O
fortalecimento do Tesouro Nacional como condição para a legislação de trabalho
na Primeira República: os direitos dos operários do Estado e do setor privado e
a reforma tributária
João
Tristan Vargas*
Resumo:
O artigo pretende demonstrar que as dificuldades
para a aprovação de uma legislação de trabalho na Primeira República só podem
ser compreendidas se as medidas nesse sentido voltadas ao setor privado forem
discutidas em relação àquelas dirigidas ao setor público. O texto aponta nexos
entre essa relação e a iniciativa de criar-se o imposto de renda.
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Abstract:
The article intends to demonstrate that the difficulties to approve a work
legislation in Primeira República can only be apprehended if measures took to
accomplish this goal in the private sector are discussed in relation to those
in the public sector. The paper indicates links between this relation and the
initiative to institute the income tax.
A história da legislação social proposta ou
produzida na Primeira República não pode ser plenamente compreendida se pensada
em separado das regulamentações propostas ou implementadas no âmbito dos trabalhadores a serviço do Estado. Estas
foram objeto de expectativas, impasses e mudanças análogos aos observados no
caso daquela e lhe serviram muitas vezes de modelo.
Os primeiros documentos oficiais da
República proclamam a igualdade de estatuto entre os funcionários públicos:
devia ser eliminada toda distinção baseada em privilégios, garantias e isenções
especiais, como diz o decreto 644/09.01.1890. Desde então, vários projetos na
Câmara foram apresentados, para generalizar às outras categorias de operários a
serviço da União a unificação de seus estatutos com os dos funcionários
públicos, destacando-se, na primeira década do século XX, os de n. 104 (1904),
166 (1906) e 46 (1909).
É provável que considerações de
ordem orçamentária tenham levado os diversos governos da Primeira República a
prestar pouca ou nenhuma colaboração ao Legislativo nessas iniciativas e em
outras, posteriores, de sentido análogo. Contudo, apesar de não implementada a
unificação do estatuto dos operários da União com o dos funcionários públicos
federais, algumas medidas parciais nesse sentido iam sendo aprovadas. É o caso
da lei 2.842/03.01.1914, que orça a despesa geral da República e determina que
os domingos e feriados devem ser pagos aos “operários, jornaleiros, diaristas e
trabalhadores da União”, entre outra medidas.
A ideia de que já havia um
“excesso de favores” aos funcionários públicos parecia ser um obstáculo à unificação
de estatutos, uma vez que ele significava, na visão de muitos parlamentares,
gastos ainda mais excessivos com pessoal. A própria aposentadoria foi tida, até
data próxima do momento de maior afã legislativo no campo do trabalho, muito
mais como favor que como direito,
mesmo por representantes preocupados com a questão da regulamentação do
trabalho em geral, como Maurício de Lacerda (RJ).
A negação da unificação dos
direitos dos servidores do Estado é fundamentada explicitamente pela evocação
dos limites orçamentários. Mas não se pode excluir o peso que um preconceito
contra o trabalho “braçal” possa ter tido na persistência dessa atitude. A
exclusão dos operários implicava, de fato, uma opção por esta ou aquela despesa, opção que pode ter denotado afinidade
de “classe”.
Em junho de 1916, o deputado
Vicente Piragibe (DF) defende projeto apresentado na legislatura anterior pelo
deputado Sales Filho (DF)[1],
pelo qual eram considerados funcionários públicos os feitores de florestas e os
encarregados dos depósitos da Repartição de Águas e Obras Públicas com mais de
vinte anos de serviço. Com isso, entre outras vantagens, poderiam gozar de
aposentadoria (eles já tinham direito a certos benefícios próprios dos
funcionários públicos, como licença com dois terços dos vencimentos). O projeto
atingiria apenas cinco velhos trabalhadores, todos com mais de vinte anos de
serviço.
A visão que o próprio Piragibe
mostrava da aposentadoria dos operários parecia ser a de que esta era algo como
um prêmio por bom comportamento. Respondendo à questão colocada por um outro
deputado, sobre se eles teriam direito à aposentadoria, diz que os cinco
servidores, durante seus vinte anos de trabalho, “podendo ser demitidos sem
processo, não o foram, porque souberam se portar perfeitamente no cumprimento
de seu serviço” e pergunta: “homens que souberam se conduzir durante todo esse
tempo sem uma única falta, não merecem uma garantia do Estado?”
Se a aposentadoria é vista como
prêmio, obtê-la significa integrar um quadro de privilégio. Maurício de
Lacerda, que em outros momentos se empenhou intensamente em obter direitos para
os operários em geral, parecia ver dessa maneira o caso, pois, como adiantamos
acima, se coloca contra o projeto. Diz que, aprovado este, em questão de um ano
ou meses, daria direito àqueles trabalhadores de “pesarem na classe dos
inativos, isso justamente no instante em que todos reclamam contra a orgia das
aposentadorias”.
Ele diz que colaborará, apesar
de negar qualquer confiança política ao governo, com todas as medidas de
“máximo rigor” que este proponha para a revisão das aposentadorias. Os
aposentados são vistos mesmo como uma população parasitária, como privilegiados
sugando os recursos do conjunto da população. Diz ele que, “para não se chegar
a extremos maiores do que os que se anunciam, da taxação de produtos de
alimentação do povo, é preciso não garantir com os dinheiros públicos,
artificialmente, com um tesouro esgotado, uma enorme população, a parasitar
sobre a outra, que terá de pagar essas contribuições”.
O projeto recebe o apoio de
Nicanor Nascimento (DF). Refutando argumentação de Antônio Carlos (MG), líder
da maioria na Câmara, que havia aludido aos gastos excessivos com o
funcionalismo, Nicanor lembra outros gastos injustificados, suntuários, que
tinham sido aprovados. Se estes o foram, argumenta, não haveria razão para não
sê-lo também o projeto, que apontava para despesa muito menor, uma vez que só
dali a quinze anos, quando completassem 35 anos de serviço, teriam os operários
em questão direito à aposentadoria.
Vinculando a discussão da situação dos
operários do Estado à da situação dos operários em geral, ele questiona o
porquê de não se procurar garantir aqueles trabalhadores, se naquele momento as
comissões do Congresso estavam se ocupando “de garantir aos operários, não só
do Estado, como dos de qualquer classe”, assegurando-lhes indenização em caso
de acidente e pensão às famílias. Percebe-se que a concessão de direitos aos
operários em geral fornece argumento em favor da integração dos operários do
Estado aos direitos do funcionalismo.
A negação da unificação dos
direitos dos servidores do Estado é fundamentada explicitamente pela evocação
dos limites orçamentários. Mas acredito que não se possa excluir o peso que um
preconceito contra o trabalho “braçal” possa ter tido na persistência dessa
atitude. Afinal, a exclusão dos operários implicava, de fato, uma opção por esta ou aquela despesa.
Antônio Carlos opôs-se ao
projeto defendido por Piragibe. Justificava impugnar-se a “extensão de tais
favores até ao operariado” pelo fato de ser contra a aposentadoria para os
próprios funcionários públicos já reconhecidos como tal e contra as reformas
militares, pelo seu peso no orçamento[2].
Apesar dessa atitude do líder, o projeto recebeu parecer favorável da Comissão
de Constituição e Justiça e da Comissão de Finanças.
Antônio Carlos, representando
nesse ponto a posição da maioria dos parlamentares, identifica o operariado do
Estado como um conjunto à parte dos funcionários públicos. “Os interesses das classes operárias e dos humildes” (com
essa denominação destacadas, portanto, do conjunto dos trabalhadores a serviço
do Estado), diz ele, vinham sendo cuidados pela Câmara, e a comprovação disto
seria a votação do projeto “importantíssimo” sobre os acidentes de trabalho[3].
Os representantes da bancada do
Rio Grande do Sul, aparentando fidelidade ao princípio positivista de
incorporação do proletariado à sociedade, destacam-se no debate por serem
sistematicamente favoráveis às propostas de unificação de estatutos. Essa
posição dos gaúchos fornece um ponto de apoio para que outros deputados,
defensores da regulamentação do trabalho no setor privado, argumentem em favor
de seu próprio ponto de vista. Nicanor Nacimento, discursando, também em 1916,
em seguida ao gaúcho Álvaro Batista, concorda com este em que “em nossa
democracia plena não podemos estabelecer distinção entre funcionários e
operários” e esclarece que não pleiteia a igualdade apenas quanto aos operários
do Estado, mas no que diz respeito a “todos os operários que desenvolvem a sua
atividade no vasto território nacional”. A todos, a Nação “deve o mesmo amparo
e as mesmas regalias”. Com esta posição, o deputado, ao mesmo tempo que se
choca obviamente com a dos positivistas rio-grandenses, de não-intervenção do
Estado, procura relacionar a discussão da unificação de estatutos dos
trabalhadores a serviço do Estado com a da regulamentação do trabalho no setor
privado.[4]
As restrições manifestadas por
Antônio Carlos à extensão do acesso à aposentadoria, baseadas nos limites do
orçamento, já marcado por um aumento excessivo de gastos com pessoal, encontram
correspondência nos gastos registrados oficialmente. Segundo as contas
fornecidas pelo Ministério da Fazenda, as despesas do Estado com pessoal inativo
haviam dado um verdadeiro salto, nos últimos anos. De 1897 a 1911, os gastos
teriam permanecido estáveis, entre pouco mais de 2.300 contos e pouco menos de 3.000.
De 1912 em diante, porém, os gastos teriam aumentado a ponto de, para 1916,
serem calculadas as seguintes despesas:
Aposentados.........................9.989:344$391 Pensionistas.........................14.636:810$584
Teria
sido justamente a partir do ano de 1912 que cresceu a concessão de
aposentadorias e pensões. “Enquanto se não multiplicaram as aposentadorias”,
“não chegou a ser atingido o limite dos créditos orçamentários e dos créditos
suplementares, pelo revezamento trazido pela entrada de novos inativos e pelo
falecimento de outros” ··.
A partir de 1917, surgem, no
Congresso, propostas em que a regulamentação do trabalho dos operários no setor
público passa a ser tratada juntamente
com a regulamentação do trabalho no setor privado. Em julho de 1917, o
paranaense João Perneta e outros deputados apresentam à Câmara um projeto[5]
contendo, numa primeira parte, estipulações referentes ao “proletariado a
serviço do Estado” e, na segunda, medidas que se destinam ao “proletariado
geral do país”, isto é, aos operários do Estado e aos operários do setor
privado. A parte do texto de Perneta dedicada aos trabalhadores do Estado
propõe, entre outras medidas, estabilidade depois de cinco anos de serviço e
salário que corresponda, “pelo menos, ao mínimo necessário para garantir a
existência doméstica de cada um”. Trata-se de uma extensão de direitos dos
funcionários aos operários, que passam a ser considerados também “funcionários
do Estado”.
Neste projeto, de certo modo, a sorte dos
operários do setor privado se liga à dos operários a serviço do Estado. Por um
lado, os últimos, se passam a ser considerados “funcionários”, não deixam de se
incluir entre o “proletariado geral do país”. Apesar de todas as garantias que
se estendem do estatuto de “funcionário” para o de “proletário”, mantém-se a
expressão – “proletariado” – que separa os operários do conjunto do
funcionalismo. A evidência dessa separação está principalmente no salário. As perspectivas do operário
como consumidor são visivelmente estreitas, circunscritas, no projeto, a uma
espécie de salário mínimo. Por outro lado, o tratamento dado ao proletariado a
serviço do Estado serve de exemplo para o tratamento dos patrões ao restante do
proletariado. Perneta, deputado de orientação positivista, dizia, um ano depois[6],
que seu projeto, se aprovado, seria um “exemplo republicano e regenerador” do governo
ao trabalho no setor privado. Mais do que os outros parlamentares, os
positivistas, com seu princípio de usar a situação dos operários do Estado como
exemplo aos patrões, ligavam a sorte dos operários do setor privado à dos
operários do setor público: dependeria desse exemplo a melhoria da situação
daqueles.
Devemos observar que a situação de fato dos
operários do setor público, em alguns casos não se diferenciava
fundamentalmente da que enfrentava o operariado do setor privado. A Plebe, descrevendo, em setembro de
1917, o que se passava com os trabalhadores da Repartição de Águas e Esgotos da
Capital de S. Paulo, diz que estes “não escaparam à sorte de seus companheiros
de outras classes”:
“Além
de ganharem um salário miserável, ainda o pagamento é feito com o atraso de
seis meses! E o que é mais grave, o que é mais revoltante, o que põe em
destaque a injustiça que preside àquela repartição é o fato de nela se
verificar distinção entre os altos funcionários e os trabalhadores braçais, que
são em tudo desconsiderados. Assim, além de ganharem mais, além de terem todas
as regalias, ainda os altos funcionários recebem seus vencimentos com
pontualidade e dispõem dos inferiores para seus serviços particulares, como
criados, em suas habitações!”[7]
O projeto n. 284, de outubro
daquele ano, substitutivo elaborado pela Comissão de Constituição e Justiça a
diversos projetos sobre trabalho apresentados até então, inclusive o de
Perneta, abrangeu em suas disposições, como fez este, os operários do setor
privado e os do Estado. Porém, estabeleceu um regime único para ambos, não se
detendo a detalhar os direitos daqueles últimos. Ficava subentendido que o
fixado no texto apresentado não invalidava os direitos que já lhes fossem
consignados em regulamentos específicos. Além disso, deixou de propor medidas
que, pelo projeto de Perneta, aproximariam a situação do operário do setor
privado à dos operários de alguns departamentos do governo federal, como a que
concedia férias de quinze dias.
Como substitutivo ao projeto n.
284, foi apresentado, em agosto de 1918, o projeto n. 239. Apesar do retrocesso
em itens fundamentais como a jornada (dez horas, contra as oito do projeto
anterior), não representou uma alteração na orientação, seguida pela primeira
proposta, de tratar no mesmo texto o trabalho no setor privado e no público.
Contudo, a justificativa para não aceitar a concessão de férias para o setor privado mostra pouca disposição para a
unificação de estatutos de operários a serviço do Estado e funcionários
públicos:
“[...]
O regime do trabalho industrial não comporta a equiparação desejada e apregoada
por alguns teóricos, do operário aos funcionários das repartições do Estado,
pois são muito diversas as condições do serviço, correndo o risco de perder a
pouca organização, que ainda tem, se a emenda proposta for aceita”.[8]
Merece atento exame aqui o debate em torno
de propostas de sistematização dos
direitos dos operários a serviço do Estado (em diversas instituições públicas
federais, havia estatutos diferenciados para o pessoal operário), as quais
surgem no Congresso desde o início da década de 1910: importantes indicações
sobre o que se colocava em jogo nos debates a respeito daqueles direitos estão
aí presentes. Esse era o caso do projeto n. 515, do Senado, que, em dezembro de
1918, recebe parecer favorável na Câmara. O texto concede diversas “vantagens”
aos “operários, jornaleiros ou diaristas” da União, fixando, entre outras
medidas, o direito a jornada de oito horas, um dia de descanso semanal e férias
de quinze dias.
No debate seguinte, que ocorreu
naquela mesma data, Andrade Bezerra, relator do projeto na Comissão de
Legislação Social, toca no fulcro das relações entre a questão da unificação
dos estatutos dos servidores do Estado e a da regulamentação do trabalho no
setor privado:
O Sr. ANDRADE BEZERRA – (...) “A
questão, Sr. Presidente, se desloca: ou nós tendemos (...) à equiparação
completa dos operários da União aos funcionários dos quadros dos diferentes
serviços...”
O Sr. OTACÍLIO DE CAMARÁ – “É essa a aspiração
republicana”.
O Sr. ANDRADE BEZERRA – “... ou
procuramos equiparar estes operários aos demais operários, nas garantias
estabelecidas por lei, não só quanto ao exercício do trabalho, como quanto à
reparação por acidentes.”
O Sr. NICANOR NASCIMENTO – “Toda
a legislação que se prepara hoje na França, na Inglaterra, na Itália, tende à
socialização do trabalho. O nobre deputado não negará que Lloyd George acaba de
apresentar como programa em sua plataforma de governo a socialização das minas
e das estradas de ferro.”
“Esta é a tendência
característica, isto é, que o trabalho se uniformize e se integre em função
superior do Estado”.
O Sr. OTACÍLIO DE CAMARÁ – “No
caso concreto, a tendência é acabar com a distinção entre jornaleiros e
funcionários”.
O Sr. ANDRADE BEZERRA – “Sejamos
lógicos, ao menos, se caminhamos para o erro, porque, logicamente, a
argumentação dos nobres Deputados nos leva ao seguinte: à equiparação plena dos
operários aos das indústrias particulares”.
O Sr. NICANOR NASCIMENTO – “Chegaremos
lá”.
O Sr. OTACÍLIO DE CAMARÁ – “Sobre
estas não temos ação” .
O Sr. ANDRADE BEZERRA – “Apelo
para a justiça do nobre Deputado, que neste momento só enxerga o campo restrito
dos operários do Estado, para que proteja e abrigue os interesses de todos os
operários. (...) O ponto para que quero chamar a atenção da Câmara é o
seguinte: Se aprovarmos hoje o projeto que vem do Senado, estabelecendo o dia
de oito horas de trabalho, se concedemos ao operário do Estado os mesmos
direitos dos funcionários públicos, amanhã, quando a Comissão de Legislação
Social tiver de trazer ao conhecimento da Câmara o seu estudo sobre essas
questões, o julgamento da Câmara já estará pronunciado”.
O Sr. RIBEIRO JUNQUEIRA – “É
isto que eu queria evitar”.
O Sr. ANDRADE BEZERRA – “Digo,
como Relator: Se a Câmara se determinar, em relação aos operários do Estado,
por esses favores...”
O Sr. NICANOR NASCIMENTO – “V.ex.
vai generalizar aos outros; muito bem.”
O Sr. ANDRADE BEZERRA - ... “não
terei força moral para me opor à corrente dominante agora, que beneficia dessa
forma os operários. (...)”
“O Sr. ANDRADE BEZERRA –
Chamemos a atenção da Câmara, aceitemos com toda a coragem, lealmente, as
consequências do erro que, me parece, vamos cometer hoje”[9].
Destaca-se
mais uma vez, nessa discussão, o vínculo que representantes do Poder
Legislativo veem entre o problema da unificação dos estatutos dos servidores do
Estado e o problema da regulamentação do trabalho no setor privado. Registrado
em lei o direito dos operários do Estado às oito horas e a outras “vantagens”
do funcionalismo, não haverá “força moral” para impedir a aprovação de direitos
análogos para o conjunto do “proletariado”.
Bezerra havia dito, no início de
seu discurso, que o projeto “cria para os operários do Estado, relativamente
aos das indústrias particulares, um regime de exceção que não me parece conveniente no momento”. Ele defende, em suma,
pelo que se deduz de sua fala, que os operários a serviço do Estado obtenham
direitos equivalentes aos dos demais operários; ou, em outras palavras, que os
primeiros não se elevem acima do nível dos últimos; que, afinal, se mantenham
no estatuto de proletários; ou que, ao menos, esse estatuto comum ao conjunto
do “proletariado” não seja quebrado formalmente, lembremos que já havia
regulamentos diferenciadores para operários em diversas instituições públicas,
por uma lei. O “momento” não é “conveniente” para isso. De fato, o momento é de
grande agitação no meio operário. O temor de que uma medida legal
privilegiadora, excludente do conjunto do operariado, provocasse ainda mais
agitação não seria vão. É de se notar, também, por um lado, o peso que Bezerra
julgava ter, para o destino do conjunto da questão da regulamentação do
trabalho, a aprovação do projeto sobre servidores do Estado; por outro, a
iminência em que demonstra ter a aprovação de medidas de regulamentação do
trabalho para o conjunto do operariado.
Percorrendo
o discurso de Bezerra “a contrapelo”, vemos que, se temia que a aprovação do
projeto unificador dos estatutos de servidores do Estado abriria espaço para a
reivindicação e a aprovação de leis análogas para o conjunto do operariado. Por
um lado se reconhecia o poder de pressão deste sobre o Congresso, por outro,
vemos que, sendo um óbice para a
aprovação do primeiro seu ônus para o orçamento, este problema – a obtenção de
recursos para fazer frente a isso sem mudar a estrutura do Estado – era um
elemento que pesava consideravelmente no que se refere a aprovar medidas legais
dirigidas ao operariado em sua totalidade. Se alguns direitos já tinham,
por regulamento, os operários de alguns setores da administração, a aprovação
em lei significaria a generalização desses direitos para o conjunto do
operariado a serviço do Estado e um aumento significativo de despesas para o
erário.
O debate cresce em intensidade
nos anos de 1919-1920, quando mais algumas iniciativas legislativas vão
aparecendo no âmbito federal e municipal. Lacerda, em novembro de 1919[10],
toca mais uma vez na questão do peso que a unificação dos estatutos teria sobre
o orçamento. Ele diz ter sido informado de que o presidente da República,
Epitácio Pessoa, “inspirador, verdadeiro e leal de todas as leis reacionárias
contra os operários”, é contra a equiparação dos operários da União aos
funcionários públicos “como já fez o Rio Grande do Sul e a própria Prefeitura
do Distrito Federal” e de que teria essa posição “porque julga que o Tesouro
não pode suportar a despesa dessa incorporação”.
Em maio do ano seguinte, o
deputado Paulo de Frontin apresenta o projeto n. 9, de 1920, pelo qual, como os
vários que o precederam, ficariam “abolidas as distinções entre os empregados
federais e os operários, jornaleiros, diaristas e mensalistas da União”. Frontin,
no ano anterior, ocupando o cargo de prefeito, havia assinado decreto no mesmo
sentido para os trabalhadores do Distrito Federal. Como nos outros projetos,
concedia, entre os “direitos e vantagens”, jornada de oito horas, descanso
semanal, férias de quinze dias e aposentadoria. É de se notar que, ao caracterizar
a distinção de estatutos, o parlamentar faz uso da nomenclatura típica dos
empresários – “empregados”, em vez de “funcionários” ou “operários” –
indicando, porém, sua incompatibilidade com o regime republicano. Para a
escolha de termos pode ter pesado o fato de Frontin ter interesses na indústria
e, assim, contato mais frequente com os patrões.[11]
Lobo, acompanhando,
em 1920, o relatório de Bezerra, constata um caráter híbrido no texto do
projeto 515. Comparando este com o projeto de Frontin, que abole a distinção
entre funcionários e operários, ele diz:
“O projeto n. 515 A (...) não contém
dispositivo algum suprimindo aquela distinção entre funcionários e operários,
pois que, conforme vimos, procurou harmonizar orientações diferentes,
concedendo aos trabalhadores da União ao mesmo tempo – direitos e prerrogativas
inerentes ao funcionalismo público, e medidas de proteção aplicáveis ao
operário propriamente dito, entre os quais sobreleva notar as que o amparam e
garantem nos casos de acidentes no trabalho, e que o projeto do Senado, com perigosa imprecisão de termos,
outorgou aos trabalhadores do Estado, com
muito maior amplitude, colocando-os em situação muito mais vantajosa não só do
que os operários que exercitam atividade nas indústrias privadas, mas até do
que os funcionários públicos, com injusta desigualdade, como o demonstrou o
parecer do Sr. Andrade Bezerra.” (Grifos no original.)
Como evidência de
que o uso dos termos “operário” e “funcionário” não é vão, mas, pelo contrário,
distingue estatutos, Lobo chama os trabalhadores que viessem a ser beneficiados
com as disposições do projeto de Frontin, de “ex-operários”. Referindo-se à
composição do salário, ele diz:
“Não se limita,
portanto, o projeto n. 9, de 1920, simplesmente à criação de quadros diferentes
de operários, e desce ainda a regular a inclusão neles, a indicar os direitos e
vantagens comuns aos dois quadros, bem como os especialmente conferidos ao
quadro efetivo, justificando, assim praticamente, não só por esses
dispositivos, como também com aquele em que fixa o dia de oito horas e a semana
de 48 para os ex-operários transformados
em funcionários públicos, a impossibilidade de se abolir completamente
aquela distinção entre operários e funcionários.” (Grifos nossos.)[12]
Frontin estendia “os direitos e vantagens de
empregados federais” aos “empregados, operários, jornaleiros, diaristas e
mensalistas efetivos das caixas econômicas federais, do Lloyd Brasileiro e das
estradas de ferro sob a administração do Governo Federal”. Em novembro, Nicanor
denuncia que é a inclusão dos trabalhadores do Lloyd no quadro que estaria
atrapalhando a aprovação do projeto de Frontin, ainda não votado, o qual,
considerando terem já decorrido todos os prazos regimentais, solicita que seja levado
para discussão e votação independentemente de parecer das Comissões
respectivas. O governo estaria se preparando para uma privatização (não é usado
este termo na época), não querendo arcar com as despesas acarretadas por
direitos do pessoal do Lloyd.
A preocupação com os custos para o erário
era forte argumento contra a unificação de estatutos, um argumento tanto mais
forte quanto despido, aparentemente, de juízo de valor sobre o trabalho do
“operário” e a própria figura desse “proletário” – o que não ocorria com a argumentação
dos patrões. Contudo, a denúncia de Nicanor, entre múltiplos outros indícios,
leva-nos a supor que a preocupação com o corte de gastos não signifique,
necessariamente, um projeto de reestruturação do Estado com vistas a torná-lo
mais eficiente (em que pesem as declarações nesse sentido presentes em
relatórios de ministros da Fazenda, que serão citadas mais adiante neste
artigo). Parece provável que se trate, antes, de uma questão de “sobrevivência”
do Estado, de manutenção deste enquanto tal, com todas as sinecuras e oportunidades
de negociata, cortando porém, despesas que provem “apenas” de direitos da
arraia-miúda.
O ponto de vista pelo qual a questão do
operário a serviço do Estado está vinculada à questão da regulamentação do
trabalho em geral podia ter diversos usos, tanto para favorecer como para
dificultar a aprovação de medidas relativas ao primeiro. José Lobo, presidente
da Comissão de Legislação Social, que se coloca naquele ponto de vista, refuta
as bases regimentais do requerimento de Nicanor, dizendo que a matéria do
projeto de Frontin é “parte integrante da reforma da legislação sobre trabalho,
e tem a sua sorte íntima e indissoluvelmente ligada à sorte desta última”, o
que a excluiria das regras regimentais acerca dos prazos para pareceres.
Em meados de 1920, o presidente
da Comissão, informado de que operários da União iam pedir apoio a Epitácio
para a aprovação do projeto do Senado, o qual, como vimos, tinha sido discutido
na Câmara no final de 1918, havia apresentado ao governo um relatório tratando
das discussões sobre a sistematização dos direitos dos operários do Estado. O
objetivo, que aponta, era dar subsídios ao presidente da República para que
pudesse julgar a matéria. A questão que Bezerra coloca no debate de dezembro de
1918 e que retorna em parecer deste sobre o projeto de Frontin, é o ponto de
partida da argumentação de Lobo, naquele relatório:
“Qual das duas orientações expostas no
parecer Andrade Bezerra deve ser preferida? Abolir a distinção e incorporar o
operariado da União ao funcionalismo, ou manter a distinção, e indicar desde
logo os direitos, garantias e vantagens que devem ser reconhecidos ao operário
da União, na lei sobre organização de trabalho?”
Dirigindo-se à Câmara, Lobo
pondera que, qualquer que seja a opção, não há motivo “de justiça e de
urgência” para destacar, da “reforma geral sobre a organização do trabalho”, em
projeto separado, a parte sobre os operários da União:
“(...) Não será prejudicial e
injusto deixar de manter, quanto à sorte da reforma, a solidariedade que deve
existir entre os operários da União e os operários das indústrias privadas, que
constituem a grande, a visível e incontestável maioria do proletariado do
Brasil?”
Não haveria urgência porque a
situação do operário do Estado, quanto ao salário e garantias complementares,
“seria muito mais folgada, muito mais vantajosa” que a dos operários do setor
privado. Haveria ainda “considerações de ordem política” e de “estratégia
parlamentar” que aconselhariam a não-separação. Os operários do Estado, “pela
situação que desfrutam nos departamentos que trabalham e que lhes proporcionam
amplas facilidades”, reúnem condições para exercer pressão sobre os poderes
públicos:
“(...) tanto que raro é o dia em
que uma comissão deles não age, aqui na Câmara, em prol da causa que defendem,
ora junto ao leader da maioria, ora
junto aos leaders das bancadas,
membros da Comissão de Legislação Social, etc”.
Como formam “um enorme
contingente de eleitores”, muito maior que o do restante do operariado, dispõem
de “armas e recursos poderosos, que faltam aos outros operários”. A sequência
do argumento é curiosa:
“Separá-los, portanto, Sr.
Presidente, do projeto geral, reorganizando o trabalho, será privar a grande
massa proletária, a maioria dos que exercem atividade produtora no Brasil, de
elementos indispensáveis à vitória legal da classe inteira.”
Além de tais considerações
“políticas e estratégicas”, seria preciso levar em conta a tendência já
manifestada antes da guerra e hoje “universalmente aceita” de se considerar
como “um só todo”, como “um vasto organismo”, “todas as classes operárias”, que
formariam assim “uma só e única família – a grande família proletária”. Nos
“ensinamentos do socialismo contemporâneo” só haveria afirmações contra a
“violação da solidariedade operária”, que ocorreria caso fosse votado em
separado o projeto de Frontin.
A forma manifestamente
corcoveante da argumentação denuncia que há uma intenção não explicitada. A
alegada preocupação em não separar operários do Estado e operários do setor
privado, neste caso, compatibiliza-se
muito bem com outra preocupação, mais “concreta”: o aumento dos gastos com
pessoal. Enquanto o operário do Estado for “proletário”, mantendo-se próximo do
nível dos demais operários, o Tesouro está preservado de maiores despesas.
Se podemos considerar plausível
a motivação do peso no orçamento, além dessa motivação mostram-se, no discurso
de Lobo, elementos que, por via diversa, apresentam afinidade com a visão dos
empresários. Afirmando apreensão com a divisão da “grande família proletária”,
no caso da aprovação do projeto, que retiraria do seio dessa “família” os
membros com maior poder de pressão, por sua qualidade de eleitores, o deputado
mostra afinidade com a visão dicotômica dos empresários. A diferença é que
confere “sinal positivo” à qualidade de proletário – o que não deixa de ser uma
forma inteligente de colocar-se pela perpetuação da segregação social entre
operários e “empregados”.
Em agosto de 1920, Maurício de
Lacerda retira-se da Comissão de Legislação Social, indignado com a demora do
governo em apresentar informações por ela solicitadas como subsídio
indispensável para o encaminhamento dos trabalhos relativos aos operários da
União. Em seu discurso justificando a decisão, explicita mais um nexo entre a
regulamentação do trabalho no setor público e no privado. Para ele, os
operários do Estado deveriam ser “os primeiros” a ter regulamentado seu regime
de trabalho, “para que o governo tenha autoridade de sancionar uma lei que
intervenha nas relações dos operários privados na sua vida, entre os patrões e
os operários da indústria, do comércio como da lavoura”.[13]
De todas as medidas propostas no
último projeto sobre o assunto (o de Frontin), apenas as férias de quinze dias
foram aceitas pelo governo. O item aparece em decreto de 1921[14],
elaborado pelo Poder Executivo. Até o golpe de outubro de 1930, nenhuma medida
de unificação de estatutos no âmbito dos trabalhadores a serviço do Estado
havia sido tomada, em nível federal, além do já mencionado. As propostas
abrangentes a respeito feitas no Congresso não se tornaram lei.
Os projetos do Legislativo com relação a
trabalho, mesmo quando aprovados em comissões, tinham em geral seu caminho
obstruído pela presidência da República. Por quê? Parece-me, diante do exposto,
que um motivo de peso é justamente a vinculação que havia entre a
regulamentação do trabalho no setor privado e a legislação sobre o trabalho dos
operários a serviço do Estado.
Nenhuma questão de “princípios”
– mesmo o princípio de liberdade de trabalho (que na sua acepção corrente tinha
um sentido bem preciso e no seu sentido de obstáculo às leis de trabalho nada
tinha de hegemônico[15])
– impediria o Estado de regulamentar à situação dos seus servidores. Como bem
prova a posição dos positivistas, nada há de “errado”, do ponto de vista desse
“princípio” – muito pelo contrário – que o Estado, como patrão, o faça. A
explicação para esta hesitação deve ser buscada, portanto, em questões
pragmáticas.
De um lado, o que fosse decidido
para os operários do setor privado figuraria como patamar mínimo para os do
setor público. De outro, a regulamentação do trabalho neste setor, tendo o
caráter, antes, de uma consolidação de direitos, implicava, mesmo que não se
unificassem os estatutos de “funcionários” e “operários”, a extensão, para o
conjunto dos servidores, incluindo o enorme contingente dos que estavam fora de
qualquer quadro efetivo, de algo do já fixado para o quadro efetivo de algumas
oficinas e repartições, nada impediria, certamente, a convivência dos antigos
regulamentos, que estabeleciam outras “vantagens”, com a nova lei geral, que
não necessariamente incluiria todas estas.
A sorte da regulamentação do
trabalho no setor privado estava intimamente ligada à da sua regulamentação no
setor público. As discussões a respeito de ambas ocorreram simultaneamente,
algumas vezes provocadas pela inclusão no mesmo projeto de lei. Restam ainda a
esclarecer muitos dos nexos entre uma e outra questão. Mas, sem dúvida, a
regulamentação do trabalho em geral traria aumento de gastos para o Estado, em
primeiro lugar, pela criação de direitos que os seus operários também teriam de
receber. Se o peso de tais direitos seria demasiado para o erário, acredito que
não há como avaliar de forma precisa. Em matéria de despesas, é muito incerto o
critério daquilo que os governantes elegem como prioridade, podendo, um aumento
que parece relativamente modesto, parecer, a olhos governamentais, excessivo.
Não se afirma aqui que não houvesse de onde tirar o dinheiro. Como é óbvio
quando se trata de orçamento público, a opção por esta ou aquela despesa
depende da importância que a elas atribuem aqueles que detêm o poder decisório,
juízo que varia, muitas vezes, de acordo com conveniências pessoais.[16]
O que, porém, parece ter pesado ainda mais é
que o tratamento que a questão da regulamentação no setor público recebeu no
Legislativo acarretava maior dificuldade para sua aprovação pelo governo. A
extensão dos direitos vigentes em algumas oficinas e repartições à totalidade
da administração, embora não tenhamos aqui meios de quantificá-la,
representaria provavelmente um aumento não pequeno de gastos. De onde retirar o
montante de recursos para fazer frente aos custos dos novos direitos? Diminuir
despesas em outras áreas era algo obviamente impensável. Portanto, os recursos
só poderiam vir de um crescimento da arrecadação. Como obtê-lo?
Se pudermos dar como recurso de
argumentação a afirmação de Lacerda de que o Estado, para regulamentar o
trabalho no setor privado, precisa antes fazê-lo no seu próprio terreno, não
deixa de haver peso nesse argumento do ponto de vista do governo. Nossa
pesquisa não permite ver como decisiva na sorte da regulamentação a pressão dos
empresários[17].
Mas esta existiu, sem dúvida. Aquele argumento teria então importância
estratégica, frente ao patronato.
Ao longo da década de 1910, ao
mesmo tempo em que, no Congresso Nacional, eram discutidas propostas de
legislação social, discutia-se também o tema de uma reforma tributária. Os dois temas, coincidindo no tempo de sua
discussão, acabaram entrelaçando-se. A grande novidade no campo dos tributos,
na época, era o imposto de renda; no
que diz respeito aos debates sobre tributação, foi para esse imposto que as
discussões no parlamento convergiram. O problema da regulamentação do trabalho
no setor público, colocando a questão dos recursos para enfrentar os novos
gastos, contribuiu para dar novo significado às propostas de criar aquele
imposto. Fonte de novos recursos, a sua implementação vincula-se não apenas à
regulamentação do trabalho dos servidores do Estado, como também à
regulamentação do trabalho no setor privado, uma vez que ambas estavam ligadas.
A criação do imposto de renda
como o conhecemos hoje data da década de 1920. Antes disso, o que havia no
gênero eram tributos sobre rendas específicas. O imposto que alcançava todas as
formas de renda, com esta ou aquela isenção, e incidia sobre a renda total dos
indivíduos não surgiu sem que houvesse intensas disputas e resistência por
parte de grandes interesses por ele atingidos. Para esse tributo convergiam
expectativas diversas, não necessariamente excludentes, embora com maior
frequência não coincidentes: de um lado, a da redistribuição de renda; de
outro, a do atendimento à crescente demanda de gastos do Estado. Com a
necessidade de sua implementação, concordaram o governista Antônio Carlos e o
acérrimo crítico de todos os governos, Maurício de Lacerda.
Devemos lembrar que o imposto de
renda é uma das reivindicações mais antigas dos socialistas, remontando ao Manifesto
Comunista, que menciona, entre as medidas para “retirar, aos poucos, todo o
capital da burguesia”, o “imposto fortemente progressivo”. O “imposto direto e
proporcional sobre a renda” consta do “programa mínimo” do Partido Socialista,
aprovado no auto-intitulado Segundo Congresso Socialista Brasileiro, reunido em
S. Paulo em 1902.[18]
O surgimento do imposto de renda
está ligado diretamente à busca de recursos para o crescente aumento de
despesas do Estado sem correspondente aumento de receita, correlação apontada
em textos oficiais, como os relatórios do Ministério da Fazenda de 1912 a 1916.
Entre os motivos para o crescimento das despesas, indicava-se insistentemente o
gasto com pessoal. Em sessão no Senado em setembro de 1914, o senador Leopoldo
de Bulhões (Mato Grosso) lembra que o ministro da Fazenda, Rivadávia Correia,
chamava atenção para a necessidade de “pôr cobro a esse abuso de
aposentadorias, reformas e jubilações”, pois, nas palavras do ministro, “os
aposentados e reformados já formam uma legião”:
“Estamos assistindo à formação
de duas séries de funcionários, como a dois exércitos e duas marinhas, ainda
agravadas pelos quadros suplementares, que não se explicam e acarretam pesados
ônus para os cofres públicos”.
Para o ministro, se não se atingisse
o equilíbrio orçamentário, seria preciso recorrer a novos impostos de consumo,
além de aumento no imposto sobre vencimentos[1].
Comentando o alvitre do ministro, Bulhões assinala a “nossa tendência para
sempre procurar recursos nos impostos indiretos” e propõe como alternativa a
criação do imposto sobre a renda:
“Pergunto
ao Senado se já não será tempo de orientarmos por outra forma as nossas
finanças, de apelarmos para uma nova fonte de renda, aliás, muito produtiva,
que corrija os defeitos do sistema indireto, estabelecendo a igualdade entre as
contribuições que devem pesar sobre as classes operárias e as classes que gozam
de bens da fortuna”.[19]
Fazendo
um retrospecto da situação do Tesouro desde a proclamação da República, a
mensagem presidencial de 1920 explica a suspensão de pagamentos da dívida
externa por duas vezes e a situação de contínuo desequilíbrio dos orçamentos,
com déficits sucessivos, a princípio pelas despesas com as “graves perturbações
da ordem pública” que se seguiram à proclamação e, depois, pelo “aumento colossal do funcionalismo”
(grifos nossos).[20]
Em seu relatório como ministro da fazenda em
1916, Pandiá Calógeras propunha a criação de novas contribuições, para fazer
frente à queda na renda aduaneira. Para decidir sobre elas, dizia ele: “convirá
cogitar da distribuição mais equitativa e mais republicana dos tributos, pois o
que se tem feito até hoje é agravar as dificuldades das classes já oneradas”. O
que se teria feito até então teria sido aumentar os coeficientes dos impostos
já existentes. O ministro achava necessário igualar a carga fiscal exigida “à
produção industrial ou ao aproveitamento de capitais”, exigindo-a também “a
quantos vivem atualmente sem ônus apreciáveis sobre seus rendimentos, sobre o
meneio do crédito ou de riquezas acumuladas”. Além de alterações no imposto de
consumo, ele defendia buscar “desenvolvimentos
no imposto de renda” (grifos nossos).[21]
Assim, nota-se que o imposto de
renda vai aumentando sua presença como alternativa para a obtenção de recursos para
o Tesouro – na atitude pragmática do ministro, esse tributo se adiciona ao imposto de consumo, em que
pese à posição doutrinária de outros defensores da tributação sobre os
rendimentos, que a queriam como substituta
àquele. Com a guerra, a questão do imposto de renda havia entrado de vez na
pauta de preocupações dos governantes. A diminuição da renda aduaneira, devido
não só à dificuldade para exportar, mas, principalmente, para importar, tinha
provavelmente muito a ver com isso.
O tema da criação de um imposto geral sobre
a renda mostra-se bastante frequente nas discussões na Câmara dos Deputados, nestas,
vale notar a presença da bancada do Rio Grande do Sul, que procura apresentá-lo
como um tributo equitativo, republicano. O tributo é lembrado quase sempre como
um mecanismo mais justo de arrecadação de recursos e, mesmo, muitas vezes, como
um contrapeso à injustiça social. Entre os parlamentares que se manifestam
nesse sentido, estavam Maurício de Lacerda e Nicanor Nascimento, que vinham
apresentando propostas de regulamentação das relações de trabalho. Como
resultado da convergência de pressões favoráveis à alteração do sistema
tributário vigente, é criada, na Câmara, a Comissão de Reforma Tributária, no
final de 1918, portanto, paralelamente à criação da Comissão de Legislação
Social, tendo entre suas atribuições o estudo das propostas sobre o imposto de
renda.
Enquanto as discussões avançam, medidas
parciais, que ampliam a tributação sobre a renda vão sendo adotadas, por
iniciativa ou com o apoio de Antônio Carlos. A princípio, este se havia
mostrado reticente quanto ao novo tributo, mas em relativamente pouco tempo se
torna decididamente favorável a ele. Na lei de orçamento da receita para 1920,
é implementado o imposto sobre os lucros da indústria fabril, por iniciativa de
Antônio Carlos. A medida sofreu a oposição do deputado Manoel Vilaboim (SP),
que arguiu o imposto de inconstitucional. Nos meses finais de 1920, entra em
discussão a proposta de criar-se o imposto sobre lucros comerciais. A Associação
Comercial de S. Paulo o reputa “inexequível” e propõe substituí-lo por uma lei
das contas assinadas. O imposto, porém, passa a constar da lei orçamentária
para 1921. Em outubro desse ano, Mário Brandt, deputado por Minas Gerais,
apresenta um projeto para criar o “imposto geral sobre os rendimentos
líquidos”. O projeto incluía tudo que já estava listado na lei orçamentária
para 1921, acrescentando, entre outras rendas, os lucros líquidos da lavoura e
os “proventos das profissões liberais, artísticas e outras quaisquer e dos
ofícios de qualquer natureza”. A proposta não chega a ser aprovada, mas
permanece como subsídio para discussão e parte de seu conteúdo é incorporado na
lei orçamentária para 1922[22],
que acrescenta o imposto sobre “lucros das profissões liberais”.
O alargamento da esfera de
tributação sobre a renda faz com que se coloquem em debate itens que se
relacionam com a definição de cidadania. Em novembro de 1921, discursando
contra parecer da Comissão de Finanças que recomendava não cobrar o imposto
sobre os lucros comerciais relativos aos balanços de 1920[23],
Antônio Carlos toca na questão dos deveres do cidadão para com o Estado. Na
sequência de seus argumentos, ele diz:
“O direito do Estado sobre o
patrimônio daqueles que vivendo na comunhão social são obrigados a concorrer
para as despesas comuns, antecede ao direito do indivíduo sobre esse mesmo
patrimônio”.
Vemos que, na discussão do
imposto de renda, uma das colunas fundamentais do capitalismo – o direito de
propriedade – tem de ser pensado em sua relação com as exigências de
sustentação do Estado. O deputado pondera que, “desde que não há outro meio
para se conseguir o equilíbrio dos orçamentos”, “dever máximo” no momento, “não
há como fugir ao imposto de renda, em todo o seu desdobramento”. Vem a ser dele
a iniciativa que, finalmente, cria o imposto de renda tal como o conhecemos
hoje: trata-se de emenda ao projeto de orçamento da Receita para 1923[24],
do qual ele era o relator. Diz seu artigo 1o:
“Fica instituído o imposto geral
sobre a renda, que será devido, anualmente, por toda a pessoa física ou
jurídica residente no território do país e incidirá, em cada caso, sobre o
conjunto líquido dos rendimentos de qualquer origem”.
O tributo deveria substituir
todos os impostos que figuravam, no orçamento da Receita, sob o título “imposto
sobre a renda”, mas não seria arrecadado já em 1923, sendo-o só no ano
seguinte. A emenda foi incluída na lei orçamentária para 1923[25].
Saudando a decisão da Comissão de Finanças de instituir o imposto de renda,
Otávio Rocha (RS) diz, em dezembro de 1922:
“Assinala-se, assim, a
administração financeira que se iniciou por esse passo agigantado em benefício
da racionalidade da tributação, desafogando o pobre, ora sob o mais iníquo dos
regimes tributários”.
As expectativas projetadas, no
discurso, são de grande extensão: “E em 1924 começaremos a redenção do
proletariado brasileiro, sobre cujos ombros tem pesado até agora o irracional e
revoltante sistema do (sic) impostos (sic), em que rico e pobre deixam aos cofres
públicos quase a mesma taxa para a sustentação do Estado”.
João Cabral (PI), na mesma
sessão, também felicita a Comissão pela decisão, porém discorda de Otávio
Rocha, que “se deixou embair pela fantasia de funções socialísticas do
imposto”. Este, teria como diz “a maioria das autoridades neste assunto”, um
fim “eminentemente fiscal e só muito secundariamente é que poderá ter fim
moralizador, igualitário ou socialístico”.
Antes da criação do imposto
geral sobre a renda, os rendimentos do trabalho tributados eram apenas aqueles
dos funcionários públicos; os outros rendimentos tributáveis eram os lucros do comércio, indústria etc. Com a
implementação daquele imposto, a faixa de rendimentos tributáveis oriundos do
trabalho se alarga para abranger as atividades econômicas da esfera privada.
Porém, os operários em geral estão
fora da tributação. No primeiro regulamento do imposto sobre a renda, são
mencionadas, entre as profissões
sujeitas ao tributo, a de gerentes, contadores, guarda-livros, administradores
e empregados do comércio ou de
qualquer outra indústria, inclusive a agrícola, e de sociedades civis e
instituições, caixeiros viajantes, representantes comerciais, além de diretores
e membros dos conselhos fiscais de sociedades anônimas e instituições filantrópicas.
Mencionam-se ainda “profissões ou artes quaisquer”, “indústrias e profissões
educativas”, como imprensa, livrarias, agências de jornais, oficinas de
tipografia e encadernação etc.[26]
Não sabemos se “artes” inclui o trabalho dos operários empregados em tipografia
e encadernação. Esta seria a única exceção ao padrão de sujeição ao imposto de
renda, que segue em geral a noção de “profissão”[27]
disseminada entre os empresários.
As perspectivas de arrecadação
do imposto não eram promissoras. Examinando o projeto de orçamento de receita
geral para 1925, um parecer da Comissão de Finanças da Câmara de dezembro de
1924[28],
o relator da Receita é Afonso Pena Jr., de Minas, diz que o tributo foi
instituído de forma “aleijada e inoperante”. Seu rendimento prevê o texto: “a
custo atingirá ao das cédulas autônomas[29],
desde muito aclimadas em nosso regime fiscal”, isto pelos “mil tropeços e
dúvidas, derivados da própria lei”. A lei do imposto, apesar do “excelente
projeto” de que se originou, seria “pouco menos que inexequível”, impondo-se a
sua reforma:
“Tal como se acha, o nosso
chamado imposto geral sobre a renda,
longe de ser geral, é restrito, tão limitado, que pelo menos quatro quintos dos
rendimentos colhidos no país escapam à sua incidência”. (Grifos no original.)
Vê-se que a criação do imposto
evidenciou o imenso potencial tributário da atividade econômica do país. O
parecer propunha alargar ainda mais sua incidência, incluindo-se os lucros da
agricultura e os dos capitais imobiliários. O projeto de orçamento, contudo,
não se transformou em lei, devido à obstrução da minoria no Senado. Alguns de
seus itens, entre os quais a taxação sobre as rendas provenientes da
agricultura, foram adotadas na lei da Receita para 1926.
No início de 1925, vigorando
ainda a lei orçamentária para 1924, que presidiu à primeira experiência de
aplicação do imposto de renda, o governo Bernardes alardeia cortes nas
despesas. Suspendeu as obras públicas, diz Aníbal Freire, ministro da Fazenda,
em relatório de 1926[30],
“de modo a aliviar os encargos do Tesouro”, prosseguindo-se apenas as já
contratadas e aquelas cuja paralisação causaria maiores prejuízos. Não teria
sido possível, porém, obstar o desequilíbrio financeiro, devido aos gastos com
o levante de 1924. Mesmo assim, o déficit em 1925 teria sido muito menor que
nos anos anteriores: de 219.587:678$566 (papel) em 1923, teria caído para
90.634:471$844 em 1924, chegando a 3.848:302$827 em 1925. O governo buscava
fazer crescer a arrecadação.
Em sua argumentação em favor do
aperfeiçoamento dos meios de arrecadação, Aníbal, no mesmo documento, de forma
bastante diluída, coloca em paralelo a criação de leis sociais e a criação do
imposto de renda:
“A legislação no Brasil, em certos ramos,
tem visado de preferência às relações entre o Estado e as classes mais
favorecidas. Ao contrário do que pode supor a malevolência, esse trabalho de
adaptação do Estado aos interesses dos elementos mais fortes da sociedade não
se originou de móveis subalternos. Derivou-se, antes, do estado geral das coisas
públicas e do exame pouco rigoroso de vários fenômenos de ordem social e
política. A ausência, no Brasil, de barreiras e diferenças intransponíveis
entre as várias classes tem sustado a aplicação dos princípios de legislação
social, a qual é por si só capaz de afastar eficazmente dissídios fatais à
organização da sociedade.
A nossa organização tributária sofre a
influência desses fatores. Submetida, quanto aos direitos de importação, às fórmulas
da política protecionista tem como elemento vital os impostos indiretos.
Tributação assim organizada repercute, de modo sensível, na massa geral dos
contribuintes, concorrendo para o encarecimento do custo das utilidades. Daí a
carência de escolher entre as formas de tributação a que melhor se aproxime das
normas de justiça e elasticidade.
Assim, na ordem financeira, o imposto de
renda tem de operar como fator de equilíbrio na contribuição que cada cidadão
deve trazer em medida justa e razoável para ocorrer aos encargos nacionais.
A singularidade do nosso regime tributário
está, pois, em que ele concorre para fazer pesar sobre as classes menos
favorecidas maiores ônus. [...]”
Assim, como a legislação social,
cuja falta procura explicar – o que não significa aprovar – pela suposta ausência de “barreiras e diferenças intransponíveis”
entre as classes, o imposto de renda traria equilíbrio à organização social,
contrastando com a natureza desigual e injusta do imposto de consumo. Por isso,
“urge remodelar” o imposto sobre a renda, fazendo-o incidir sobre “todas as
formas de atividade” e “fazendo-o recair, de preferência, sobre os que auferem
lucros consideráveis no emprego de capitais”.
A arrecadação do imposto de
renda estaria muito abaixo do que se poderia esperar. Atingiu em 1925 cerca de
32 contos, contrastando enormemente com a do imposto de consumo, que no ano
anterior havia chegado a mais de 299 contos. No relatório de 1926, o ministro
da Fazenda, citando relatório do delegado geral do imposto sobre a renda, Souza
Reis, apontava as falhas da lei orçamentária para 1924. Além de isentar os
rendimentos da agricultura, imóveis e títulos da dívida pública, os abatimentos
para o comércio e indústria teriam levado a “desigualdades incompatíveis com a
natureza do tributo”. Comparando o volume total de operações declarado pelas
firmas comerciais em 1924 e 1925, o rendimento tributável que se pode calcular
com base nesse dado e o rendimento efetivamente computado nas declarações
desses anos, conclui ter havido um abatimento de 41 e 45%, respectivamente,
nesses dois anos. No caso das sociedades anônimas, este teria sido ainda maior:
61% nos dois exercícios.
A “injustiça da tributação” se
evidenciaria ao se comparar esses abatimentos com os obtidos por outras
categorias de contribuintes, como os portadores de ordenados, salários,
bonificações, rendas de profissões não comerciais e juros de empréstimos, que,
naqueles mesmos dois anos, teriam sido de, respectivamente, 15 e 10%. Além
disso, os sócios das firmas comerciais e os acionistas ficavam completamente
livres de tributação, tendo a lei atingido apenas as pessoas jurídicas do comércio e indústria. A lei ainda oferecia
outras vantagens para os negociantes. Deste modo, aponta o delegado geral,
estavam isentos os proprietários, os acionistas, os agricultores, os portadores
de títulos da dívida pública, “enfim, todos os capitalistas”. O imposto de
renda até 1925 teria sido, portanto, “um regime intolerável” e teria sido por
isso que foi reformado.
Devemos observar que a mesma “injustiça”
apontada no relatório de 1926 pode ser constatada quando se considera o volume
de rendimentos tributáveis declarados: somando-se os das firmas comerciais e
sociedades anônimas em 1925, temos pouco mais de 579 contos, contra mais de 370
contos da categoria que inclui os assalariados. Vê-se que, proporcionalmente, o
trabalho havia sido mais tributado que o capital.
Por essa época, como se constata, o imposto
de renda ainda não representava uma fonte de recursos que fizesse alguma
diferença considerável no orçamento, a ponto de liberar entraves que a sempre
apontada exiguidade deste pudesse trazer à criação de leis sociais. Tal
limitação do Tesouro aparece, de forma um tanto paradoxal, na defesa, feita pelo deputado Carvalho
Neto (SE), de uma proposta de lei de trabalho, em dezembro de 1925. Os termos dessa
fala, contudo, confirmam, de modo bastante explícito, como o problema dos
recursos financeiros do Estado eram, em geral, parte necessária das
considerações envolvendo a decretação de medidas para regulamentação do
trabalho.
O que se debatia era uma versão de Código de
Trabalho, oriunda do projeto 265, de 1923. O deputado Afrânio Peixoto (BA)
discordava de, no item que tratava das Caixas
Profissionais e de Pensões, não figurar a obrigação de para seu fundo
contribuir o Estado, como, pelo texto, deveriam fazê-lo patrões e operários. A
razão da forma pela qual optaram os autores da proposta era, dizia Carvalho
Neto, que não se podiam “excogitar fontes de receita tributária, tamanha já é a
carga dos impostos que obtiveram a capacidade do contribuinte nacional”. Criar
mais impostos, do mesmo caráter que o dos já existentes, para assim
possibilitar a contribuição do Estado, não faria sentido:
“[...] desgraçadamente, pelos defeitos do
nosso sistema tributário, se fôramos criar esses novos recursos, com aplicação
especial para o seguro operário, está visto, é intuitivo, evidente, que
acarretaríamos imprevidentes e ilógicos, com uma consequência diametralmente
oposta aos fins colimados pela lei. Porque, a falar com os entendidos no
assunto, o nosso sistema tributário, ‘tendo sido organizado com intuitos
exclusivamente fiscais, não é equitativo, pesa exclusivamente sobre as classes
operárias, beneficiando o capitalismo, e não consulta mais os interesses
econômicos do país”.
De qualquer modo, se o Estado
não contribuiria para o fundo dos operários do setor privado, não poderia
eximir-se dessa obrigação no caso de seus próprios operários:
“[...]
o Estado assume, em face dos seus empregados, deveres que não podem ser menores do que os que aos operários prendem
as empresas particulares. Ora, nesta hipótese, é o Estado patrão regido
pelos mesmos princípios que regulam as relações entre operários e patrões, no
domínio privado. Daí a obrigação que lhe corre de contribuir financeiramente
para o seguro dos seus operários, nas condições estipuladas na lei”.[31]
O modelo de seguro social pelo
qual o Estado deveria levar a sua parte ao fundo geral destinado aos operários
dos setores privado ou público, modelo rejeitado pelo deputado por Sergipe,
traria uma obrigação financeira a mais para o erário. No entanto, como bem
coloca o parlamentar, a proposta por ele defendida, mesmo não trazendo essa
obrigação, cria gastos para o Estado, já que a lei valeria tanto para o setor
privado como para o público. A mesma observação é válida, podemos acrescentar,
para, salvo casos muito especiais, qualquer outra lei de trabalho que
implicasse em despesas para o patrão.
No início de 1927, já no governo
Washington Luís, com Getúlio Vargas como ministro da Fazenda, há um recuo na
intenção de estender a abrangência do imposto de renda. Foi concedido um
abatimento de 50 % no imposto devido e, atendendo uma das principais
reivindicações das associações comerciais, o tributo sobre os lucros ou
dividendos das empresas distribuídos aos sócios ou acionistas foi suprimido.
Até o fim da Primeira República, essas disposições de 1927 permanecem.[32]
Enquanto os representantes de
trabalhadores buscavam aprofundar o alcance do novo tributo, os patronais
procuravam reduzi-lo. Grupos políticos ligados aos trabalhadores, como vimos no
caso do programa do Partido Socialista de 1902, tinham no imposto de renda uma
destacada bandeira. Em 1926, o item aparece em manifesto do PCB, que exige a
extensão do tributo à grande propriedade agrícola, até o final de 1925, a atividade agrícola
estava isenta desse tributo. Os comunistas, assim, incorporavam um item da
pauta de governo de Bernardes e propunham seu aprofundamento. A plataforma do
Bloco Operário, divulgada em fevereiro de 1927, chamando a atenção para o
desnível entre a arrecadação do imposto de consumo e a do imposto de renda,
defende que “só os RICOS devem pagar impostos” (maiúsculas no original).
Do lado patronal, o descontentamento também
se apresentava. A Sociedade Rural Brasileira protestava, em manifesto do ano
anterior, contra a extensão do imposto de renda à agricultura.[33]
A Associação Comercial de S. Paulo, em texto apresentado em reunião das
associações comerciais no Rio, no mesmo dia do manifesto da Sociedade Rural,
diz que a entidade “sempre se bateu calorosamente [contra o imposto de renda],
por considerá-lo inadaptável ao nosso país”, mas constata ter sido “vencida
nessa campanha como vencidas foram todas as demais associações da República”[34].
Lembrando que o tributo já vinha sendo cobrado há vários anos, produzindo
arrecadação “da qual o governo não poderá abrir mão facilmente”, o documento
propõe que as reclamações se centrem em duas questões: a incidência do imposto
sobre os lucros do comércio e da indústria distribuídos aos sócios das
empresas, depois de já terem sido taxados quando estavam em poder destas (a
“dupla tributação”), e o “altíssimo” coeficiente de 20 % sobre o volume das
transações ou das receitas brutas das sociedades comerciais, como base para o
cálculo da renda tributável.
Alguns textos oficiais,
produzidos por representantes do Poder Executivo durante o governo Bernardes,
que se empenhou por aprofundar o alcance da tributação pelo imposto de renda,
merecem destaque, pelas indicações que fornecem sobre as relações entre o
alargamento do imposto de renda e a redefinição de certos determinantes da
esfera da cidadania.
Em mensagem ao Congresso em maio
de 1925, o presidente afirma a necessidade de modificar as leis do imposto
surgidas em 1922 e 1923 para tornar a tributação “mais geral e mais justa”:
“Dentro das leis que temos, as classes que, de
preferência, se dedicam à exploração do capital escapam totalmente ao imposto,
ou gozam de elevadas isenções, que não devem perdurar. (...) Para que produza
os efeitos econômicos e fiscais que lhe são próprios, é necessário ampliá-lo a
todas as classes, com as isenções limitadas às instituições de filantropia e
aos proletários com rendimentos mínimos”.
O imposto de renda deve abranger
todas as classes. Quando fala em classe, o discurso, muito provavelmente,
segue o modo patronal de pensar e se refere à localização dos indivíduos numa
classificação de acordo com a atividade. Quando fala em classes, então, o discurso está querendo referir-se a indivíduos: com o imposto de renda, já
não se procura tributar apenas a atividade econômica, como no caso do imposto
de consumo e do imposto sobre indústrias e profissões. Este último, de âmbito
municipal, tem por base o uso do espaço
da cidade por uma atividade lucrativa.
O discurso fala em isenções.
Além das “instituições de filantropia” (isto é, de caridade), os proletários devem estar isentos. Se estão isentos, onde está a
proclamada universalidade do tributo? No
próprio fato da isenção. É um tributo
que, em princípio, abrange todas as
pessoas. Todos que têm rendimentos. Não é o modo de ganhar dinheiro que
acarreta a inclusão ou a exceção. As exceções se dão pelo fato de esses
rendimentos serem mínimos, isto é, serem o mínimo para acorrer à sobrevivência
do indivíduo ou de sua família, sendo isto, portanto, o que define o proletário[35].
O imposto de renda estabelece
uma referência para todos os cidadãos – a renda, o rendimento. Alguns auferem
rendimentos apenas por sua localização nesse ponto de afluência de valores que
é a sua propriedade. Outros, por seu trabalho.
Com a criação de categorias tributáveis que agrupam rendimentos oriundos do trabalho, este é elevado à qualidade de fundamento, base de cidadania.
O pagamento de tributos, por si só, não
torna ninguém cidadão. Um estrangeiro os paga e nem por isso o é. Trata-se de
um dever que, apenas pelo próprio
cumprimento, não traz necessariamente qualquer direito, não representando, por
si só, portanto, garantia de cidadania. Porém, ele é uma das condições para a
aquisição e manutenção desta, pois deriva da obrigação que todo cidadão tem de
contribuir para a existência do Estado. Para manter a integridade dos direitos
de cidadania, é preciso cumprir com os deveres relacionados a essa existência.
Assim, ao serem tributados os rendimentos produzidos pelo trabalho, admite-se
que aquele que vive do trabalho contribui com a manutenção do Estado, sendo
forçoso reconhecer que reúne uma das condições para ser cidadão, isto é, para
ter o direito de reivindicar os direitos que são, ou devem ser garantidos pelo
Estado.
Mesmo que, como proletário, o indivíduo não
tenha rendimento suficiente para ser tributado, ele tem a condição necessária
para sê-lo – um dia – que é o trabalho. Tem, portanto, uma das condições para
ser cidadão. O fato de não poder pagar o imposto não é impedimento para o
ingresso nessa categoria: está isento
dele – enquanto não auferir mais que o mínimo de rendimentos. A perspectiva é
mesmo que todos paguem o imposto de renda. Assim, em discurso também de maio de
1925, o ministro da Fazenda, Aníbal Freire, referindo-se ao tributo, aborda a
questão de sua “generalização como
imposto pessoal, numa população de 30 milhões”.
Por outro lado, a isenção dos
proletários num sistema universal que, em princípio, abrange todos os
indivíduos, põe em destaque a sua situação – situação de exceção. Se no tom do discurso transparece tranquilidade,
conformidade, com o fato de existir um proletariado, ou seja, pessoas com
rendimentos no limite da sobrevivência, devemos ressaltar que o termo
“proletariado” se refere a essa condição e não à relação dos indivíduos com a
produção e a propriedade dos meios de produção, os elementos deste mesmo
discurso colocam este fato numa posição incômoda. Como pode ser tolerado que,
num sistema em que todos devem contribuir com seus rendimentos, cidadãos não
possam fazê-lo porque se encontram no limite da sobrevivência?
As instituições de filantropia
estão, com relação ao imposto, na mesma condição dos proletários: isentas.
“Consagra-se” a caridade, as
instituições que se dedicam a isso, aceitas como a contrapartida da existência
dos proletários, aceitas como complementares ao fato da existência desses
indivíduos? Sim, pela situação de fato. Não, pelo critério universal do imposto
e pela situação incômoda, de exceção,
de não enquadramento, de frustração das expectativas colocadas pelos elementos
do sistema de tributação estabelecido. Por esse critério, a caridade se torna,
pelo contrário, excepcional, incômoda, signo daquela frustração de
expectativas. Essa decorrência da criação do imposto contraria o ponto de vista
dos empresários, para os quais a condição proletária e a prática da caridade
eram fatos complementares, aceitos com naturalidade[36].
A diferença entre o modo
anterior de tributação e o imposto de renda em sua forma mais elaborada é, podemos
concluir então, o ter este como referência o indivíduo e não a atividade econômica (o modo de ganhar dinheiro).
Diz Aníbal Freire no mesmo discurso mencionado atrás:
“Os regimes fiscais não se podem hoje
contentar com as simples lições da ética e da ciência financeiras; hão de se
inspirar em moldes de política social, forçando, nas democracias, fundadas
sobre a igualdade, as classes mais favorecidas a entrar com quinhão mais largo
no conjunto da tributação. O imposto sobre a renda é o veículo natural e lógico
dessa transformação, porque ele persuade o indivíduo a concorrer com parte de
seus lucros legítimos no interesse da comunhão e estimula o arrefecimento das
repugnâncias pelo capitalismo [...]”.
O “incômodo” com a situação do
proletariado, que se nota no texto anterior, sente-se também neste: para o
sistema tributário, já não bastariam as “lições da ética” financeira, fórmula
que poderíamos interpretar como o respeito ao princípio constitucional da
igualdade; nem as “lições da ciência financeira”, expressão com a qual o
ministro parece referir-se à sistemática mais eficiente para arrecadar
dinheiro. Não se trataria apenas de recolher dinheiro, mas de inaugurar um novo
pacto entre os cidadãos, chamando o indivíduo a assumir sua responsabilidade para
com o conjunto dos participantes deste. A tributação tem que “se inspirar em
moldes de política social”. Por
“política social”, podemos entender medidas que compensem e sopesem a
desigualdade social: é o que se depreende, quando é dito que, inspirando-se em
política social, o regime fiscal força “as classes mais favorecidas a entrar
com quinhão mais largo no conjunto da tributação”.
O que Aníbal parece estar dizendo é que a
igualdade sobre a qual se funda uma democracia não pode permanecer apenas formal, devendo o regime ultrapassar
esse ponto e compensar a desigualdade de fato. A proporcionalidade na
tributação, o “quinhão mais largo”, se justificaria não apenas pelo intento de
preservar uma igualdade apenas formal na atribuição dos impostos, mas pelo escopo
de tornar os cidadãos menos desiguais em suas condições materiais de vida.
O que, na visão do ministro, causa a
desigualdade? Para compreender isso, precisamos atentar para uma das noções em
que se apoia seu discurso, a qual poderíamos chamar de “favorecimento”. Há
indivíduos que pertencem a “classes mais favorecidas” e aqueles que pertencem
às “classes menos favorecidas”. Por que “favorecido”? Podemos perguntar, antes:
quem favorece o indivíduo? O governo
não é, pois o regime é fundado na igualdade, não sendo admitidos privilégios em
sentido estrito (desigualdade social fundada em lei). Também não pode ser o
regime econômico, claro: isso seria admitir que, para haver justiça social, é
preciso atingir as bases capitalistas da sociedade. O capitalismo é um dado, inamovível. É preciso, sim, arrefecer a repugnância por ele.
Não se reconhecem, no texto, a
desigualdade social, tal como se apresenta em sua face de “injustiça social”, ou
seja, a exploração do trabalhador e todo seu cortejo multifacetado de miséria,
como essencial ao capitalismo, como decorrência deste. Mas se reconhece que,
no capitalismo, há necessariamente indivíduos “mais favorecidos” e “menos
favorecidos”, que no capitalismo há pontos de maior ou menor afluência de
valores, pontos pelos quais os indivíduos se distribuem. O que haveria a fazer
seria prevenir que este fato traga exacerbação da desigualdade, não é preciso
dizer “desigualdade social”, porque, além desta, só haveria a desigualdade
política ou civil e estas últimas não são admitidas, em princípio. Uma das
medidas que concorreriam para essa finalidade, de acordo com o texto, seria o
imposto de renda. Portanto, este tributo está inscrito num movimento, que se dá
no âmbito dos representantes do Poder Público, dirigido ao sopesamento da
desigualdade, à compensação das tendências de desequilíbrio social e político,
além disso, não esqueçamos que estamos em pleno período de movimentos armados,
no Brasil e no exterior, e que revolução não
era apenas elemento de discurso. Este é o mesmo movimento em que estão
inscritas as iniciativas de legislação social.
Percebe-se, pelo que se viu até
agora, que o ideal de “justiça tributária”, apregoado nas propostas de criação
do imposto de renda e na justificativa deste quando posto em prática, está correlacionado
ao ideal de justiça social: pelo imposto se compensam os desequilíbrios
ocasionados pelas desigualdades. A própria isenção do imposto de renda coloca a
questão de qual o nível de renda mínimo de que o indivíduo precisa para
satisfazer suas necessidades; portanto, também, a questão de quais seriam as
necessidades admitidas universalmente como mínimas para o cidadão. É
interessante notar como o imposto de renda, sendo um imposto universal, ao
admitir isenções que se destinam a permitir ao cidadão um nível mínimo de
existência, torna por isso mesmo inarredável que se defina qual é esse nível.
A criação do imposto geral sobre
a renda implicou, de certa forma, a constituição de uma esfera única de cidadania. Até o surgimento daquele tributo, que incidia
sobre rendimentos de qualquer origem,
o imposto de renda tinha como fundamento a ideia de que só os lucros deviam ser
tributados. Isso pode parecer uma diretriz favorável aos trabalhadores, mas, de
fato, implica uma separação no campo dos
cidadãos. Se o salário está excluído da tributação, isto significa que se
aceita a situação de fato em que aquele que retira seus rendimentos do trabalho nunca terá ganho o suficiente para ser
contribuinte. Isto é, aceita-se, de um lado, a perpetuação da condição de proletário, tal como este termo era
entendido no “senso comum” não socialista da época, ou seja – repetimos –,
designando aquele que dispunha de renda apenas suficiente para sobreviver, para o trabalhador e, de outro, uma esfera
onde as oportunidades estão abertas para aqueles que dispõem de capital, fazem
frutificá-lo, apoiados na rede de serviços que o Estado oferece e têm por isso
o “dever cívico” de contribuir para a manutenção deste, através do imposto.
Esta separação no campo da cidadania, que
pode ser simbolizada pela presença das cédulas
fixadas para o imposto de renda antes de este assumir sua forma universalizada
– lucros da indústria, lucros do comércio e, por último, lucros das profissões
liberais, cédula cuja instituição representou o limite extremo desta concepção,
parece de natureza análoga, do ponto de vista dos empresários. Isso legitimava
a instituição do direito às férias apenas para os empregados e não para os operários[37]
e, do ponto de vista de diversos representantes da política situacionista, dava
como aceitável a manutenção de estatutos separados para os operários e os
demais funcionários a serviço do Estado. Como se nota, tal separação representa
uma exclusão. Até a criação do
imposto geral sobre os rendimentos, o sistema de tributação da renda continuava
similar à concepção patronal a respeito de direitos para os trabalhadores. A
forma universalizada que o tributo passa a assumir representa uma ruptura com
essa concepção.
Assim, tanto a instituição do
imposto geral sobre a renda como a da lei de férias, que abrangeu empregados e operários, representam a
resolução de uma crise na concepção vigente de cidadania, que admitia
compartimentos na esfera dos direitos. A proximidade das datas de aprovação de
uma e de outra das medidas – 1922 e 1925, respectivamente – não pode ser vista,
assim, como mera coincidência.
A posição dos comunistas, que
defendiam que “só os ricos devem pagar imposto”, coincidia, de forma muito
coerente, com aquela noção, acima descrita, oriunda dos meios dominantes. A
ideia era que o proletariado devia estar de fato separado da burguesia, pois
esta devia ser extinta. Não havia a perspectiva, senão por mera tática, de
formar-se uma esfera definida pelos direitos de cidadania – por definição,
direitos iguais para todos.
Obviamente, estas ponderações
não podem encobrir o fato de que, se o proletariado
estava excluído do imposto de renda, não deixava de ser quem mais pagava o
imposto de consumo e de que este último tributo não deixou de existir depois
que aquele foi criado. Estamos, porém, chamando atenção para o fato de que as
alterações nas concepções que fundamentam as instituições não podem ser
ignoradas, já que, ao mesmo tempo em que proporcionam oportunidade para a
mudança destas, são também indício de mudanças e movimento nas relações
sociais.
Por outro lado, vimos que entre as
necessidades de caixa que levavam à busca de uma nova fonte de arrecadação – o
imposto de renda – estava a das despesas com pessoal. Dado o vínculo, que
constatamos, entre garantia de direitos aos operários do Estado e
estabelecimento daqueles para os do setor privado, construir instrumentos para
o fortalecimento do Tesouro significava prover o Estado de meios para que
pudesse regulamentar o trabalho. Em outros termos, a criação de direitos
sociais tinha como condição o fortalecimento dos instrumentos de Estado.
Apontamos aqui indícios que nos pareceram bastante fortes para suspeitarmos que
o custo para o Estado da aprovação de direitos sociais para todo o operariado
era um óbice decisivo para essa aprovação. Parece, além disso, óbvio que um
crescimento suficiente na arrecadação contribuiria para remover esse obstáculo.
Contudo, permanece uma questão não respondida o aferir se, e em que medida, os
governantes, ao aprovarem e implementarem o imposto de renda tinham, entre os
motivos para fazê-lo, o de prover o Estado de meios para viabilizar a
legislação social no país.
[1]
Esse era o nome de um desconto que o salário dos funcionários públicos sofria
antes de ser pago. Foi adotado em diversos momentos pela União e por certos
estados.
[1] Congresso Nacional. Annaes da Camara dos Deputados. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional (1895 a 1928). 1916, v. II, p. 270, 08.06.1916
(daqui para a frente, citaremos os Annaes
apenas como AC, seguido do ano,
volume, página e data da sessão).
Trata-se do projeto n. 270 A, apresentado em 1915.
[2] Ibid., p. 493-499, 14.06.1916 (fala de A. Carlos e Lacerda). Pela
Constituição, a aposentadoria só seria concedida ao funcionário público quando
se encontrasse em estado de invalidez. Porém, O Ferroviário de 25.11.1923 (p. 1), comentando texto do Conselho
Nacional do Trabalho em que se coloca em dúvida o direito do ferroviário de
estrada federal ou estadual de aposentar-se nos termos da lei Elói Chaves (com
trinta anos de serviço e no mínimo cinquenta de idade). Devido ao artigo 75 da
Constituição que estabelece a necessidade da condição de invalidez para a
concessão da aposentadoria, diz: “Mas... desejo muito conhecer um empregado
Federal ou Estadual que, tendo prestado 30 anos de efetivos serviços e tendo
completado os 50 anos de idade, não seja considerado inválido e como tal
aposentado”. Antes, citei: AC 1916,
II, p. 272, 08.06.1916 (fala de Lacerda) e p. 386-387, 12.06.1916 (fala de Nicanor).
[3] Ibid., p. 493-499,
14.06.1916, grifos nossos.
[4] Ibid. 1916, II, p. 499-503, 14.06.1916.
[5] Trata-se de um
substitutivo ao projeto n. 4A, de 1912, apresentado por Figueiredo Rocha (DF) e
Rogério de Miranda (PA), que, entre outras medidas, estabelecia uma jornada de
oito horas para os operários.
[6] AC 1918, p. 518, 25.07.1918.
[7] A Plebe. 01.09.1917, p. 4 (paragrafação adaptada).
[8] O projeto 239
resultou de uma composição episódica, sem condições de se manter por mais
tempo, tanto que até membros da bancada paulista, como Vilaboim, se colocaram
contra ele e, um ano depois, evidenciando uma alteração ou retomada de rumo na
(então existente) Comissão de Legislação Social. O próprio Lacerda assume a defesa
dos trabalhos desta, frente às críticas espalhadas na imprensa, inspiradas pelo
Executivo.
[9] O parecer sobre o
proj. 515 e o debate acima transcrito estão em: ibid. 1918, XIII, p. 793-798, 24.12.1918. Os direitos de operários
a serviço do Estado, fixados em regulamentos específicos, correspondem às
seguintes medidas legais: ato de 26.04.1906 (instruções regulamentares da
Estrada de Itapura a Corumbá); dec. 6.788/19.12.1907 (regulamento dos Arsenais
de Marinha); dec. 7.940/07.04.1910 (regulamento do Arsenal de Guerra do Rio de
Janeiro); dec. 8.215/15.09.1910 (regulamento da Fábrica de Pólvora do Piquete);
dec. 8.835/11.07.1911 (regulamento da Biblioteca Nacional); dec.
8.610/15.03.1911 (regulamento da Estrada de Ferro Central do Brasil); dec.
9.224/20.12.1911 (regulamento da Casa da Moeda) e dec. 9.284/30.12.1911
(regulamento da Caixa de Pensões de seus operários, a qual é criada por esse
mesmo decreto); dec. 9.517/17.04.1912 (regulamento da Caixa de Pensões e
Empréstimos das Capatazias da Alfândega do Rio de janeiro); dec.
10.783/25.02.1914 (regulamento da Fábrica de Cartuchos e Artefatos de Guerra);
dec. 10.876/06.05.1914 (regulamento da Fábrica de Pólvora da Estrela); e dec.
11.839/29.12.1915 (regulamento da Imprensa Nacional).
[10] AC 1919, XI, 20.11.1919, p. 212.
[11] Sobre a importância
da distinção entre “empregados” e “operários” para os empresários, pode ser
consultado o seguinte artigo: VARGAS, J. T. Trabalho
e trabalhadores na concepção patronal. In:
Revista Fronteiras (Revista Catarinense de História), n. 9, dezembro de 2001.
[13] Ibid. 1920, VI, p. 55, 20.08.1920.
[14] Dec.
14.663/01.02.1921, art. 29.
[15] A respeito, pode-se
consultar VARGAS, J. T. O trabalho na
ordem liberal: o movimento operário e a construção do Estado na Primeira
República. Campinas: Centro de Memória da Unicamp, 2004, capítulo 1.
[16] Condenando o descaso
para com um projeto que aumenta em mil réis a diária do “pessoal jornaleiro” da
Estrada de Ferro Central do Brasil, parado na comissão de Finanças, Nicanor
Nascimento diz, em 22.08.1918:
“Não solicito que a Comissão de Finanças
venha dar parecer favorável a este projeto. Sei que o ceticismo e a crueldade
empedernizam estes corações; que não há como lhes bater às portas para que se
possam abrir; os interesses políticos, os conchavos, a impiedade, fizeram com
que empedradas estas almas não tenham frincha para ao través insinuar-se à
piedade; mas, ao menos tenham a coragem de vir dizê-lo à Nação. É isto que
solicito à Comissão de Finanças: tenha a coragem de vir dizer à Nação, repito,
que nós podemos esbanjar os dinheiros públicos, como tenho demonstrado que
esbanjamos, mas não temos a flexibilidade da alma, a doçura de coração para
conceder a esses desgraçados mais um mil réis para o leite escasso dos novinatos”.AC 1918, VII, p. 202.
[17] Neste ponto o
presente trabalho se distancia das conclusões de Castro Gomes, que, ao
descrever a atuação dos empresários frente às iniciativas de legislação social,
compõe um quadro em que seu poder de pressão tem peso decisivo na alteração do
rumo ou interrupção do trajeto daquelas iniciativas. GOMES, Angela M. de
Castro. Burguesia e trabalho: política e
legislação social no Brasil 1917-1937. Rio de Janeiro: Campus, 1979.
[18] REIS FILHO, Daniel
Aarão (org.). O Manifesto Comunista 150
anos depois. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998, p. 27-28. Sobre o
Congresso de 1902: Gazeta Operaria.
28.09.1902.
[19] Ele lembra que, até
1898, “vivíamos das alfândegas” e que, a partir dessa data, a essa renda
acrescentou-se a dos impostos de consumo”. Congresso Nacional. Annaes do Senado Federal. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional. 1914, v. VI, p. 242-246, 25.09.1914. Sobre as
despesas com pessoal, o senador cita a proposta orçamentária do ministro da
Fazenda, que menciona “cousas que são verdadeiramente incompreensíveis e
repugnantes ao bom senso e incompatíveis com as boas normas de
administração”: 1) Apesar de haver uma
Inspetoria dos Portos, Rios e Canais, “luxuosamente organizada”, para o
saneamento da baixada do Rio de Janeiro, foi criada uma outra inspetoria “com
todos os vários aparelhos burocráticos”. 2) A Imprensa Nacional serve para o
expediente e publicações de todas as repartições e ministérios, mesmo assim
todos os ministérios têm tipografias próprias. 3) As pagadorias de marinha e
guerra seriam “uma inutilidade, uma cousa inexplicável”, encobrindo “graves e
inúmeros abusos”. 4) Apesar de existir o consultor geral da República, todos os
ministérios têm seus próprios consultores jurídicos; propõe sua supressão. 5)
Deveriam ser suprimidos os arsenais de guerra e de marinha, “que despendem
3.500: e só produzem, 7:000” (respectivamente, 3.500 contos e sete contos),
sendo que os navios são reparados em estabelecimentos particulares. Ibid., p. 243-244 (as afirmações do
ministro foram extraídas do discurso de Bulhões, onde são citadas). Antes,
citei os relatórios dos seguintes
ministros da Fazenda: Francisco Sales (1912), p. 8; Rivadavia da Cunha Corrêa
(1914); e João Pandiá Calogeras (1915).
[20] Mensagem de Epitácio
Pessoa, de 03.09.1920, citada no Relatório
do ministro da Fazenda Homero Baptista (1920).
[21] Relatório do ministro da Fazenda João Pandiá Calogeras (1916), p.
27-28 e 35-36.
[22] Houve outros
projetos, anteriores ao de Brandt, com mesmo teor, como o do deputado Otávio
Mangabeira (BA), apresentado em 23.10.1919. AC 1919, IX, p. 14. Sobre os dados
aduzidos depois da última nota, ver: leis orçamentárias para 1920, 1921 e 1922,
respectivamente n. 3.979/31.12.1919, 4.230/31.12.1920 e 4.440/31.12.1921; O Estado de S. Paulo. 11.10.1920, p. 4; AC 1921,
XIII, 31.10.1921.
[23] A lei orçamentária
4.230/31.12.1920, que instituía, por emenda de Antônio Carlos, o imposto sobre
lucros comerciais, estendendo sua incidência aos lucros apurados pelos balanços
encerrados depois de 30.12.1920, foi arguida de inconstitucional, devido a este
caráter retroativo, gerando fortes protestos das associações comerciais. O
deputado, porém, no aludido discurso, diz que o imposto não incide sobre os
lucros de 1920, mas sobre os de 1921, sendo aqueles apenas a base para a cobrança.
AC 1921, XIV, p. 51-59, 03.11.1921.
[24] AC 1922, XVII, p. 27, 18.12.1922.
[25] Lei n.
4.625/31.12.1922.
[26] Decreto
16.581/04.09.1924, artigos 4o e 5o.
[27] Sobre essa noção,
pode-se consultar VARGAS, J. T. “Trabalho e trabalhadores na concepção
patronal”. Ibid.
[29] “Cédula” é a
categoria da renda tributável, que, antes do imposto de renda, apresentava-se
separadamente no conjunto dos impostos. Por exemplo: imposto sobre lucros comerciais.
[30] Relatório do ministro da Fazenda Annibal Freire da Fonseca (1926).
[31] Diario do Congresso Nacional. 24.01.1926, p. 8.069 (grifos nossos,
paragrafação adaptada). Sessão de 23.12.1925 (o número correspondente ao dia
está mal impresso). O deputado cita: CASTRO, A. O. Viveiros de. A questão social. p. 255
[32] Dec.
5.138/05.01.1927, art. 1º (altera o dec. 17.390/26.07.1926) e lei
5.749/31.12.1929.
[33] Os protestos desse
setor começaram já em seguida à publicação da lei da receita para 1926, em
telegrama ao presidente da República. Quanto aos documentos anteriormente
citados: o manifesto do PCB, datado de 18.03.1926, e a plataforma do Bloco
Operário foram publicados, respectivamente, nas edições de Voz Cosmopolita de 15.04.1926, p. 2, e de 06.02.1927, p. 5; o
manifesto da Sociedade Rural é de 14.04.1926 e foi publicado em O Estado de S. Paulo de 16.04.1926, p. 6.
[34] Apesar dessa posição
da Associação Comercial, em assembléia geral do CIFT, em 06.08.1926, o conde
Pinotti Gamba pede que Jorge Street e Bruno Belli, respectivamente presidente e
secretário da entidade (Belli era também 2o secretário da
Associação), aproveitem sua ida à reunião do CNT sobre a lei de férias, no Rio,
para procurar saber “qual o modo pelo qual se poderia tornar o imposto da renda
inaplicável, falando-se neste sentido com pessoas cuja ação pudessem influir no
espírito dos nossos dirigentes”. Sugere que todos os contribuintes do país se
recusem a fazer as declarações. Antônio Carlos de Assunção, presidente da
Associação Comercial e membro do CIFT, relembra a reunião das associações
comerciais no Rio e diz que não há como alterar o regulamento do imposto,
porque a matéria é da alçada do Congresso, “que nada poderá fazer este ano”.
CIFT. Ata da assembléia geral extraordinária de 06.08.1926. Os trechos citados
correspondem aos termos da ata, que não registra literalmente os discursos
pronunciados. O texto apresentado na reunião ocorrida no Rio foi publicado em O Estado de S. Paulo de 15.04.1926, p.
7.
[35] É claro: só se pode
isentar de uma obrigação quem está sujeito a essa obrigação; assim, por
exemplo, não tem cabimento dizer que os advogados estão isentos de cumprir o
período de residência médica num hospital; mas um indivíduo do sexo masculino
pode estar isento de prestar o serviço militar por inaptidão física, embora, por
ser homem, deva se apresentar ao alistamento. A mensagem de Bernardes é datada
de 03.05.1925. Sobre a noção de “proletário” na Primeira República, ver VARGAS,
J. T. Op. cit., cap. 1.
[36] Ver: Negócios e
representações: os industriais de S. Paulo nos anos vinte e trinta. Mestrado em História. Campinas :
IFCH-Unicamp, 1995.
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