INTRODUÇÃO
À FILOSOFIA
José Edison Ferreira
1 Conceito de filosofia: acepção ampla e estrita
1.1
Considerações iniciais a respeito do emprego das várias acepções que o termo
“filosofia” comporta
Quando se inicia o estudo de uma nova disciplina, a pergunta que
se faz inevitavelmente e com toda razão é: o que ela vem a ser e qual o motivo
de sua inserção na grade curricular do curso em questão? Ou ainda, a pergunta
mais incisiva feita pela mentalidade pragmática, dominante na época atual: qual
é, ao final de contas, sua utilidade?
Daí a necessidade e a preocupação legítima de uma breve caracterização
da disciplina e também a justificativa convincente do propósito que animou a
elegê-la como uma disciplina indispensável à formação intelectual que se almeja.
Mas, antes de qualquer consideração acerca do caráter da Filosofia, torna-se conveniente
proceder a um levantamento das várias acepções que este termo comporta, uma vez
que o mesmo padece de uma considerável inflação de significados, oriundos do
seu emprego na linguagem coloquial do cotidiano. Com efeito, num pequeno
esforço de memória, pode-se constatar a ambiguidade que sofre esse vocábulo
devido aos múltiplos significados que lhe são atribuídos nos mais diversos
contextos que envolvem a atividade humana ordinária.
Assim, por exemplo, quando alguém se depara com outra pessoa
dotada de um estilo de vida a destoar, de alguma forma, da maneira de viver e
de se comportar da maioria das pessoas, é comum empregar a expressão “filosofia
de vida” para designar esse modo de ser meio extravagante em relação ao padrão
tacitamente preestabelecido. Em outro contexto do cotidiano, não raro de se constatar,
o emprego do termo “filosofia” pode ser identificado quando alguém se refere a
um conjunto de princípios, a nortear a política de uma determinada instituição,
por meio da expressão: “esta é a ‘filosofia’ que a caracteriza, em relação às
demais, em sua atuação”. E ainda, de um modo mais corriqueiro e um tanto vago, vê-se
empregado o termo “filosofia” para designar uma espécie de devaneio
inconsequente de alguém a respeito de um assunto trivial qualquer.
Escusado dizer que não se trata de desqualificar e nem mesmo de
censurar os empregos, acima mencionados, desse termo, uma vez que se prestam
admiravelmente para a comunicação do senso comum, a despeito de toda a
ambiguidade que encerra. É a esse conjunto de significações da palavra “filosofia”
que se entende pela designação de acepção ampliada do termo ora em
apreço.
1.2
Acepção estrita do termo Filosofia
Claro está que o significado da palavra Filosofia, entendida
enquanto uma disciplina estudada nos currículos escolares, quer do ensino
médio, quer do superior e atualmente, também, em algumas escolas do ensino
fundamental, guardadas, obviamente, as respectivas faixas etárias e de
cognição, não deve ser confundido com as acepções empregadas pela linguagem coloquial
nas mais diversas situações de nossa vida diária, pois não se trata do estudo
nem do estilo de vida particular de determinadas pessoas, âmbitos que, de
resto, não devem interessar, em princípio, ao domínio público (tendo em vista
sua natureza privada), e muito menos ao conhecimento e ao saber acadêmico, cuja
característica se reveste da pretensão de uma certa universalidade.
Desse modo, torna-se imperioso que se proceda então a um ajuste
semântico de modo a assegurar uma compreensão unívoca e precisa do termo
“filosofia”, na sua acepção estrita, isto é, no seu sentido rigorosamente
próprio, a despeito da dificuldade e da temeridade de unificar, em torno de um
mesmo conceito de Filosofia, concepções tão diversas e, até mesmo, em alguns
casos, conflitantes, dos vários filósofos, ao longo dos vinte e seis séculos do
pensamento filosófico ocidental.
Numa tentativa de assegurar uma compreensão satisfatória do estudo
da filosofia aos iniciantes, Magalhães Vilhena dedica algumas páginas de seu Pequeno
manual de filosofia (VILHENA, 1956) para caracterizar essa peculiar forma de
pensar que consiste, resumidamente, na “tarefa de levar o homem a pensar seu
próprio pensamento”. Quer dizer, a torná-lo (o pensamento) consciente de si
mesmo. Ou, em outras palavras, a proceder a uma reflexão absoluta,
entendendo-se por “reflexão” um voltar-se sobre si mesmo, já que por “flexão” entende-se
um “voltar-se”, um “curvar-se”, e o prefixo “re” indica movimento para trás,
logo, “sobre si mesmo”.
A filosofia caracteriza-se, além disso, segundo o autor mencionado,
pelo esforço racional de “elucidação das ideias” (leia-se “dos conceitos”),
como também pelo “espírito crítico”, no sentido analítico mais profundo. O
pensar filosófico implica: o “livre-exame”, entendido como a investigação
desvencilhada das tutelas dos poderes temporal e espiritual (do Estado e da Igreja);
a “autonomia mental”, concebida como a maneira de pensar por conta própria, independente
de qualquer autoridade que não seja a própria razão; e a “insaciável
curiosidade”, isto é, o estado de permanente perplexidade diante do mundo.
Além disso, a filosofia procura abarcar as questões essenciais, que
merecem ser pensadas pelo pensamento mais elevado, na sua integral conexão,
tais como: o conhecimento, a verdade, os pressupostos da ciência, as regras
lógicas do pensar, as implicações das ações humanas, o eventual valor estético
das manifestações artísticas, a legitimidade das leis vigentes, o estatuto da
política, as relações de poder, a liberdade, o exercício da cidadania – todas
elas, vale dizer, discutidas a partir de uma matriz de pensamento que as
unifica num núcleo comum.
Quanto à pergunta sobre a utilidade da filosofia, que por vezes se
ouve, comporta implicitamente uma suspeita em relação à sua eficácia, ou mesmo
a ideia de sua falta de compromisso para com o mundo dos homens (identificada
pelo filósofo francês contemporâneo, Gilles Deleuze), que nos incitam, a nós,
estudiosos da filosofia, a respondê-la de modo contundente, a julgar pelo teor
de ironia que a própria pergunta encerra. Mas, após justifica-la negativamente,
ao afirmar que ela, a filosofia, não se presta a referendar nenhum dos poderes
constituídos, nos adverte que, sem ela, o pensamento encontrar-se-ia ainda mais
rebaixado do que já se encontra; pois, apesar de a filosofia não ter o poder, e
nem mesmo a vocação para impedir a proliferação do engodo, da mistificação, do
sofisma, a nos espreitar por meio de interesses escusos, sem o crivo da
filosofia o pensamento ardiloso triunfaria ainda mais fácil e impunemente do
que já faz, uma vez que este se encontra enraizado, quer no âmbito do pensar do
senso comum, quer também no meio acadêmico-científico.
Dito de uma forma mais abrupta, filosofia é a disciplina que mais
diretamente diz respeito à vida como um todo, porquanto a maneira de o homem se
posicionar no mundo, tendo ou não consciência disso, depende das diversas
formas de julgar, que podem ser resumidas em quatro modalidades distintas, as quais
serão contempladas pelo respectivo programa.
2.
Conceito de juízo e suas modalidades
2.1.
Conceituação e critérios de distinção das diversas modalidades de juízo
Entendendo-se por conceito o que se explica por si mesmo, à
diferença de noção, que se entende somente pelo contexto no qual se
encontra empregada, pode-se, então, conceituar o juízo como o ato de
atribuição, ou de negação, de um predicado a um sujeito, ou a inserção, em caso
de um juízo afirmativo, do sujeito na classe do predicado. Na sua
forma mais econômica e abstrata, pode-se representá-lo pela fórmula S é P, ou
encarnado em exemplos como os seguintes: o ferro (sujeito) é um metal (predicado);
ou a laranja (sujeito) é uma fruta (predicado).
Assim, entende-se pelo ato de julgar a operação mental que consiste
na inclusão de um único elemento, ou de um conjunto deles, dotados de uma mesma
característica em comum, numa classe que os unifica, no caso do juízo
afirmativo.
O juízo comporta diferentes modalidades, segundo os diferentes
critérios a serem adotados. Assim, podem-se distinguir, de uma maneira geral,
segundo a maneira da inserção do sujeito na classe do predicado, duas
modalidades de juízo: o juízo analítico e o juízo sintético. Pelo
primeiro, entende-se aquele em que o predicado já se encontra contido no
próprio sujeito, de modo a explicitar apenas o que já é sabido anteriormente em
relação ao próprio sujeito em questão. Como, por exemplo, “todos os corpos são
extensos”, pois quem sabe o que é um corpo sabe, consequentemente, que é algo
extenso; ou ainda: “a reta é uma sucessão de pontos na mesma direção”, uma vez
que quem sabe o que é uma reta, já sabe que esta consiste na sucessão de pontos
numa mesma direção. Em outras palavras, trata-se de um juízo estéril, do ponto
de vista da aquisição do conhecimento, uma vez que não acrescenta nada de novo
ao já sabido anteriormente.
Contrariamente, por juízo sintético entende-se o juízo no qual
o predicado não se encontra implícito no próprio sujeito.
Isso quer dizer que o predicado acrescenta algo novo, ainda não sabido,
em relação ao sujeito em questão. Nesse caso, trata-se de um juízo fecundo, na
medida em que concorre para um aumento do teor de conhecimento adquirido: como,
por exemplo, “o calor dilata os corpos”, pois não está contido no conceito de
calor que este dilata necessariamente os corpos.
Outro critério a ser adotado, de acordo com a Lógica Formal, é o
que classifica os juízos segundo a quantidade, a qualidade, a relação
e a modalidade propriamente dita. Assim, do ponto de vista da
quantidade, os juízos podem ser universais, particulares e individuais.
Por exemplo: Todos os homens são mortais (universal); alguns homens são
brasileiros (particular); João é casado (individual). Do ponto de vista da qualidade,
os juízos podem ser afirmativos, negativos e infinitos.
Por exemplo: Maria é religiosa (afirmativo); o átomo não é um elemento simples
(negativo); os pássaros não são mamíferos (infinito, porque os pássaros podem
ser tudo o mais, menos pertencerem à classe dos mamíferos). Do ponto de vista
da relação, os juízos podem ser categóricos, hipotéticos e
disjuntivos. Por exemplo: o ferro é um metal (afirmação categórica, pois
sobre ela não cabe nenhuma duvida); se Paulo é paraense, então ele é brasileiro
(hipotético, porque a afirmação depende de uma condição previamente
estabelecida); Teresa é brasileira, ou italiana, ou argentina (disjuntivo,
porque pode ser qualquer uma destas alternativas). E finalmente, do ponto de
vista da modalidade, os juízos podem ser problemáticos, assertórios
ou apodíticos.
Por exemplo: Maria pode ser professora (problemático, porque Maria
pode ou não ser, de fato, uma professora); a água ferve a 100 graus centígrados
(assertório, já que de fato isto ocorre mas não há uma necessidade exclusivamente
lógica para que ocorra, pois se trata de uma mera constatação empírica); o todo
é maior do que a parte (apodítico, porque sendo o todo, deve necessariamente
ser maior que a parte).
Mas, valendo-se ainda de outro critério para a classificação dos
juízos – de acordo com o seu conteúdo –, pode-se classifica-los em três
espécies distintas: o juízo teorético, o juízo ético, o juízo estético
e o juízo normativo-jurídico.
Por juízo teorético deve-se entender o juízo de realidade, isto
é, o juízo que corresponde à realidade tal como ela é, e não como ela deveria
ser. É assim que as ciências, ao se valerem dessa modalidade de juízo, podem
produzir um conhecimento efetivo da realidade estudada.
Por juízo ético deve-se entender um juízo de valor, que incide
tão-somente sobre nossas ações, e não sobre a realidade, nem mesmo sobre o
comportamento animal, de modo que, contrariamente ao juízo teorético, diz
respeito não ao que é, mas ao que deve ser.
Por juízo estético entende-se o juízo emitido acerca do
valor artístico, ou não, de uma determinada obra de arte, caracterizado pelo
prazer desinteressado que ela pode proporcionar ao sujeito emitente.
Finalmente, por juízo normativo-jurídico, entende-se o juízo
capaz de aferir se uma determinada ação praticada pelo homem está ou não de
acordo com o direito positivo, isto é, com o conjunto de leis vigentes. Em
outras palavras, se a ação praticada está ou não de acordo com a legalidade.
São essas as quatro modalidades de juízo, que permitem ao homem se
posicionar diante da vida e que merecem, por isto, por parte da Filosofia, toda
a preocupação e especial atenção para poder proporcionar uma reflexão mais
qualificada em torno das questões essenciais que mais diretamente afetam as atividades
humanas.
3. Juízo
teorético, ou de realidade: fundamentação e legislação própria
3.1.
Teoria do conhecimento: o processo cognitivo e seus elementos constitutivos
As características e o estatuto do juízo teorético ou de realidade,
bem como as regras que os presidem são objetos da disciplina filosófica
denominada Teoria do Conhecimento.
Mas antes do estudo dessa disciplina, permita, em relação aos mais
céticos quanto à sua utilidade, uma leve provocação inicial: quantos anos são
dedicados à escolaridade, desde a mais tenra idade até a culminação da
titulação acadêmica, que é o pós-doutorado? Senão vejamos: dois anos de Jardim
I e II; oito anos de Fundamental; três anos de Ensino Médio; quatro anos de
Ensino Superior; dois anos de Mestrado: quatro anos de doutorado; e um ano de
pós-doutorado. Somando todos esses anos perfazem o período de 22 anos de
aprendizagem.
Se perguntarmos a um pós-doutor o que ele procurou adquirir durante
todo esse tempo de estudo, a resposta será a mais óbvia: “adquirir
conhecimento”. E se perguntarmos a ele o que vem a ser conhecimento,
provavelmente a resposta será dada a título de exemplos: “conhecimento é o de
física, de matemática, de química, de história, de geografia etc.”. Mas, para
se saber se estas disciplinas constituem mesmo espécies de conhecimento, torna-se
necessário primeiramente saber o conceito de conhecimento, para só depois
podermos identificar suas mais diversas espécies.
Não é estranho que tantas pessoas altamente especializadas nas
suas respectivas áreas de conhecimento não saibam o que vem a ser o que
procuraram adquirir durante grande parte de suas vidas? Se essa é uma das
questões essenciais, que, como foi dito anteriormente, permite ao homem se
posicionar diante da vida, é somente a Filosofia que possibilita o
esclarecimento pleno por meio de seu conceito.
Para tanto, torna-se necessário, primeiramente, observar atentamente,
como nos recomenda Johannes Hessen, um ex-professor da Universidade de Colônia,
na Alemanha, o que se passa durante todo processo cognitivo, para que se possa dentificar
os elementos essenciais, isto é, indispensáveis, porque constitutivos, sem os
quais o conhecimento propriamente dito não se consuma plenamente. Após a
identificação dos referidos elementos, o próximo passo consiste em descrever
como eles se inter-relacionam no fluxo contínuo do processo de cognição para se
compreender, afinal, o conceito de conhecimento, uma vez que o conceito é o que
unifica a multiplicidade das variedades possíveis em torno de uma mesma classe
– no caso, a classe do conhecimento.
O estudo de qualquer disciplina requer o domínio das respectivas
terminologias por meio das quais as ideias se fazem expressar com fidelidade.
Com a Filosofia não é diferente. Assim, o adjetivo “essenciais”, empregado no
parágrafo anterior, é derivado do substantivo essência, que significa quididade,
isto é, aquilo que faz com que determinada coisa seja o que é, sob pena de se
um desses elementos faltarem a coisa deixará de ser, de existir –
contrariamente ao acidente, outro termo do linguajar filosófico, que designa
aqueles elementos contingentes, isto é, não necessários, que podem ocorrer, ou
não, sem que determinada coisa venha a deixar de ser, ou de existir, nas suas ausências.
Por exemplo, para se conceituar o animal “cavalo”, há que se levar em conta
apenas os elementos essenciais que o constituem, como o fato de ser quadrúpede,
mamífero, herbívoro etc., desconsiderando, a título de acidentes, os elementos
não necessários, mas apenas contingentes, de ser eventualmente da cor branca,
de ser manso, veloz etc. E no exemplo dado anteriormente, a propósito do
conhecimento, pôde-se observar que o fato de ser de química, ou de física, ou
de história etc., não são elementos indispensáveis, porquanto contingentes, uma
vez que não concorrem para o conhecimento conceitual, sem o qual não é possível
o reconhecimento das demais espécies.
É digno de nota, para efeito de uma melhor compreensão desses
termos, o estabelecimento de um paralelo entre a gramática e a ontologia, isto
é, o estudo da autêntica realidade.
Com efeito, assim como no nível gramatical o adjetivo recai,
obrigatoriamente, sobre o substantivo, ao qualificá-lo, não podendo,
pois ser aplicado isoladamente, o mesmo ocorre com o acidente, que
recai, necessariamente, sobre a categoria de substância, no plano ontológico,
isto é, da autêntica realidade.
Daí ser possível entender como a linguagem pode, enquanto representação
da realidade, corresponder a esta, eventualmente, quando empregada com o devido
rigor.
Seguindo então as recomendações do autor supracitado, logo uma
dificuldade se impõe, qual seja, a de como observar o conhecimento, enquanto
gênero, se este não se dá à observação, já que o gênero é apenas um ente
mental, isto é, uma classe que unifica uma porção de casos particulares dotados
de uma mesma característica em comum.
Por exemplo: a fruta não existe efetivamente, pois é apenas um
gênero mental que não pode ser observado; o que existe efetivamente é a manga,
o abacaxi, a banana etc. Como também não podemos observar o homem, entendido
enquanto gênero humano, mas somente os indivíduos Pedro, Paulo, Maria, João
etc. Para superar essa dificuldade inicial, cumpre reconhecer que basta a
observação de um conhecimento em particular, como, por exemplo, “o calor dilata
os corpos”, “a água é constituída de H2O”, ou, então, “a soma dos ângulos
internos do triângulo é igual a 180 graus”, para que todos os elementos essenciais
possam ser identificados, uma vez que, enquanto tais, devem ocorrer em todos os
conhecimentos possíveis.
Estrategicamente, é recomendável que se proceda primeiro pelo
reconhecimento dos elementos acidentais, mesmo sabendo que serão
desconsiderados para efeito da conceituação do próprio conhecimento, a fim de
se tornar mais facilmente identificáveis os elementos essenciais. Nos exemplos
acima mencionados, podem-se reconhecer os elementos acidentais, como o fato de
serem de física, de química e de matemática, respectivamente, pois nem todos os
conhecimentos são destas espécies. Portanto, não se pode conceituar
conhecimento pelos seus acidentes. Dito em outras palavras, essas espécies de conhecimento
correspondem aos acidentes porque podem ou não ocorrer, sem que o conhecimento
deixe de ser o que é.
A seguir, a observação deverá incidir sobre os elementos essenciais,
que constituem todo e qualquer conhecimento, independente de que espécie for. À
primeira vista, parece bem mais difícil reconhecer os elementos essenciais.
Todavia, pelo simples fato de se considerar todos os exemplos mencionados como
espécies de conhecimento, tudo indica que já há uma forma de pré-saber do que
venha a ser o conhecimento, ainda que não se saiba, entretanto, o que ele é, em
termos conceituais, que abarcam, enquanto a unidade da multiplicidade, todos os
casos particulares possíveis.
O que há de essencial em qualquer um dos exemplos citados e que
vale para os demais é o fato de ser sempre conhecimento a respeito de algo.
Este “algo”, em Teoria do Conhecimento, é designado por objeto. É bem
verdade que na linguagem coloquial não se faz muita cerimônia ao empregar ora
um termo, ora outro, ou, mais frequentemente, “coisa”, simplesmente como se
eles fossem sinônimos. Posteriormente, quando a oportunidade se oferecer,
poderá se compreender a razão dessa distinção, para efeito de rigor acadêmico,
a ser cultivado.
Se todo conhecimento implica um objeto a ser conhecido, este
objeto é, pois, um dos elementos essenciais que não pode faltar, sob pena de
não haver conhecimento algum.
Outro elemento essencial é o sujeito, pois ainda que haja objetos
a serem conhecidos, sem um sujeito cognoscente para conhecê-los, também o
processo do conhecimento não haverá de se consumar efetivamente. Analogamente,
como no caso anterior, também no cotidiano não se faz muita reserva em empregar
o termo “sujeito”, “indivíduo” ou “pessoa” como sinônimos, para designar esse
“alguém” como conhecedor (isto, como agente do processo cognitivo). Mas,
na Teoria do Conhecimento, é mister que se faça também essa distinção, na medida
em que o sujeito do conhecimento deve-se considerar como constituído de uma
estrutura mental pura, governada apenas pelos princípios lógicos, tais como o
princípio de identidade, ou de não-contradição, que não permite que o pensamento
se contradiga para consigo mesmo, por exemplo: “isto é uma caneta e não é uma
caneta ao mesmo tempo”. Esses princípios lógicos, que constituem a estrutura
mental do sujeito, devem ser considerados independentemente dos processos psíquicos,
como sentimentos, emoções, crenças e preconceitos, que constituem mais
propriamente a individualidade de cada um, responsável, quando não controlada,
pela projeção subjetiva sobre o objeto.
Uma das questões mais importantes, tratadas pela Teoria do
Conhecimento, consiste exatamente na discussão sobre a possibilidade ou não de
se evitar essa projeção subjetiva, que é própria do indivíduo, sobre o objeto,
a fim de que este possa ser apreendido na sua própria objetividade, isto é, tal
como o é efetivamente. Todo esforço concentra-se então na tentativa de impedir
essa projeção indevida como se fizesse parte das propriedades dos objetos
estudados.
Mas esses dois elementos até agora identificados como essenciais a
todo conhecimento – o sujeito e o objeto – não são polos separados entre si.
Pelo contrário, só há, rigorosamente falando, sujeito para um objeto, e
reciprocamente, de modo que ambos encontram-se numa correlação, pois não
há um sem o outro.
Cabe, entretanto, somente ao sujeito inaugurar essa correlação,
uma vez que este é dotado de um ato de intencionalidade que lhe caracteriza
como o polo efetivamente ativo de todo o processo do conhecimento, cuja ação
recai sobre o objeto a ser conhecido. Em outras palavras, fora dessa correlação
há os homens e as coisas. Estas só se tornam objetos desde que um sujeito as
vise com a intenção de conhecê-las.
Embora necessários, esses dois elementos não são suficientes para
que o conhecimento se constitua enquanto tal.
É preciso que o sujeito, após apreender seu respectivo objeto, emita
um juízo tal como o objeto é, vale dizer, sem projetar, sobre o mesmo, sua
subjetividade, para que o juízo emitido possa corresponder plenamente ao objeto
em questão. A essa modalidade de juízo denomina-se juízo teorético, ou juízo
de realidade, porquanto pretende conhecer a realidade tal como ela é –
e não como deveria ser, o que seria próprio apenas do juízo de valor,
que deve ser evitado para não comprometer a objetividade pretendida pelo
conhecimento verdadeiro.
Já que esse adjetivo (“verdadeiro”) foi empregado para qualificar
o conhecimento, torna-se indispensável indagar o que vem a ser
finalmente a verdade, palavra tão empregada e desgastada na linguagem
ordinária do nosso cotidiano. Se o juízo se constitui, juntamente com o sujeito
e o objeto, num elemento essencial para a efetivação do conhecimento, entretanto
também ele não é suficiente, na medida em que nem todo juízo se constitui em
conhecimento de fato se este não estiver de acordo com as propriedades do
objeto a ser conhecido. É esse acordo entre o juízo emitido pelo sujeito,
de um lado, e as propriedades do objeto, de outro, que se entende por verdade,
segundo a disciplina Teoria do Conhecimento, tal como esse conceito fora
concebido pela Filosofia Moderna. Contudo, atualmente, tal correspondência está
sendo objeto de discussão.
Para alguns, essa pretensa adequação é mesmo ilusória, como
pretende o pensamento hermenêutico contemporâneo, na medida em que tudo não
passaria de interpretações da realidade, susceptíveis de outras tantas, a
julgar pela falência da própria razão em alcançar uma verdade definitiva, sem contestação
posterior; ou então, pelos menos céticos em relação à possibilidade de se
atingir a verdade, esta seria possível desde que seja concebida como um
consenso obtido por um diálogo qualificado por sujeitos especializados no
assunto. De qualquer forma, ainda parece triunfar, a despeito dessas críticas demolidoras,
a ideia de que a verdade é a condição indispensável para se dispor a produzir
um conhecimento efetivo da realidade na qual o homem se posiciona e atua.
Ainda em relação ao juízo, cumpre reconhecer que o mesmo só se
constitui enquanto tal graças ao recurso da linguagem, seja a verbal, na
maioria dos casos, seja a linguagem matemática, mais apropriada às Ciências
Exatas e Naturais.
Assim, a linguagem também se constitui num elemento essencial no
processo cognitivo, não só porque se caracteriza como uma espécie de
matéria-prima na elaboração do juízo, mas sobretudo porque, além de se prestar
como um meio de comunicação, ela se caracteriza mais precisamente como elemento
constitutivo do próprio pensamento, uma vez que não é possível pensar
sem os préstimos da linguagem. Isto significa que a linguagem decide a maneira
e a forma de pensar. Por exemplo, tomando-se como objeto de estudo o
fenômeno social da “pichação” dos muros e paredes, esse mesmo objeto
constituir-se-á em diferentes objetos para um sociólogo, para um psicólogo,
para um antropólogo, ou ainda para um semiólogo que estude as variedades de linguagens
possíveis, pois cada um desses cientistas domina uma linguagem específica de
sua respectiva ciência, fazendo com que o resultado dos conhecimentos
produzidos em cada uma delas seja devido ao conjunto de conceitos e de
categorias concernentes a cada ciência em particular. Era isso que se tinha em
mente quando se afirmou que o objeto do conhecimento não se confunde com
as coisas, pois aquele é, de certa maneira, plasmado pela linguagem
que o próprio sujeito domina, pensa e mobiliza, a título de conhecimento.
Uma vez reconhecidos os elementos essenciais indispensáveis ao
processo do conhecimento, pode-se então conceituar o conhecimento,
independentemente de suas mais variadas espécies, como:
O processo cujo sujeito apreende as propriedades do objeto
e as reelabora em um juízo, constituído por uma determinada linguagem
a se adequar plena e fielmente ao objeto em questão.
Isso posto, cumpre indagar agora sobre os problemas mais
relevantes acerca da essência da linguagem, o que será objeto da próxima
subunidade deste tópico.
3.2
Filosofia da linguagem: problema da significação e da comunicação
Uma vez reconhecida a importância da linguagem no processo do
conhecimento, cumpre agora investigar os problemas, a ela inerentes, levantados
pela reflexão filosófica acerca de uma das principais características que
distingue o homem dos animais, qual seja, a capacidade de instituir signos para
representar simbolicamente a realidade.
Dentre as várias questões que envolvem o estudo da linguagem,
podem-se destacar as questões da significação e a da comunicação. Ainda que o
estudo dessas questões não esgotem o estudo da filosofia da linguagem, são, no
entanto, das mais relevantes para a compreensão do estatuto e da natureza da
linguagem verbal, objeto específico da ciência denominada Linguística, já que
há inegavelmente outras modalidades de linguagem não-verbais, das artes, por
exemplo, que são objeto de uma ciência mais abrangente denominada Semiologia.
A questão concernente à significação foi levantada desde a
Antiguidade, pelo célebre diálogo de Platão, intitulado Crátilo,
dedicado ao estudo da natureza da linguagem. Nesta obra, o filósofo já discutia
essa questão por meio de duas teses contrárias, a do personagem Crátilo, que
empresta o nome ao próprio diálogo, segundo o qual os nomes conviriam às coisas
por natureza, isto é, necessariamente, uma vez que não poderiam ser de outro
modo dados à própria natureza que constituem as respectivas coisas; e a tese
defendida pelo outro interlocutor do diálogo, de nome Hermógenes, que concebia
os nomes como de caráter exclusivamente arbitrário e convencional, porque bem poderiam
ser outros quaisquer, sem que as coisas designadas deixassem de ser concebidas
por meio deles.
Já na abertura da Idade Moderna, vários estudiosos franceses da
linguagem, sobretudo das questões gramaticais, também se debruçaram sobre a
questão da significação, como se pode constatar pela seguinte passagem da obra
de Arnauld e de Lancelot, intitulada Gramática Geral e Racional,
publicada em Paris em 1660, em que se lê:
Até aqui consideramos na fala apenas aquilo que ela tem de
material, e que é comum, pelo menos quanto aos sons, aos homens e aos
papagaios. Resta-nos examinar o que ela tem de espiritual, que faz uma das maiores
vantagens do homem sobre todos os outros animais, e que é uma das maiores provas
da razão: é o uso que dela fazemos para significar nossos pensamentos, é essa invenção
maravilhosa de compor a partir de 25 a 30 sons essa variedade infinita de palavras,
as quais não têm nada nelas mesmas de semelhança àquilo que se passa em nosso espírito,
mas que nem por isso deixam de revelar aos outros todos os segredos desse último
e de transmitir àqueles que nele não podem penetrar tudo o que concebemos, e
todos os diversos movimentos de nossa alma. Assim, podem-se definir as
palavras: sons distintos e articulados, dos quais os homens fizeram signos para
significar seus pensamentos. (Apud Michel, s. d., p. 28.)
Consta também em um dos artigos da famosa Enciclopédia, redigida
por vários pensadores, filósofos, intelectuais e cientistas, ilustrados, um
verbete acerca da linguagem e do problema da significação, em particular, tal
como se pode constatar nesta outra pequena passagem da referida Enciclopédia:
Todas as línguas têm uma mesma meta que é a voz – é como o
espírito e o corpo da linguagem [...] Distinguimos nas línguas o espírito e o
corpo, o objeto comum que elas se propõem e o instrumento universal de que elas
se servem para exprimi-lo; numa palavra: os pensamentos e os sons articulados.
(Apud Michel, s. d., p. 29.)
Mas é na obra de Géraud de Cordemoy, intitulada Discurso Físico
da Palavra, publicada em 1666, que se encontra a solução dada à questão da
significação nos moldes do pensamento da época:
Uma das principais coisas dignas de consideração referente a esses
signos é que não possuem nenhuma conformidade com os pensamentos que unimos a
eles por instituição [...] Vejo tão pouca
semelhança entre todos esses movimentos da cabeça, da boca ou da mão e tudo que
eles transmitem que não posso deixar de admitir como eles nos dão facilmente à
inteligência de uma coisa que eles representam tão mal [...] Mas, o que me
parece mais admirável nisso é que essa extrema diferença, existente entre esses
signos e os nossos pensamentos, marcando-nos aquela existente entre nosso corpo
e nossa alma, permite-nos ao mesmo tempo conhecer todo o segredo de sua união.
Pelo menos parece-me que essa estreita união, fruto da instituição dos homens,
entre certos movimentos exteriores e nossos pensamentos é... a mais bela
maneira de conceber aquilo em que consiste verdadeiramente a união do corpo e
da alma. Além disso, é evidente que é dessa relação tão necessária, que o Autor
da natureza mantém entre o corpo e a alma, que proveio a necessidade de
produzir signos para comunicar os pensamentos (Apud Michel, s. d., p. 30.)
Assim, longe de resolver o problema da significação, o pensamento
linguístico do século XVII nada mais faz do que remeter esta questão para a
Teologia, cuja resposta satisfez plenamente a sua época, já que a linguagem
humana haveria também de refletir a própria natureza humana, concebida até então,
de um lado, pelo corpo, entendido, de resto, do mesmo modo que todos os demais
corpos, como algo extenso, delimitado por uma figura e ocupando um lugar no
espaço, e, de outro lado, pela alma, cuja designação só poderia ser expressada
por meio de metáforas, como “um sopro”, “uma flama” etc.
Se essa resposta era compatível com a mentalidade e com o
horizonte intelectual nos quais se exercitava o pensamento, para o saber laico
e científico a mesma não pode ser reconhecida como uma solução satisfatória, na
medida em que repousa num mistério, próprio do pensamento dogmático, sem
possibilidade de uma comprovação que pudesse passar pelo crivo do critério de
cientificidade.
A questão da comunicação também foi objeto de preocupação
por parte dos pensadores da Idade Moderna, especialmente por John Locke,
filósofo inglês, que procurou respondê-la em sua obra Ensaio sobre o
Entendimento Humano, publicado em 1769. Nela, o autor procura demonstrar
como não é suficiente para a produção da linguagem a emissão de sons articulados.“É
preciso que [estes] se transformem em sinais de ideias”(Locke, 1973, p. 221). E
mais além, considerando as palavras como sinais sensíveis, instituídos por
imposição voluntária, isto é, livremente, o filósofo afirma que, na sua mais
imediata significação, as palavras só constituem sinais sensíveis de ideias
para quem as utiliza; pois, não sendo o significado algo de natural, somente a crença
numa relação secreta entre as palavras do sujeito falante e as ideias dos
outros pode explicar o mistério da comunicação. Em outras palavras, é por meio
da noção de uso que o autor encontra a chave para o esclarecimento do
problema da comunicação:
[...] o uso comum, por um tácito acordo, atribui certos sons a
certas ideias em todas as linguagens, limitando assim o significado deste som
que, a menos que uma pessoa o aplique à mesma ideia, ele não fala corretamente
[...]. (Locke, 1973, p. 225)
A lição da “bela fala”, decorrente do próprio uso ordinário da
linguagem, encontraria a garantia da univocidade da significação, isto é, a
estabilidade semântica sedimentada através do emprego constante, no linguajar
diário, do mesmo som aplicado à mesma ideia, de modo a tornar possível a comunicação
entre os homens por meio da linguagem verbal.
Assim, o som articulado ao significado, ou seja, a ideia ao som unida
por convenção pôde explicar o mistério da comunicação.
O problema é que, como no caso da questão anterior (a da
significação), a solução encontrada para a questão da comunicação, se satisfez
ao pensamento da sua época, não preenche as condições de cientificidade do
pensamento atual, porquanto as regras que possibilitaram a aplicação do mesmo
som à ideia correspondente por convenção não são explicitadas. Portanto, ambas
as questões, a da significação e a da comunicação, permanecem sem respostas e a
exigir – do pensamento científico, no caso, da Linguística – uma solução suscetível
de ser comprovada.
O linguista Ferdinand Saussure procurou responder a essas duas
questões, entre outras, em sua obra Curso de Linguística Geral,
publicada em 1916, postumamente, graças às anotações das suas aulas pelos seus
alunos. Contudo, a despeito de todo seu esforço e empenho, e embora ele tenha
ajudado a fundar a própria ciência da linguagem, ambas as soluções por ele encontradas
parecem também não satisfazer o ideal científico, como observa Lahud (s.d.),
baseando-se na seguinte passagem da mencionada obra de Saussure:
O papel característico da língua frente ao pensamento não é criar
um meio fônico material [som] para a expressão das ideias, mas servir de
intermediário entre o pensamento e o som, em condições que sua união conduza necessariamente
a delimitações recíprocas de unidades [fonemas]. O pensamento, caótico por
natureza, é forçado a precisar-se ao se decompor [em ideias]. Não há, pois, nem
materialização do pensamento, nem espiritualização de sons; trata-se, antes, de
fato, de certo modo misterioso do pensamento-som implicar divisões e da língua
elaborar suas unidades [...]. (Saussure, 1969, p.131)
E quanto ao problema da comunicação, a solução encontrada por
Saussure também parece não satisfazer aos critérios de cientificidade exigidos
por quem pretende esclarecê-lo em obediência às normas da produção científica.
É o que transparece na forma breve e concisa da seguinte passagem:
“a língua é um tesouro depositado no cérebro”. Cabe, então, perguntar
por quem? Se por Deus, a resposta recai também no âmbito da Teologia e não no
da Ciência. Se é imposto pela ordem social, a solução recai sobre uma solução
sociológica positivista, de discutível mérito científico. Logo, ambas as questões
permanecem ainda em aberto à espera de uma solução que possa satisfazer
plenamente os padrões determinados pela ciência, de um modo geral, e da
Linguística, em particular, como ciência da linguagem.
3.3
Lógica
A palavra lógica, tanto quanto a palavra filosofia,
padece de uma inflação de significados, que requer, preliminarmente, um ajuste
semântico, a fim de se evitar ambiguidades, que são causa de inúmeros
equívocos. Com efeito, este termo é empregado, por exemplo, quando se questiona
a falta de sentido de alguma intervenção verbal: “Isto que você está
falando não tem lógica”; ou na acepção de clareza do que está sendo
dito: “É lógico que é assim!”; ou ainda, no sentido de coerência: “Isto
que você está dizendo tem lógica”.
Todas essas acepções com que o termo lógica é empregado na
linguagem coloquial, também como ocorre com o termo filosofia, prestam-se muito
bem para a comunicação diária, na qual seu significado é compreendido
facilmente pelos interlocutores pelo contexto em que se move a conversação.
Mas, em se tratando da disciplina filosófica, o termo lógica deve
ser entendido como:
O estudo dos procedimentos, métodos e princípios que concorrem
para distinguir o raciocínio correto do incorreto.
Dois exemplos podem esclarecer como constatar essa distinção:
Todos os homens são invertebrados. Sócrates é homem. Logo,
Sócrates é invertebrado. Todos os homens são vertebrados Sócrates é vertebrado.
Logo, Sócrates é homem.
No primeiro silogismo, a primeira proposição, como também a
conclusão, são materialmente falsas, mas a despeito de sua falsidade, o
raciocínio é absolutamente correto.
E, contrariamente ao primeiro, no segundo silogismo o conjunto das
premissas é materialmente verdadeiro, mas o raciocínio é inegavelmente
incorreto.
Isto se explica porque a Lógica, enquanto uma das disciplinas
filosóficas, trata exclusivamente da correção ou da incorreção do raciocínio,
e não da verdade ou da falsidade material das premissas, entendidas como um
conjunto de proposições num argumento ou raciocínio.
Em tempo, vale lembrar que uma ideia (no sentido em que se
usará esse termo, adiante), em si mesma, também não é verdadeira nem falsa,
como, de resto, a imagem percebida pelos sentidos. Somente no juízo é que
pode residir a verdade ou a falsidade.
Assim, a ideia de “ferro” não é mais verdadeira que a ideia de ”bruxa”,
já que ambas são inegável e tão-somente ideias. Porém, quando se afirma que “a
bruxa é uma fruta”, neste caso é o juízo emitido que é falso e, quando se
afirma que a “bruxa é um ente fictício”, é o juízo que é verdadeiro. Da mesma
maneira, quando se afirma que “o ferro é um alimento”, o juízo é falso e,
quando se afirma que “o ferro é um metal”, o juízo é verdadeiro.
Outra questão muito importante tratada pela Lógica diz respeito à
existência das falácias, entendidas como raciocínios incorretos, mas
psicologicamente persuasivos, quer dizer, o efeito por elas produzido no
discurso é considerado equivocadamente como correto. As falácias mais
conhecidas são argumentum ad baculum (recurso à força); argumentum ad
hominem (argumento contra o homem, isto é, contra a pessoa e não contra
seus argumentos); argumentum ad ignorantiam (argumento pela ignorância,
isto é, quando a proposição é admitida como verdadeira porque ainda não foi
provada sua falsidade); argumentum ad misericordiam (quando se apela à
piedade, ou à compaixão, para se aceitar o argumento); e argumentum ad
verecundiam (apelo à autoridade de quem argumenta).
‘Outra questão relevante em termos lógicos diz respeito aos dois
tipos de argumentos: o dedutivo e o indutivo. No primeiro caso, um raciocínio
dedutivo é válido ou correto quando suas premissas, se forem verdadeiras,
fornecem razões suficientes para a conclusão. Em caso contrário, premissas e conclusões
deverão der identificadas como inválidas.
Quanto ao raciocínio indutivo, na medida em que suas premissas não
oferecem provas convincentes da verdade, não será, a rigor, nem válido nem
inválido, mas apenas provável.
Isto ocorre porque, no caso do procedimento dedutivo, parte-se do
todo para as partes, por exemplo: “Se todos os homens são bípedes, e João
também é homem, então ele também será necessariamente bípede”. Mas no caso do
procedimento
indutivo, o movimento do raciocínio é o inverso, isto é, parte-se de
casos particulares para, daí, concluir o universal. Por exemplo, experimenta-se
se o calor dilata um, dois, três, vários corpos e chega-se, a seguir, na
conclusão de que o calor dilata todos os corpos, embora não se tenham
experimentado todos os casos. Logo, a margem de probabilidade de acerto não é
segura como no caso do procedimento dedutivo.
Essas e outras questões são tratadas com mais detalhes e precisão
nos Manuais de Lógica, sobretudo no intitulado Introdução à Lógica, de
autoria de Irving M. Copi.
4 Juízo
ético: fundamentação e legislação própria
4.1
Caracterização e fundamentação de suas regras específicas
Antes do início do quarto item deste texto, relativo às questões
de ordem ética, torna-se conveniente que se faça uma referência ao tópico
anterior, por meio de uma comparação entre as duas modalidades de juízo, ou
seja, o teorético, ou de realidade, e o juízo de valor, em termos éticos.
Com efeito, no processo cognitivo, o sujeito cognoscente (do
conhecimento) deve evitar a projeção de sua subjetividade (emoções,
sentimentos, crenças etc.) para poder apreender a realidade tal como ela é, e
não como ela deveria ser, de acordo com os seus desejos, evitando assim
qualificá-la por meio de juízos de valor, que não condizem com a constituição
dessa realidade, como, por exemplo, o juízo: “água é um líquido incolor,
insípido e inodoro”. Tal juízo corresponde àquilo que nossos sentidos, do tato,
da visão, do paladar e do olfato, respectivamente, acusam, já que, pelo
conhecimento da Química, o objeto do conhecimento, no caso, a água, é
constituída de H2O. Ou ainda, este outro exemplo: o juízo de valor “a
temperatura ambiente está quente e desagradável” condiz não com a própria
realidade, porque se trata de um juízo que é uma projeção subjetiva do
indivíduo que está a senti-la assim, quando na verdade a temperatura medida por
meio de um termômetro poderia estar acusando, nesse caso, a casa dos 30° na
escala centígrada. Em outras palavras, o juízo de realidade ou teorético
impõe-se a todos porque é um juízo que afere a realidade tal como ela é, e não
como nós a sentimos e a qualificamos.
Ao contrário do juízo de realidade, o juízo ético comporta
um valor em sua própria constituição. Essa modalidade de juízo pode incidir
somente sobre as ações humanas, e não sobre os fenômenos naturais, porque estes
ocorrem ou não, necessariamente, segundo um determinismo causal; e também não
sobre o comportamento dos animais, porque estes agem por instinto e porque
somente aquelas são suscetíveis de receberem os qualificativos de boa, má,
meritória, deplorável etc.
Por mais indesejável ou desejável que um determinado fenômeno
ocorra ou não, o julgamento de valor, nesses casos, é de certo modo inofensivo.
Porém, quando se trata das ações humanas, o juízo de valor, no plano ético, não
é nada inofensivo, porque diz respeito exclusivamente às ações humanas. Claro está
que nem todas as ações praticadas pelos homens encerram um teor ético, como,
por exemplo, sentar-se numa cadeira ou em outra quando disponíveis. Mas quando,
por exemplo, é jogado um pedaço de papel qualquer no chão, esta ação é
suscetível de ser julgada eticamente, porque tem uma implicação social, isto é,
se alguém se dá ao direito de jogar um pedaço, outros também poderão se dar ao
mesmo direito, e, consequentemente, a própria vida encontrar-se-á comprometida em
sua integridade.
Assim, embora somente as ações humanas possam ser julgadas eticamente,
essas atuações não concernem apenas as relações sociais, mas também as relações
ambientais, objeto da Bioética, disciplina que reflete sobre as implicações das
ações humanas sobre o meio ambiente, tão em voga hoje em dia pela gravidade em
que se encontra.
Mas a questão principal que se impõe é: por que somente as ações
humanas podem ser julgadas eticamente? A resposta é que só o homem pode
escolher, antes de agir, embora seja inegável, também, que as ações humanas são
condicionadas por diversos fatores, de caráter histórico, econômico, social, psíquico,
genético etc. Sendo assim, outra questão há também de se impor, qual seja, a de
como assegurar um juízo de valor justo para nossas ações, se elas não obedecem
às mesmas regras que presidem os juízos teoréticos e que permitem aferir a
realidade tal como ela é objetivamente.
Como já foi visto, o juízo teorético possui uma legislação prévia,
que lhe é própria e que inclui princípios como: a não-projeção das impressões
pessoais sobre o objeto do conhecimento; a obediência aos princípios lógicos
que organizam e sistematizam de forma coerente os conhecimentos esparsos; e a
observação dos objetos no espaço e no tempo.
Tal legislação assegura a possibilidade de uma comprovação suscetível
de ser reconhecida por toda a comunidade científica, com base em uma teoria
científica, previamente estabelecida e apta para iluminar o modo científico de
proceder.
No caso do juízo ético, este também se encontra presidido por uma
legislação prévia, cujas regras diferenciam-se daquelas que regem o
conhecimento. Todavia, o modo rigoroso de se julgar o mérito ou o demérito das
ações humanas inclui evitar, analogamente ao juízo de realidade, a projeção de
preconceitos, crenças religiosas, preceitos morais, próprios de cada
civilização e de cada sociedade, em particular, para se aferir o valor exclusivamente
ético das ações.
Cumpre, agora, explicar qual é o fundamento sobre o qual se
sustenta o juízo de ordem ética. Dito de forma bombástica:
é a liberdade da vontade, fundada, por sua vez, na autonomia
da razão2. A emissão do juízo de valor, no plano ético, tem como fundamento,
diferentemente do juízo teorético, a liberdade da vontade porque uma ação só
pode encerrar um valor se for produto de uma decisão livre da vontade, ou seja,
isenta de um condicionamento externo à própria vontade, como, por exemplo, o
receio de uma eventual punição, ou a espera de uma virtual recompensa. Essa
vontade é designada como autônoma (do grego auto, que significa
próprio; e de nomos, que quer dizer lei) porque é a vontade que dá a
si mesma a sua própria lei a ser cumprida.
Contrariamente, a vontade heterônima é movida por motivações
externas, alheias, portanto, a si mesma enquanto vontade.
A pergunta que normalmente se faz então é: como agir eticamente em
nome de uma vontade absolutamente livre, a ponto de dar a si sua própria lei,
ou melhor, de estabelecer por conta própria o dever a ser cumprido? O
livre-arbítrio não se caracteriza pelo grau mais elevado da liberdade, como pode
parecer. Pelo contrário, constitui o grau mais inferior da liberdade, uma vez
que consiste em escolher algo, podendo, igualmente, escolher outro, sem
qualquer justificativa ou razão.
Em outras palavras, o livre-arbítrio corresponde ao momento de hesitação
da escolha, quando não há uma razão determinante, que obrigue a vontade a
recair sobre uma das alternativas. Qualquer que seja o móvel da escolha, como
uma inclinação inconsciente, uma escolha aleatória, constitui-se num sinal
inconteste de que não se teve o pleno domínio da decisão eventualmente tomada.
Logo, essa razão não pode ser considerada livre na sua acepção mais
rigorosa.
Contrariamente, uma decisão só poderá se configurar como
absolutamente livre se obedecer rigorosamente os ditames da razão prática,
isto é, a instância prescritiva que legisla sobre as ações humanas, por mais
contraditório que possa parecer à primeira vista. A explicação para tal
aparente paradoxo é a seguinte: como poderá uma ação ser considerada livre se obedecer
a uma inclinação qualquer, inconsciente, que o sujeito ético não domine? Mas
não se deve confundir a “razão” de cada um, em particular, com a razão prática,
entendida como uma faculdade constituída de uma estrutura, cujos
princípios asseguram uma vigência de caráter universal, isto é, que
devem ser, por todos, reconhecidos. Para esclarecer melhor essa delicada
questão, um outro exemplo se prestará para tanto, qual seja: o dever de não
matar.
Pode-se obedecer-lhe temendo uma punição (a prisão), em caso de
transgressão da lei positiva, ou esperando uma recompensa, talvez na vida
pós-morte, como nos ensina a religião. Agindo assim, estaria procedendo-se
legalmente, isto é, de acordo com as leis vigentes, consignadas no código
penal, no primeiro caso, ou de acordo com os mandamentos religiosos, mas não necessariamente
de modo ético. É óbvio que esse procedimento (de não matar) pode coincidir com
o Direito, a Religião, a Moral, e a própria Ética. Porém, é preciso, a bem do
rigor, reconhecer a distinção fundamental entre o procedimento de caráter ético
e os demais.
Assim, o que há de distinguir o mérito ético do dever de “não
matar” das demais motivações é a intenção, o ânimo interior, de não praticar
tal ação em respeito única e exclusivamente ao dever, que nos é imposto pela
própria razão, não pelo receio da punição, ou pela espera de uma recompensa,
ou, simplesmente, ainda, por estar obedecendo a um preceito moral imposto do exterior
à consciência por uma autoridade que não a própria razão, quer pelo código
jurídico penal, quer pelos mandamentos religiosos, quer ainda pelos preceitos
morais ensinados e impostos pela família e pela sociedade, sem que o sujeito
ético os reconheça como um dever a ser colocado em prática pela vontade autônoma.
Em outras palavras, aquele que obedece cegamente aos ditames que não aos da
própria razão, por mais nobres que sejam, não pode agir eticamente,
simplesmente porque a vontade que o move não é livre para escolher, isto é, não
é autônoma, mas heterônoma, ou seja, condicionada por motivos alheios à própria
razão. Ou ainda, dito de uma forma mais econômica: não devemos matar porque a
razão é a única soberana para nos impor o cumprimento do dever pelo dever,
incondicionalmente.
É o que diz o grande pensador alemão Gotthold Lessing, em sua obra
intitulada Natan o sábio, publicada em 1779: “a homem nenhum deve ser
imposto o que deve fazer” (LESSING, 2009).
Obviamente, ele estava se referindo ao homem enquanto sujeito autônomo, que sabe, portanto, o dever
a ser cumprido sem que autoridade alguma, além da razão, precise lhe impor a
maneira correta de agir eticamente.
A seguinte máxima, de autoria de Kant, é haurida do reconhecimento
da soberania da razão para legislar sobre os deveres: “Age de maneira tal que o
motivo que te leva a agir possa ser
reconhecido como uma lei universal.” (Kant, 1997).
A liberdade assim conquistada é, no entanto, onerada, como diz o
filósofo francês contemporâneo Jean-Paul Sartre, da responsabilidade de
escolher para si como se estivesse escolhendo por toda a humanidade. E não há
outra maneira de o homem se eximir dessa responsabilidade, uma vez que ele é inteiramente
responsável pelos seus próprios atos, consistindo a má-fé na transferência da
referida responsabilidade para outrem.
Essa concepção de ética é denominada de humanística, tendo como
princípio fundamental nunca tratar o homem como meio, mas sempre como um
fim em si mesmo. Vale dizer que não se deve sacrificar homem algum mesmo
em nome do suposto bem de toda a humanidade, pois seria contraditório sacrificar
a própria humanidade em si mesma, já que esta não é uma entidade abstrata, uma
vez que se encontra encarnada em cada homem individualmente. É o que diz esta
outra máxima, concebida também pela visão iluminista: “Age sempre de tal maneira
que trates a humanidade em ti e nos outros como um fim e jamais como um meio.”
4.2
Distinção entre ética e moral
A questão da distinção entre ética e moral, por ser muito controvertida,
tem sido objeto de muita discussão por parte dos especialistas. Alguns autores,
especialmente de manuais escritos para principiantes, consideram a Ética como
uma disciplina da Filosofia (como, de resto, ela o é) cujo objeto de estudo
consiste na reflexão sobre a moral, a fim de investigar a legitimidade, ou não,
de seus preceitos. Se é verdade que não cabe, a essa disciplina, estabelecer as
regras morais de conduta, a reflexão sobre as mesmas também parece não
caracterizar com rigor a própria Ética.
Quando questões dessa natureza se impõem à reflexão, reclamando
uma resposta convincente e justificada, o procedimento mais apropriado consiste
no recurso à etimologia, visando um referencial seguro para a tentativa de
correção de eventuais desvios.
Com efeito, o termo ética deriva do vocábulo grego ethos,
que significa costume, como também o termo latino mos.
Contudo, não se deve entender por costume um mero hábito contraído
pelos indivíduos em sua vida privada. Costume deve-se entender, precipuamente,
como morada onde o homem habita, isto é, o conjunto de regras de
convívio social, que caracteriza o modo de ser do homem, à diferença do
animal, que age por instinto para satisfazer suas necessidades de alimentação,
descanso, sexo etc. Os homens também as têm, porém o modo de satisfazê-las depende
dessas regras instituídas convencionalmente, isto é, não naturais.
Daí porque, para os gregos, não havia uma distinção entre ética e
política, uma vez que esta deriva de polis, a cidade-Estado (leia-se,
hoje, o estado social) na qual, quando regida por leis justas e plenamente
integradas, se forjava o autêntico cidadão. Assim, viver eticamente era
integrar-se plenamente na vida social, sem o recurso suplementar dos preceitos
morais.
Era o que o filósofo grego Aristóteles designava pelo termo zoon
politicon, isto é, literalmente “animal político”. Se hoje essa expressão
pode soar pejorativamente, para os gregos significava, rigorosamente, viver de
acordo com as regras de convívio social, modus vivendi que distingue os
homens dos animais.
Como toda civilização que alcança sua plenitude conhece posteriormente
sua decadência, com a Grécia e a Roma antigas não foi diferente. Com a
derrocada do regime republicano e o ressurgimento das formas monárquicas de
governar, fruto de um dilaceramento do tecido social de classes e de castas, a
ética se apartou da política, e a vida social, o habitat por excelência do
homem, tornou-se sua perdição. Daí a necessidade do surgimento dos preceitos
morais impostos do exterior para o interior das consciências, quer pela
família, quer pela religião,
de modo a tentar regenerar, desde então, individualmente as pessoas.
Torna-se conveniente, portanto, fazer uma distinção entre eticidade
e moralidade, entendendo-se esta última como um conjunto de valores
que varia de civilização para civilização, de sociedade para sociedade e de
classe social para classe social, ao longo da história dos homens. Isto é, a
moralidade é relativa a cada momento e lugar. Quanto à eticidade, ou
simplesmente ética, trata-se do conjunto de valores de validade
universal (embora nem toda civilização, sociedade, classe social, ou mesmo os
indivíduos os reconheçam enquanto tal).
Por exemplo, a questão do homossexualismo, da virgindade, da
poligamia etc. não têm uma implicação ética, mas apenas eventualmente moral,
dependendo do aceite ou não por parte de determinada civilização ou sociedade.
Mas a pedofilia tem, esta sim, uma implicação ética inquestionável, na medida
em que a criança não é autônoma para decidir sobre sua sexualidade nem, acima
de tudo, para ser inteiramente responsável pelos seus próprios atos.
Se algumas civilizações ou sociedades ainda não reconheceram os
direitos da mulher como seres iguais aos homens, não é o caso, entretanto, de
se impor a elas o reconhecimento dos referidos direitos, por força ou coação, porque
a vontade de respeitá-los não seria autônoma, vale dizer, não seria ética.
Sendo assim, só com o escoar do tempo histórico, vivido por cada civilização,
poderão ou não os valores éticos universais serem finalmente cultivados.
4.3 Ética
e atividade científica
Outra questão extremamente controversa diz respeito às implicações
éticas da atividade científica. O ideal cientificista da neutralidade das
ciências, que remonta ao século XVII, época da constituição das ciências
modernas, movido quer pela busca da verdade
pela verdade, quer pelo conhecimento em si mesmo, e que implicava valores
incontestáveis, tais como a integridade do cientista e a sua erudição, tem sua
explicação, como nos ensina Lucien Goldman, no reconhecimento do contexto histórico
em que fora concebido, quando se tornou imperioso libertar o saber da tutela da
religião e do Estado. Ainda que se possa contestar esse ideário, consagrado,
posteriormente, pelo pensamento positivista, uma vez que a produção científica é,
nos dias atuais, quase que totalmente subvencionada pelo Estado, ou pelas
grandes empresas e fundações, cumpre reconhecer, a bem do rigor, uma distinção
entre condicionamento, em termos epistemológicos, e neutralidade,
em termos éticos e/ou ideológicos.
A vasta e surrada literatura sobre o mito da neutralidade científica,
admitida hoje quase por unanimidade e transformada em cânone para avaliar e
julgar as atividades científicas, via de regra, se refere à ciência de modo
geral, sem mencionar a distinção entre as ciências exatas e naturais e as
ciências humanas. Ou, se o faz, ao nível epistemológico, não chega a explorar
devidamente a especificidade dos respectivos objetos (os fenômenos naturais e
os sociais) e dos juízos de realidade, para efeito de avaliação das implicações
éticas dessas atividades.
Embora seja indiscutível o condicionamento a que o conhecimento
científico está submetido epistemologicamente, devido a fatores culturais, de
ordem histórica, o apelo ideológico é quase nulo no caso das ciências exatas e
naturais, como a matemática, a física e a química, entre outras, à diferença
das ciências humanas, nas quais o apelo e envolvimento ideológico são bem mais
fortes e intensos.
Assim é que num juízo teorético como “a água é constituída de H2O”
ou “a soma dos ângulos internos do triângulo é igual a 180°” não há implicação
ético-ideológica alguma. O que pode haver de implicação dessa ordem recai não sobre
o conhecimento em si, mas sobre a escolha ou a prioridade do objeto
a ser estudado. Por exemplo, deve-se estudar os patologias que atingem a grande
maioria das pessoas de baixa renda, ou gastar uma quantia considerável para se
estudar uma patologia raríssima que afeta apenas alguns indivíduos
privilegiados, embora mereçam também eles a atenção do serviço de saúde?
Deve o Estado patrocinar a pesquisa para explorar o espaço sideral,
ou destinar essa verba para a saúde e a educação?
Essas sim são questões de caráter ético. Mas no fato de o
conhecimento científico proporcionar a tecnologia para a construção de aviões,
quando isso se torna prioritário, não há implicação ética do próprio
conhecimento produzido. Todavia, o uso que se faz do avião pode ser questionado
eticamente, pois a mesma aeronave tanto pode se prestar para jogar uma bomba atômica
quanto para salvar vítimas em regiões de recursos médicos precários.
De resto, a questão do rigor e da verdade do conhecimento decide-se,
ao final das contas, no âmbito exclusivamente científico, não no plano ético ou
ideológico.
Contra a maioria das opiniões que não admitem a neutralidade do
conhecimento científico, em nome da teoria marxista, uma breve passagem de um
artigo redigido pelo próprio Marx, publicado na Gazeta de Colônia de n° 79,
parece contrariar a posição frente a essa questão dos seus pretensos seguidores:
E se os indivíduos isolados não digerem a filosofia moderna e
morrem de uma indigestão filosófica, isso não é um argumento contra a
filosofia, como também a explosão de uma caldeira que faz ir pelos ares os
passageiros não é um argumento contra a mecânica.
5 Juízo
estético: caracterização e justificativa da razão da ausência de uma legislação
5.1
Conceito de arte, modalidades artísticas e questões relativas à estética
O termo arte comporta também várias acepções, que carecem
de ser explicitadas, a bem do rigor acadêmico. Para tanto, torna-se necessária
a retomada da trajetória histórica que envolve as modificações desse conceito,
a fim de entendermos as razões dessas diferentes acepções.
A filósofa Marilena Chauí traça esse itinerário, em linhas gerais,
no seu livro dedicado ao estudo da Filosofia no Ensino Médio, intitulado Convite
à Filosofia (Chauí, 1995). Retomando esse percurso rastreado pela autora,
verifica-se que o termo arte deriva do vocábulo latino ars, cujo
significado remonta, por sua vez, ao termo grego techné, entendido como
toda atividade humana baseada em regras previamente estabelecidas, como a arte
da política, da guerra, da medicina etc.
Para Platão (séc. IV a.C. ), todas essas atividades eram concebidas
como techné, incluindo também as artes judicativas produtoras do
conhecimento, já que a produção deste também implica a obediência de uma
legislação prévia, como já foi demonstrada no Tópico 3. Porém Aristóteles,
também no mesmo século, não reconhecia a produção do conhecimento como techné,
porque, segundo ele, esta produção versava sobre a ordem do que é necessário,
sendo que a techné operava somente na ordem do contingente ou do possível.
Mas, dentro dessa mesma ordem, o filósofo fazia outra distinção: entre práxis
e poíesis, isto é, entre ação e fabricação,
respectivamente, reservando o emprego do termo techné para designar as artes
ou técnicas da fabricação, e as ciências da ação para
designar a política e a ética. Plotino (séc. III d.C.), por sua
vez, ao operar uma distinção entre teoria e prática, diferenciava as artes que
de certa maneira corrigem a natureza, como a medicina e a agricultura, das
artes que se valem apenas dos materiais extraídos da natureza, como o barro e
as fibras, para a fabricação do artesanato, e as diferenciava das artes teóricas,
como a música e a retórica.
Durante a Idade Média, o filósofo cristão São Tomás de Aquino
também se valeu da distinção entre as artes manuais e as do espírito, em
consonância com a religião cristã, que valoriza as artes espirituais em
detrimento das manuais, por ser a alma imortal, e o corpo, perecível. Somente a
partir do Renascimento, diz a filósofa, é que se passou a valorizar ambas as
modalidades de arte, já que também as artes manuais, como a arquitetura, a escultura
e a pintura, implicam o trabalho do espírito, graças aos conhecimentos de
anatomia, de perspectiva, proporção e harmonia. Mas apenas no final do séc.
XVII e início do XVIII é que se passou a fazer uma distinção entre arte e
técnica, entendendo a primeira como a atividade produtora exclusivamente da beleza,
e a segunda como produtora do que é útil.
Atualmente, porém, essa distinção encontra-se novamente rasurada,
tendo em vista que o design industrial encerra tanto uma valor artístico
quanto de utilidade, embora o valor estético se encontre subordinado à
funcionalidade do objeto. Com isso, provocou-se uma valorização estética da produção
em série, quer dizer, não apenas de um objeto único, mas da produção em larga
escala, por exemplo, de móveis, vestuário, utensílios domésticos etc.
Graças ao desenvolvimento tecnológico, tornou-se possível também a
reprodução daqueles objetos de arte absolutamente singulares e únicos, como
quadros dos grandes mestres da pintura, e a consequente perda da aura que
os envolvia em virtude de sua unicidade, perda essa reconhecida pelo filósofo
alemão contemporâneo Walter Benjamin (1969), no seu famoso artigo intitulado A
obra de arte no tempo de suas técnicas de reprodução. Com isso, abriu-se
uma discussão em torno dos efeitos do poder de reprodução das obras de arte, na
medida em que, por um lado, ele propicia uma democratização do acesso às mesmas
sem que seja preciso se deslocar para os diversos países que abrigam os
valiosos acervos artísticos, e, por outro, as reproduções pecam pelas eventuais
alterações do original, quer pela distorção da pigmentação das cores, do
recalcamento da textura da tela pintada etc., atributos que seriam
absolutamente não-reproduzíveis pelas técnicas mais refinadas, como pretendem
os mais puristas.
Há, porém, outras modalidades de arte, como o cinema, a fotografia,
a discografia, que são frutos já da própria reprodução tecnológica. Nesses
casos, não tem sentido falar da perda da aura das obras de arte dessas
modalidades, já que faz parte de sua própria constituição o processo de
reprodução em série das mesmas, sem que, com isso, o valor estético que
encerram se encontre comprometido.
Por falarmos em reprodução, ou cópia da obra de arte, torna-se
oportuno considerarmos um outro conceito, muito a propósito, que é o de mimesis,
cujo significado é imitação, mas que foi interpretado equivocadamente por
mera cópia da realidade. Esse conceito aristotélico significava algo bem diferente
de uma simples cópia. A rigor, o que Aristóteles entendia por mimesis, na
sua obra Arte Poética (ARISTÓTELES, 1959), era a representação
artística das ações humanas: não como os homens agem efetivamente, mas como
deveriam agir, de acordo com o caráter de cada personagem em determinada
situação idealizada.
Feito esse reparo conceitual a respeito do equívoco mencionado, é
preciso dele se lembrar para que não se incorra no mesmo equívoco de julgar
determinada obra de arte pela maior ou menor fidelidade ao modelo original,
como se arte devesse reduzir-se e limitar-se a uma simples cópia da
realidade.
Também muito a propósito, deve-se ter em mente a distinção
fundamental entre o belo artístico e o belo natural, pois aquele
se caracteriza pelo trabalho do espírito sobre a matéria, enquanto este não
deve sua aparição à intervenção humana e, por isso, não encerra valor artístico
algum.
5.2
Caracterização e justificativa da ausência de uma legislação própria
A questão estética fundamental em relação à obra de arte é: como
aferir o valor estético, por meio de um juízo, se não há uma legislação prévia
a prescrever as regras a serem obedecidas no ato do julgamento?
Como já foi esclarecido anteriormente, em se tratando dos juízos
teoréticos e éticos, ambos estão submetidos a uma legislação que lhes é
própria, sob pena de se incorrer em erros de julgamento, em caso de transgressão
das prescrições estabelecidas. Mas, no que tange ao estatuto do juízo estético,
este se caracteriza por não se reger por regra pré-estabelecida alguma, uma vez
que, por sua própria natureza, a arte é o domínio da liberdade da imaginação,
no sentido de que é o artista quem cria, no ato de criação, suas próprias
regras (se tratar-se, obviamente, de um artista original). Isto não implica, de
resto, que o artista deva ignorar as técnicas, a linguagem, a gramática e a
sintaxe próprias das respectivas modalidades de arte, herdadas da tradição
artística correspondente.
O filósofo alemão Immanuel Kant (1974), em sua obra intitulada Crítica
da Faculdade de Julgar, afirmava ser o juízo de gosto todo aquele
suscetível de proporcionar um prazer desinteressado, isto é, nada que pudesse
envolver qualquer interesse ou motivação além da fruição, do deleite, da
própria beleza artística. Ainda que se possa admitir, com Kant, que o juízo
estético é, por sua natureza, desinteressado, que a arte é suscetível de
proporcionar uma satisfação compartilhada por todos, contudo, torna-se preciso
frisar que o valor estético não se afere simplesmente pelo gosto, entendido do
ponto de vista puramente subjetivo, pois, se assim o fosse, o valor da arte
estaria reduzido única e exclusivamente à subjetividade de quem julga.
Daí porque se devem reconhecer critérios de natureza também objetiva
para o julgamento do valor artístico, sem que, com isso, a arte deixe de tocar
nossa sensibilidade, mesmo se alguma delas possa não ser apreciada pelo publico
em geral, embora encerrando um considerável valor estético. Isso ocorre devido ao
seu caráter polissêmico, que comporta uma multiplicidade de sentidos que
nenhuma leitura crítica pode, por princípio, esgotar.
Cabe, no entanto, ao crítico talentoso saber explicitar os
eventuais méritos ou deméritos estéticos, baseando-se na composição estrutural
que o artista se propôs a realizar. Tarefa árdua e difícil, embora o exercício
de rigor possa também ser bem-sucedido, mesmo não se tratando de uma ciência do
belo – desde que a estética não venha a se tornar uma camisa-de-força, no
sentido de se constituir numa instância prescritiva, traindo, assim, a vocação
da arte, como o domínio da liberdade do pensamento e da imaginação criadora.
Sendo a arte, talvez mais do que qualquer outro objeto de reflexão, o domínio
em que o sensível se encontra indissoluvelmente unido ao espírito, somente ela
tem a destinação de celebrar e de sacralizar a vida.
6 Juízo
normativo-jurídico
6.1
Caracterização e fundamentação do juízo normativo jurídico
Esta modalidade de juízo possui também uma legislação própria,
consignada pelos diversos códigos, como o civil, o penal, o tributário, entre
outros. Assim, o juízo normativo-jurídico julga as ações humanas quando
suscetíveis de serem enquadradas nos respectivos códigos, identificando sua
eventual legalidade ou ilegalidade, de acordo com o direito positivo, isto é, o
direito vigente.
Mas como a legalidade não se confunde com a legitimidade, ainda
que as ações praticadas devam se conformar com as leis vigentes, sob pena de o
agente vir a ser punido judicialmente, a Filosofia do Direito procura refletir,
sobretudo, sobre a legitimidade das leis instituídas. Historicamente, a maneira
de se contestar o valor das leis positivas variou de acordo com o horizonte
cultural de cada civilização ou sociedade. Assim, na Grécia Antiga, em uma
tragédia intitulada Antígona, de autoria do poeta trágico Sófocles, a
personagem que empresta o nome à tragédia contesta, em nome do direito sagrado
garantido pelas leis divinas, a legitimidade de um édito real que negava o
direito de seu irmão ser sepultado como todo cidadão, devido a ter transgredido
as leis da cidade.
Na abertura da Era Moderna, a maneira de se contestar ou de se
legitimar o Direito Positivo foi a de submetê-lo ao crivo do Direito Natural,
concebido, cada um a seu modo, pelos jusnaturalistas, como Grotius e Pufendorf,
entre outros. É bem verdade que uma eventual contestação do direito positivo
não se dava aberta e diretamente, mas só pelo fato de se conceber um
referencial baseado numa concepção da natureza humana, todas as leis vigentes
poderiam julgadas legítimas ou não, na medida em que se coadunassem ou se
distanciassem dos princípios do Direito Natural, hauridos da própria natureza humana,
concebida à luz natural da razão.
Mas, como atualmente a crença na infalibilidade da razão se
revelou infundada, já que em seu nome concepções excludentes e contraditórias
foram excogitadas sem fundamento sustentável, a própria concepção de natureza
humana se tornou motivo de suspeição , o que ocorreu, consequentemente, também
com a ideia de um direito natural que se prestasse como o referencial a ser
respeitado. Daí falar-se, agora, de uma hermenêutica para se interpretar o
espírito da letra da lei, para além do que ela prescrever literalmente, no ato
do julgamento das ações eventualmente praticadas sob suspeita.
Para concluir este estudo introdutório da Filosofia, com a palavra
então, finalmente, o leitor: tem, ou não, a Filosofia um compromisso com a vida
e com o mundo?
......................................................
NOTAS
1) José Edison Ferreira é Mestre em Filosofia pela USP (Universidade de São Paulo) e professor do
Departamento de Filosofia da UFPA (Universidade Federal do Pará).
2) Aqui
o autor se refere à concepção do filósofo Immanuel Kant. Autonomia, do grego autos
(mesmo) + nomos (lei). Segundo Immanuel Kant, a autonomia da razão é
a capacidade de o sujeito agir de forma totalmente livre, categórica, sem
quaisquer interferências externas a ela. A autonomia designa a independência da
vontade em relação qualquer objeto de desejo ou desejo e a sua capacidade de
determinar-se em conformidade com a sua própria lei: a razão. Cf. KANT,
Immanuel. Crítica da razão prática. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições
70, 1999. (Nota do organizador do livro.)
.......................................................
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ARISTÓTELES.
Arte retórica e arte poética. São Paulo: Difel, 1959.
CHAUÍ, M.
Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1995.
KANT, I.
“Analítica do belo”. In: Os pensadores. Vol. XXV. São
Paulo:
Abril Cultural, 1974.
_____. Crítica
da razão prática. Lisboa: Edições 70, 1997.
Lahud,
Michel. “Alguns mistérios da linguística”. In:
Almanaque, n.° 5.
São Paulo: Brasiliense, s. d.
LESSING, Gotthold Ephraim. Nathan el sabio. Madrid:
Akal,
2009.
LOCKE, J.
“Ensaio sobre o entendimento humano”. Coleção Os
pensadores. Vol.
XVIII. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
SAUSSURE,
F. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 1969.
BIBLIOGRAFIA
CONSULTADA
BENJAMIN,
W. “A obra de arte no tempo das suas técnicas de
reprodução”.
In: Sociologia da arte IV. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.
COPI,
Irving M. Introdução à lógica. São Paulo: Mestre Jou, 1978.
COTRIM,
G. Fundamentos de filosofia: história e grandes temas. São
Paulo:
Saraiva, 2001.
CUNHA,
J.A. Filosofia: iniciação à investigação filosófica. São Paulo:
Atual,
1992.
HESSEN,
J. Teoria do conhecimento. Coimbra: Armênio Amado,
1987.
JAKOBSON,
R. Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix,
1969.
MARTINS,
Aranha; M. L e Martins M. H. Filosofando. São Paulo:
Moderna,
1997.
MORENTE,
M. G. Fundamentos de filosofia. São Paulo: Mestre
Jou,
1979.
PLATÃO.
“Teeteto e Crátilo”. In: Diálogos. Belém: Edufpa, 2001.
VILHENA,
Vasco de Magalhães. Pequeno manual de filosofia. 2 ed.
ref. e
ampl. Lisboa: Sá da Costa, 1956.
Nenhum comentário:
Postar um comentário