiências na lógica de validação das teorias inerentes a estes critérios: seu afastamento da tradição deve ser debitado a sua convicção de que tanto o empirismo lógico quanto o racionalismo crítico de Popper representam formas idealizadas de reconstrução da racionalidade científica e se mostram incapazes de apreender como de fato se dá a prática científica e como a ciência progride.
A racionalidade científica, para Kuhn, não é concebida tendo por base a sua lógica interna, mas fatores históricos, sociológicos e psicológicos. O compromisso da comunidade científica com um determinado paradigma obedece a uma “racionalidade histórica”.
Kuhn, tendo por base a história da ciência, procura ampliar o conceito de racionalidade científica de modo a englobar fatores que tradicionalmente eram considerados objeto de investigação da sociologia do conhecimento e da psicologia da descoberta. O objetivo de Kuhn é mostrar que os fatores psicossociais, que normalmente são vistos como extrínsecos à racionalidade científica, são decisivos para a compreensão de como e por que certos modelos de produção científica se impõem a um grupo de estudiosos em determinados períodos do desenvolvimento científico. Na sua análise histórica, ele pretende desvendar “a estrutura essencial da contínua evolução de uma ciência”. Há assim um padrão, uma estrutura geral de desenvolvimento das diversas disciplinas científicas. Todas elas evoluem de um estágio mais preliminar (primordial) até atingir a sua maturidade científica, na qual uma determinada tradição paradigmática se instala. Essas tradições de investigação definem o âmbito da pesquisa, os métodos a serem utilizados e os próprios problemas a serem investigados.
Nas ciências desenvolvidas há, assim, uma tradição consensualmente estabelecida de solução de quebra-cabeças, norteada por um paradigma único. Os cientistas concentram suas pesquisas em um domínio de problemas claramente definidos e tentam resolvê-lo tomando como guia as soluções exemplares ditadas pelo paradigma. Isto permite que os resultados de suas pesquisas se produzam basicamente na mesma direção e sejam acumulados e incorporados ao campo de estudo. Essa mesma tradição que produz um progresso “intra-paradigmático”, ou seja, por acumulação de resultados exitosos no sentido de aumentar a precisão e o alcance do paradigma, é capaz de alterar sua prática, substituindo uma tradição paradigmática por outra,  quando surgem no interior de uma tradição anomalias que geram crises, minando a confiança no paradigma e fazendo com que apareçam inovações que irão ocasionar uma ruptura revolucionária. Não há possibilidade de duas tradições rivais conviverem juntas por muito tempo: elas são incomensuráveis: as normas de procedimento, as estruturas conceituais, os pressupostos ontológicos e a percepção do mundo são distintas nas tradições rivais. A adoção de uma nova tradição por parte da comunidade científica torna a outra obsoleta. A substituição de uma velha tradição paradigmática por uma nova se dá por meio da persuasão e consequente adesão dos membros da antiga tradição à nova.
Podemos dizer que na concepção de ciência de Kuhn vêm à tona elementos estranhos à sua singularidade explicativa, uma vez que ele considera fundamental na caracterização da prática científica o recurso à pragmática, sobre a qual recaem categorias como as de persuasão, conversão e consenso.
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NOTAS
1) Doutora em Filosofia pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e professora da UFPA (Universidade Federal do Pará).
2) Para um maior aprofundamento da Revolução científica moderna em Kuhn ver sua obra A revolução copernicana (KUHN, 1990).
3) Quando tratarmos do pensamento de Kuhn, esclareceremos os significados do termo paradigma para este autor.
4) Para um maior aprofundamento sobre essa nomenclatura ver o livro de Robert Blanché intitulado A epistemologia (BLANCHÉ, 1983).
5) Trata-se de uma corrente epistemológica que surgiu na década de 20, que se denominou de Circulo de Viena e tinha como representantes Moritz Schlick, Rudolf Carnap, Otto Neurath, Hans Hahn. O Empirismo lógico é também denominado de Positivismo lógico ou Neopositivismo. Esses filósofos defendiam uma concepção de ciência alicerçada em dois princípios: principio do empirismo e o princípio do logicismo. O principio do empirismo estabelece que a única base legítima do conhecimento é a experiência sensível, que somente o dado empírico é capaz de fornecer ao conhecimento um conteúdo. E o princípio do logicismo considera que um enunciado para ter uma validade como científico deve ser passível de ser formulado na linguagem lógica.
6) Popper entende por racionalista “um homem que deseja compreender o mundo e aprender através da discussão com outros homens”. E por “discutir com os outros” entende “criticá-los; solicitar a critica deles; e tentar aprender com isso.” (Popper, 1987, p. 40). O seu racionalismo tem como principio que tudo está aberto à crítica. A atitude critica é característica da atitude racional.
7) Essa denominação “nova filosofia da ciência” destaca sua oposição às principais teses do empirismo lógico e do racionalismo crítico de Popper, que, face a esta nova concepção, passaram a ser consideradas como concepções epistemológicas clássicas ou tradicionais.
8) Historicamente, os filósofos e cientistas ligados ao Circulo de Viena, na década de 1920, foram os primeiros a tomarem a ciência como objeto.
9) Popper esclarece esses dois sentidos dos termos falseável e falseabilidade em sua obra O realismo e objetivo da ciência (POPPER, 1987, p. 20-22).
10) O termo paradigma, na obra de Kuhn, não é unívoco. Os críticos do autor têm sido unânimes em acentuar o grande número de diferentes sentidos em que o termo paradigma é usado. Margareth Masterman, em seu artigo “A natureza do paradigma”, detectou vinte e um sentidos diferentes desse termo, na obra de Kuhn (ver artigo citado, p. 75-80).
11) Kuhn, no “Posfácio de 1969”, para evitar as ambiguidades do termo paradigma, o substitui por “matriz disciplinar”, e justifica esta nova nomenclatura do seguinte modo: “disciplinar”, porque se refere a uma posse comum aos praticantes de uma disciplina particular; “matriz”, porque é composta de elementos ordenados de várias espécies, cada um deles exigindo uma determinação mais pormenorizada (Kuhn, 1975, p. 226).

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