quarta-feira, 25 de abril de 2018


CONHECIMENTO  TRADICIONAL: CONCEITOS  E  DEFINIÇÕES
                     Tony Marcos Porto Braga1



INTRODUÇÃO
A região amazônica está sendo atualmente explorada pela imposição de vários sistemas de utilização desenvolvidos em outros locais e frequentemente inapropriados às suas características. Diante disso, surgem alguns questionamentos que podem nos levar a uma melhor clareza e reflexão do tema em questão. Morán (1994) afirma que nos últimos anos do século XX já vivíamos com uma grande preocupação: será que a imensa floresta amazônica sobreviverá às recentes depredações?
Poderá a medicina e a farmacologia descobrir na floresta novas substâncias químicas para a cura de doenças até agora incuráveis? Serão as populações indígenas arrasadas e dizimadas cultural e biologicamente? Diante desses questionamentos, chegamos à outra questão proposta por Albuquerque (2006): podem os cientistas, hoje, trabalhar a serviço da terra, se estamos mergulhados em um referencial etnocêntrico? O mesmo autor afirma que esse etnocentrismo2 não nos permite reconhecer que outras culturas3 (ou pessoas), diferentes da nossa, podem possuir um sistema de conhecimento igualmente válido, o qual possa responder, orientar e organizar as relações dessas culturas com o seu ambiente. Mais do que isso: trata-se de indagar como esse corpo de conhecimento pode interferir na nossa própria percepção de realidade.
Sem sombra de dúvida é preciso discutir essas questões, sobretudo as questões ambientais decorrentes das atividades humanas sobre o meio ambiente, pois estão entre os temas modernos que exigem uma abordagem interdisciplinar. Discutir esses conceitos em um período de nossa história científica caracterizado pela intolerância e pelas ideias de superioridade étnica foi e continua sendo uma tarefa árdua.
Diegues (2001) afirma que os especialistas de várias disciplinas se veem forçados a cooperar entre si em razão do surgimento de problemas complexos inerentes à vida social moderna, como demonstram estudos sobre o desenvolvimento, a paz e o meio ambiente. No entanto, essa cooperação entre as várias disciplinas do campo científico pode tornar-se falaciosa (4) quando ocorre em situações como as existentes na elaboração da maioria dos Estudos de Impactos Ambientais (EIA). Em grande parte desses estudos, existe uma “pseudo-interdisciplinaridade”, na medida em que seu objetivo está pré-determinado: a aprovação de projetos de desenvolvimento que apresentam impactos sobre o meio ambiente. O mesmo autor esclarece que, no geral, trata-se de uma justaposição de diagnósticos realizados por técnicos ou pesquisadores de várias disciplinas nas áreas de biologia, geologia, geomorfologia, geografia, sociologia, economia e outras, sem que haja a menor interação entre eles. O relatório final consiste na justaposição de dados por um chefe de equipe que conhece de antemão qual deva ser a conclusão final.
O estudo dos impactos da ação humana sobre o meio ambiente se localiza, no entanto, na interface entre as diversas ciências naturais e sociais, demandando a contribuição e a ação das diversas disciplinas e dos diversos tipos de conhecimentos. Dito de outra forma, na atual questão da conservação da biodiversidade é preciso a participação ativa e o engajamento de diferentes profissionais em um esforço articulado envolvendo as populações locais (e seus conhecimentos tradicionais) nesse empreendimento. Diversos estudos já documentaram que populações locais podem apresentar um conhecimento refinado do ambiente em que vivem. Dessa forma, excluí-las de processos que envolvam garantir a conservação da biodiversidade existente parece ser uma fórmula ineficiente e danosa. Mas não se confunda essa participação com educação ambiental, a ideia de que “essas pessoas precisam ser instruídas sobre as questões ambientais”. Não se trata aqui de “educar” essas populações, mas de estabelecer parcerias que possam assegurar a sua sobrevivência biológica e cultural e que podem subsidiar alternativas viáveis e politicamente sérias de desenvolvimento sustentável (Diegues, 2001; Albuquerque, 2006).

1 CONHECIMENTO TRADICIONAL: HISTÓRIA E A RELAÇÃO DO HOMEM COM O AMBIENTE
Internacionalmente, o termo “tradicional” é utilizado como adjetivo, referindo-se a tipo de manejo, tipo de sociedade, forma de utilização de recursos, de território, modo de vida, grupos específicos e tipos culturais. Diegues & Arruda (2001) definem conhecimento tradicional como o conjunto de saberes e saber-fazer a respeito do mundo natural e sobrenatural, transmitido oralmente, de geração em geração.
Precisamos, portanto, conhecer os caminhos percorridos historicamente por diferentes gerações e suas ideias próprias sobre suas relações com o meio ambiente, com o mundo natural. Este conhecimento, além disso, se faz necessário para entendermos as polêmicas causadas por imprecisões de definição e pela utilização de certos conceitos (muitos deles ecológicos) por áreas como sociologia, antropologia e outras. Begossi (1993), ao estudar a “relação do homem com o ambiente”, inclui tantos outros fatores (como econômicos, sociais, psicológicos), que transcende a ecologia.
Sociedades relativamente autônomas, como, por exemplo, algumas populações isoladas da Amazônia, terão relações íntimas e de profunda familiaridade com o meio ambiente do qual dependem para suprir suas necessidades, enquanto uma sociedade na qual as comunidades são interdependentes e especializadas, como, por exemplo, as urbanas, dependerão tanto ou mais das suas relações institucionais com outras comunidades do que do ambiente físico para sua sobrevivência.
Portanto, quando falamos das relações entre o homem e o ambiente, temos que observar com precisão o grau de relacionamento entre a população humana e seu ambiente. Em alguns casos, o ambiente com o qual interage a população é um ambiente físico (a natureza), enquanto em outros casos tal ambiente serão principalmente as instituições sociais (isto é, a sociedade). Contudo, com a possível exceção dos bandos primitivos da mais remota pré-história, as comunidades humanas dependem da mediação social tanto ou mais do que dependem do ambiente físico. Portanto, as relações ambientais do Homo sapiens só podem ser compreendidas se nessa reflexão incluímos o papel da cultura e das instituições sociais que, por milhares de anos, intervêm entre nós e o ambiente.
A diversidade de interações que as culturas humanas têm com o ambiente vem sendo tema de trabalhos com enfoques variados. Essas relações de conhecimento e ação entre populações e seu ambiente podem ser estudadas tanto do ponto de vista das ciências biológicas como das ciências sociais. Para se ter uma ideia, vejamos a interação da Ecologia com várias outras disciplinas, a qual possibilitou, de forma extraordinariamente rica, analisar o comportamento humano em interação com a natureza, representando o que se denomina Ecologia Humana, como é bem exposto por Saldanha (2005) (5).
A história das teorias homem/natureza no mundo ocidental tem criado certos temas persistentes e contraditórios.
É possível observar a influência de tais temas nas contradições e nas atitudes relativas ao ambiente natural da Amazônia. De um lado, há a tendência a considerar a Amazônia um “Inferno Verde”, uma região na qual só populações com técnicas de subsistência simples podem sobreviver, devido às limitações do ambiente quente e úmido, de solos pobres e chuvas torrenciais, como afirmou Betty Meggers (1977). Morán (1994) afirma que esse enfoque justificou a falta de atuação da sociedade brasileira na Amazônia, bem como a falta de “progresso” por parte das comunidades no interior da região. De outro lado, temos a tradição intelectual que vê a Amazônia como o “paraíso”, o “celeiro e o pulmão do mundo” ou o “El Dorado”.
Morán (1994) faz uma revisão das teorias sobre a interação homem/natureza formuladas desde a Antiguidade e afirma que as mesmas refletem aspirações de grupos dominantes nas sociedades hierarquizadas em que foram apresentadas. Essas teorias, que serão mencionadas mais adiante, tiveram alguns de seus elementos constituintes perpetuados por culturas tradicionais em diversas partes do mundo. Antes de abordarmos o tema, porém, vale a pena apontar quais eram as relações dos primeiros habitantes da América com os “descobridores”, cotejando essas informações com as teorias que serão expostas.
Os livros de História têm registrado que a América foi descoberta por Cristóvão Colombo no dia 12 de outubro de 1492, quando aportou na ilha que denominou de São Salvador (hoje Watling), no arquipélago das Bahamas, e que o Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral no dia 22 de abril de 1500.
Tais registros, entretanto, são frutos do etnocentrismo europeu, pois os “descobridores”, ao encontrarem a América, ou melhor, o Novo Mundo, habitado por populações em graus diferentes de desenvolvimento cultural, às quais chamaram de índios (porque Colombo pensou ter chegado às Índias), viram nelas seres inferiores, exóticos, que precisavam ser “civilizados”, colonizados e cristianizados. Por outro lado, as pesquisas arqueológicas, botânicas, genéticas, linguísticas e outras têm levado a evidências que demonstram ser o homem americano originário da Ásia. Assim, se ele não é autóctone, foi, portanto o descobridor real desse Novo Mundo que os europeus revelaram ao Velho Mundo. Eram, provavelmente, grupos de caçadores, os quais possuíam maneiras peculiares de pensar, agir e sentir, maneiras estas que representavam a sua adaptação diante da vida. Eles, provavelmente chegaram ao novo mundo com a finalidade de sobreviver e aí viveram sem a preocupação de colonizar seus semelhantes, se quisermos contrastar seu modo de vida com o processo de colonização que se iniciou com a chegada dos espanhóis e portugueses (Oliveira, 1983, p. 144).
As mais antigas teorias conhecidas sobre as interações homem/natureza foram produzidas sob o estímulo do contato entre a civilização grega e outras culturas. Os gregos no período pré-helênico penetraram no Egeu como figuras dominantes do Mediterrâneo, criando colônias desde o Norte da África até o Mar Negro. O conhecimento tradicional acumulado pelos babilônios, persas, egípcios e hindus encontrou um ambiente acolhedor na Grécia, e ali novos elementos foram incorporados no dia-a-dia da população e também em diversas teorias. A “teoria dos humores”, que chegou a um alto grau de elaboração na Índia, entre as culturas védicas, sofreu desenvolvimento ainda maior na Grécia. Empédocles (504-443 a.C.) considerou o mundo como composto por quatro elementos: fogo, terra, água e ar. A união desses elementos criava tudo o que é vivo, enquanto que a falta de harmonia entre os elementos seria responsável pela doença e morte. As teorias de Empédocles eram dinâmicas, destacando equilíbrio e mudança como as duas forças responsáveis pelo fluxo dos humores. De acordo com essas teorias, se uma mudança ocorria, o sangue mudava em espessura e o sistema tentava voltar ao equilíbrio pelo uso de substâncias que diluíam ou esfriavam o sangue. As teorias de Empédocles influenciaram o pensamento cientifico por vários séculos e suas ideias sobre equilíbrio dinâmico enquadravam-se bem com ideias contemporâneas sobre o processo adaptativo.
O pensamento biológico dos gregos foi ainda mais influente através da obra de Hipócrates. As teorias de Hipócrates incorporaram os quatro elementos de Empédocles adicionando quatro qualidades que estariam presente em todas as coisas: o frio, o calor, o seco e o molhado. Junto aos quatro humores (isto é, sangue, fleuma, bile amarela e bile negra), esses fatores (agora se tornam oito) serviam para diagnosticar todos os estados de saúde, doença e personalidade. O sangue representava um humor que era quente e úmido; a fleuma um humor frio e úmido; a bile amarela um humor quente e seco, e a bile negra um humor frio e seco. Os órgãos do corpo produziam humores que tinham que se manter em equilíbrio de forma a evitar doenças. Da produção equilibrada dos humores vinha saúde, bom caráter e inteligência. Do desequilíbrio resultavam a doença e a morte. Essas ideias persistem até hoje na medicina popular do Brasil, e em partes da América Latina, para onde vieram trazidas pelos espanhóis e portugueses.
Hipócrates é responsável pelo começo de uma tradição que continuou até o século XX, que tentava explicar as diferenças entre as etnias a partir de diferenças climáticas. Por exemplo, Hipócrates considerava que os asiáticos eram estoicos em consequência do clima estável que levava a uma atitude tranquila e serena.
As teorias gregas surgiram tanto de observações do homem e da natureza como da herança de tradições antigas.
De acordo com tais teorias, climas quentes e secos reduziam a vitalidade, populações de climas mais brandos tinham uma natureza apaixonada, e povos de climas frios possuíam fortaleza física. Implícito nessas teorias estava o reconhecimento de que a posição estratégica dos gregos no Mediterrâneo em grande parte era responsável pelo seu poderio. Por sua localização, os gregos consideravam-se o povo mais bem governado e com um equilíbrio que lhes dava o direito de serem os dirigentes de outras civilizações.
A ascendência de Roma deu continuidade à tradição que apresentava a posição geoclimática como justificativa para exercer o domínio político de uma área. O autor romano Vitrício associou o sucesso romano à localização ideal de Roma e o perfeito equilíbrio dos romanos graças ao efeito salutar das latitudes médias. Para ele, os povos das latitudes nórdicas eram fisicamente capazes e até corajosos, mas sem inteligência.
Enquanto que os povos das regiões quentes eram capazes de aguentar febre e sofrimentos, porém faltavam-lhes sangue e coragem. Os romanos, ao contrário, achavam-se numa posição intermediária em relação aos extremos climáticos, possuindo tanto coragem como inteligência.
O fim da dominação romana trouxe uma mudança no epicentro do “perfeito ambiente” – das áreas mornas do Mediterrâneo para as áreas mais frias da Europa. O domínio passou para regiões ocupadas por povos considerados anteriormente corajosos, mas de pouca inteligência e com baixa capacidade de organização política. Da mesma maneira, os árabes, que foram a civilização dominante por vários séculos após a queda do império romano, acharam que seu controle era consequência das condições geográficas.
Uma das grandes tradições nos estudos das relações homem/ambiente é tentar desenvolver classificações tipológicas que os relacionem. Uma das mais antigas contribuições ao desenvolvimento de tipologias vem do grande historiador e geógrafo árabe Ibn Khaldum. Ele dividiu o mundo e seus habitantes em zonas climáticas e tentou analisar a contribuição do clima sobre aspectos sócio-culturais. Khaldum considerou os habitantes de climas frios lacônicos e com falta de vivacidade, em contraste com habitantes de climas quentes que eram apaixonados e dados a prazeres físicos intensos. Povos das latitudes médias e temperadas reuniam em suas personalidades o melhor das duas zonas, ou seja, vivacidade e inteligência.
Como seu próprio país não ficava dentro de nenhuma dessas zonas, Khaldum argumentou que uma corrente fria ao largo da costa tinha um efeito amenizador sobre o clima e que na realidade seu país possuía um clima ideal e temperado.
Os estudiosos árabes preservaram, traduziram e adicionaram suas ideias aos clássicos greco-romanos. Assim, quando esses textos recomeçaram a ser lidos na Europa, continham comentários dos intelectuais árabes e judeus de Córdoba, Sevilha, Toledo, Bagdá e Damasco. Santo Tomás de Aquino, por exemplo, aceitou as ideias de Aristóteles e de outros sobre a influência do clima nas civilizações, acrescentando que uma área urbana deve ser bem ventilada e drenada, além de possuir fontes de água. Assim, Santo Tomás de Aquino fez uma importante conexão entre saúde de uma população e seu padrão de desenvolvimento. Como Hipócrates, Aquino observou que os desequilíbrios ecológicos traduzem-se em problemas sanitários, uma vez que a saúde resulta de um equilíbrio homeostático entre um organismo e o meio físico e biótico em que normalmente vive.
O século XVIII foi produtivo no que se refere às tipologias sobre a evolução humana. Turgot, na sua História Universal (1750), fundamentou-se em bases ecológicas: sociedades de caçadores desenvolveram uma organização social no nível de bandos em função da necessidade de se deslocarem para seguir a caça, resultando numa forma de organização dispersa que contribuiu para a difusão dos povos pelo planeta. Observou também que a presença de animais facilmente domesticados conduzia à formação de sociedades pastoris e à concentração populacional, aumentando a possibilidade do surgimento de civilizações. De acordo com Turgot, quanto maior a abundância de recursos naturais, maior seria a população e mais provável o surgimento de sistemas políticos estáveis.
As ideias evolucionistas são muito antigas, mas no século XIX começaram a receber mais atenção. Podemos considerar Lamarck o primeiro grande evolucionista. Ele sugeriu uma teoria baseada no gradualismo evolutivo por meio de herança de características adquiridas. Essencialmente, Lamarck propunha modificações físicas para adaptar-se às mudanças ambientais.
Até este ponto, Lamarck estava certo. Ele errou ao acrescentar que tais mudanças que ocorrem na vida do indivíduo poderiam ser transmitidas às gerações seguintes. Como sabemos hoje, as teorias de Lamarck aplicam-se ao processo de adaptação e evolução cultural, mas não ao processo de evolução das espécies.
O caminho para uma síntese de teoria evolutiva foi facilitada pelas contribuições da geologia. Lyell, em sua obra Princípios de Geologia (1830), utilizou, pela primeira vez, registros geológicos com o objetivo de documentar mudanças evolutivas de plantas e animais, relacionando as entidades biológicas extintas com as ainda vivas. Lyell enfatizou o papel das mudanças ambientais e temporais sobre as formas das comunidades bióticas. Darwin leu a obra de Lyell na sua famosa viagem ao redor do mundo e reconheceu que sua leitura alterou sua percepção sobre os processos de evolução biológica. Lamarck e Lyell também influenciaram Herbert Spencer que, por sua vez influenciou Darwin. Spencer enfatizou o papel da competição entre indivíduos, em vez do papel da adaptação populacional. Spencer foi o primeiro a utilizar o termo “a luta pela sobrevivência”, tentando explicar como o progresso resulta da competição. Infelizmente, suas teorias foram utilizadas na construção de teorias racistas na Europa do século XIX, justificando o colonialismo europeu na África e na Ásia, assim como o comportamento dos colonizadores. A luta pela sobrevivência como justificação das exigências do progresso reinou suprema tanto nas ciências biológicas como nas ciências sociais.
A posição de Charles Darwin nesse cenário representava uma sutil e importante diferença. De acordo com o pensamento darwiniano, a evolução é um processo oportunístico e imprevisível que não necessariamente avança para um ponto melhor, para o progresso, ao contrário do que insistia a maioria dos intelectuais da sua época. Em oposição a Lamarck, sua noção de competição não enfocava o sucesso do indivíduo, mas o sucesso reprodutivo da espécie. Contrastando com os argumentos contendo preconceitos raciais de seus contemporâneos, Darwin apresentou dados biológicos detalhados para apoiar suas ideias sobre a “seleção natural” na obra A origem das espécies (1859). As teorias de Darwin foram simultaneamente sugeridas por Alfred R. Wallace. Darwin enfatizava que a variação genética resulta de processos aleatórios e não-direcionais, sem objetivos particulares. As forças seletivas atuam sobre essa variabilidade e promovem o sucesso reprodutivo diferencial.
A teoria de Darwin não tem o atrativo da teoria de Lamarck, porque apresenta um universo sem significado algum.
Outros cientistas e filósofos propuseram ideias até hoje influentes nesta época fértil do evolucionismo. Karl Marx propôs um esquema evolutivo baseado na luta, não entre as espécies, mas entre classes sociais. Marx sugeriu uma metodologia para estudar o processo de evolução social, baseada na compreensão das formas de organização para a produção, das alternativas econômicas da população, da competição entre grupos sociais pelo controle dos meios de produção e da relação entre trabalho, produção e consumo. Tal como Darwin, Marx via o processo evolutivo como fora do controle dos indivíduos. Para ele, mudanças nas relações de classe, mudanças na tecnologia de produção e lutas de classe eram resultado de uma dinâmica fora de controle dos participantes.
Outra tendência do fim do século XIX que visava compreender a variabilidade humana utilizou um método simples de análise: o agrupamento de artefatos e costumes por localidade geográfica. Geógrafos e mais tarde etnólogos usaram tal metodologia para explicar a presença ou a ausência de artefatos e costumes. O mais influente estudioso da Escola de Antropogeografia foi Friedrich Ratzel. Suas ideias foram influentes no desenvolvimento da Escola Difusionista Alemã e nas várias formas de determinismo ecológico do século XX.
Ratzel concebia o ambiente, em vez da invenção particular ou do esforço do indivíduo, como a causa principal da diversidade e da distribuição das culturas. Para ele a sociedade respondia à natureza do mesmo modo que um animal a seu meio. Sua tese enfatizava o papel das migrações dos povos na difusão cultural e reintroduziu o conceito da posição “geoclimática” no surgimento de sistemas políticos. De acordo com essa perspectiva, montanhas promoviam isolamento e estabilidade cultural, enquanto que áreas niveladas favoreciam migrações e instabilidade cultural.
Verifica-se que o determinismo cultural coexistiu com um renascente determinismo ecológico no fim do século XIX e começo do século XX. A maioria dos cientistas nesta época aderiu a uma ou outra das formas de determinismo anteriormente descritas, especialmente em suas versões racistas.
Em tal cenário surgiu Frans Boas, participando primeiramente da linha antropogeográfica, para então rejeitá-la posteriormente pela falta de evidência científica apresentada. Boas e seus seguidores introduziram novos e rígidos padrões de pesquisa etnográfica mantidos até os dias atuais. Em sua primeira obra, The Central Eskimo (publicada originalmente em 1888), Boas (1964) apresentou um enfoque das inter-relações entre o ambiente físico e fatores culturais que lembra a estratégia de Ratzel. Já no final dessa obra, porém, Boas passou a duvidar da sua análise antropogeográfica e do papel do ambiente sobre a cultura esquimó. A partir de então, não deu mais peso ao papel do ambiente, enfatizando em seu lugar o papel da história no desenvolvimento cultural. Para Boas, o ambiente não é um fator determinante, mas um fator que o homem utiliza de acordo com sua herança cultural. A cultura seleciona o que será utilizado do ambiente. Para Boas, o comportamento humano só é compreensível no contexto cultural, um enfoque que substitui o determinismo ecológico pelo determinismo cultural.
Goldenweisser (1937), um seguidor de Boas, interpretava que o homem criava seu ambiente e não era determinado por ele – um argumento que será mais tarde utilizado por Ferdon (1959) na sua resposta crítica a Meggers sobre as limitações ambientais ao desenvolvimento cultural (1954). Boas e seus estudantes enfatizaram que fatores históricos particulares eram tão significativos na explicação de mudanças sociais como o eram os fatores geográficos e ambientais. Lowie, por exemplo, na sua obra Cultura e Etnologia (1917) tentou demonstrar que o determinismo geográfico da época estava errado, mostrando que nas mesmas condições geográficas se desenvolvem culturas muito diferentes. Lowie demonstrou que a presença de recursos naturais não predispõe uma população a utilizá-los e que fatores históricos, geralmente imprevisíveis, são os que explicam o uso particular dos recursos pelas populações.

2. CONHECIMENTO TRADICIONAL E O SURGIMENTO DA ETNOCIÊNCIA
Nas suas origens, a Etnociência e as etno-x (onde x é uma disciplina da academia) enfatizaram em suas pesquisas os aspectos linguísticos e taxonômicos, relegando a um segundo plano a diversidade e a dinâmica das relações entre “ser humano de uma dada cultura” e “natureza”. O termo “ethnobotany” foi um dos primeiros que surgiram na literatura cientifica, associando o prefixo “etno” a uma das subáreas da biologia, tendo sido cunhado por Harshberger (1896) para trabalhos que tinham como objetivo o estudo do uso de plantas por populações aborígenes. A partir da segunda metade do século XX, muitas pesquisas passaram a utilizar explicitamente termos precedidos pelo prefixo “etno”: Etnobotânica, Etnoecologia, Etnoictiologia, entre outros. O termo Etnociência aparece pela primeira vez no livro Outline of cultural materials de autoria do pesquisador Murdock e colaboradores, editado em 1950.
Em 1954, Kenneth Pike cunhou os termos “êmico” e “ético” para explicar as aproximações que existiam entre idioma e cultura, com a intenção de estabelecer um parâmetro mais resumido às explicações sobre o entendimento que o outro (entrevistado, informante ou mesmo observado) possui a respeito do mundo exterior a partir de sua formulação própria, independentemente dos dados científicos e da provação científica. Para tal explicação Kenneth Pike usou o termo “êmico”, referindo-se ao que o pesquisador obtinha do entendimento do seu pesquisado.
Quanto à abordagem “ética”, ela se compõe de categorias e valores “do observador”, pré-estabelecidos pela ciência, utilizados na descrição e análise por ele realizadas, os quais não correspondem, necessariamente, àqueles que vigoram na sociedade ou cultura em estudo. Enquanto a abordagem ética é conceitualmente lapidada antes do conhecimento, podendo ser considerada a mais convencional, que o pesquisador conhece previamente, independentemente do universo da etnia que será estudada, a abordagem “êmica” baseia-se no entendimento dos valores daquela cultura em especial no “desarmamento” do pesquisador, permitindo-se à abertura para novos conceitos, os quais, para a sua existência, não dependem dos conceitos científicos.
D’Olne Campos (2002) faz um interessante comentário quanto o uso do “ético” e “êmico”, termos inspirados em fonética e fonêmica. Nos primórdios da Sociolinguística, alguns pesquisadores acreditavam que, apenas a partir de transcrições fonéticas, poder-se-ia estudar uma língua estranha. Como em geral, isso se referia a sociedades ágrafas, nelas, por mais forte razão, muito se perderia da entonação (fonêmica) no contexto da fala. Ético e êmico são usados em alguns casos como o que anglo-saxônicos chamam, por um lado, de situação de observador “outsider” (de fora), a partir e com as “ferramentas” da sua ciência, vendo o outro como um “insider” (de dentro), emicamente.
Pesquisas com populações tradicionais revelaram modelos cognitivos complexos, tais como sistemas de classificações de animais e plantas, estratégias de coleta/captura de espécimes, medicina e farmacologia, astronomia, além de uso e manejo de recursos. Esses trabalhos ajudaram a revelar a existência de conhecimentos sofisticados, sob domínio intelectual de populações tradicionais. É permissível assumir, portanto, que foi durante o século XX, marcado pela emergência de novos paradigmas (principalmente o da interdisciplinaridade) e do abandono de velhos preconceitos (principalmente o do etnocentrismo), que a Etnociência se consolidou. Segundo Marques (2002), o que hoje chamamos de Etnociência já emergiu no panorama científico não como um conjunto de disciplinas, mas sim como um campo interdisciplinar, de cruzamentos de saberes, que geraram novos campos. Estes saberes foram oriundos do diálogo entre as ciências naturais e as ciências humanas e sociais.
A Etnociência trata do estudo das percepções culturais do mundo e de como os indivíduos organizam essas percepções por meio de linguagem. Esta ciência, que parte da linguística para estudar o conhecimento das populações humanas sobre os processos naturais, tentando descobrir a lógica subjacente ao conhecimento humano do mundo natural, as taxonomias e classificações totalizadoras, está entre os enfoques que têm contribuído para os estudos das relações entre o homem e o meio ambiente. Os resultados desses estudos, que envolvem o conhecimento tradicional, podem facilitar a concepção de novos modelos de sustentabilidade do uso e manejo dos recursos naturais.
Segundo Berlin (1992), há três áreas básicas de estudo na etnociência: a da classificação, que se preocupa em estudar os princípios de organização de organismos em classes; a da nomenclatura, em que são estudados os princípios linguísticos para nomear as classes folk; e a da identificação, que estuda a relação entre os caracteres dos organismos e a sua classificação.
A grande atração que a Etnociência exerce vem de sua promessa de encontrar as representações paradigmáticas precisas e altamente elucidativas dos fenômenos culturais que estariam associados às descrições linguísticas da fonologia e da gramática.
Costa Neto et al. (2002) discorrem sobre as dificuldades encontradas para que se realize um estudo nas etnociências.
Afirmam que há pelo menos três dificuldades quando se pretende realizar um estudo “etno” e que elas são intrínsecas e extrínsecas ao pesquisador. A primeira se apresenta como um preconceito da ciência ocidental que, de um modo geral, cria diversas barreiras para aceitar as etnociências. Tradicionalmente, os cientistas foram treinados para se considerarem os únicos capazes de descrever o universo e de dar a ele um sentido lógico.
Essa é a perspectiva que aponta para que a ciência ocidental julgue qualquer hipótese ou interpretação elaboradas fora de suas próprias regras de preceitos, as quais fujam de sua estrita objetividade, como muito duvidosas, e para que estas sejam quase que totalmente banidas dos meios acadêmicos.
A segunda dificuldade, notadamente importante, é a questão que trata da excessiva especialização dos biólogos e cientistas sociais. Normalmente os cientistas sociais não recebem o devido treinamento que os capacite para trabalhar com informações das ciências biológicas. O inverso também é constatado, sendo que muitos biólogos consideram os dados das ciências sociais como de pouca ou nenhuma importância para os seus estudos e raramente levam em consideração os fatores culturais, entre os quais os costumes, a cosmogonia e a cosmologia de uma dada comunidade, não se preocupando com dados históricos – ou mesmo atuais –, não estritamente relacionados à biologia, dos sistemas ecológicos.
A terceira dificuldade diz respeito ao etnocentrismo, que, como se sabe, conceitualmente é uma visão de mundo em que um grupo se considera o centro de todos os outros e em que a tendência é considerar as categorias, normas e valores da própria sociedade, neste caso da ciência ocidental, os únicos parâmetros verdadeiros e testáveis, enquanto os outros não são verdadeiros e, tradicionalmente, são considerados errados, falsos ou de menor valor.
Essa dicotomia dos saberes leva a caminhos conflituosos.
Muitas vezes as comunidades dotadas de um saber-fazer que as acompanha por várias gerações dificilmente são levadas em conta quando se planejam formas de uso sustentáveis de recursos naturais. Configura-se, nesse caso, o confronto de dois saberes: o tradicional e o científico-moderno. A esse respeito, Diegues (2001) afirma que, de um lado, está o saber acumulado sobre os ciclos naturais, a reprodução e migração da fauna, a influência da lua nas atividades de corte de madeira e de pesca ou sobre sistemas de manejo e, de outro lado, está o conhecimento científico, que não apenas desconhece, como também, na maioria das vezes, despreza o conhecimento tradicional acumulado.

3. CONHECIMENTO TRADICIONAL E CONHECIMENTO CIENTÍFICO: O DIÁLOGO DOS SABERES
Muitos pesquisadores em manejo de recursos naturais têm discutido as razões para tantos exemplos de insucesso no manejo de recursos naturais ao redor do mundo. A crença de que os especialistas têm toda a informação necessária para saber como utilizar de forma sustentável os recursos está relacionada ao etnocentrismo intrínseco a algumas ciências, das quais seus respectivos especialistas acreditam ter as habilidades necessárias a uma autosuficiência para manejar os recursos naturais, mantendo-se céticos com relação a algum outro tipo de conhecimento, principalmente aquele que nem sempre permite verificação cientifica, como o conhecimento tradicional possuído por comunidades.
Na perspectiva de resolver esta carência de um conhecimento mais dinâmico e integrador sobre os ecossistemas, muitos especialistas em manejo têm procurado esta possibilidade no conhecimento tradicional, ou conhecimento ecológico tradicional (CET) como alguns preferem chamar. Berkes (1999) define esse conhecimento como um [...] corpo acumulativo de conhecimento, práticas e crenças das comunidades tradicionais sobre a relação entre os seres vivos (inclusive o homem) e o seu ambiente, que se desenvolve ao longo do tempo através de um processo adaptativo e é repassado através de gerações por transmissão cultural.
Através dessa perspectiva é possível reconhecer diferentes relações e as suas implicações ecológicas e culturais, como sugere a Ecologia Humana. Posey (1987) nos mostra que essa relação compreende ao mesmo tempo uma interação e uma modificação constantes. Isso significa que, do ponto de vista ecológico humano, a definição de biodiversidade não se limita a um aspecto unicamente biológico. Mais do que uma diversidade genética de indivíduos e de espécies, a biodiversidade representa o resultado de práticas milenares dessas comunidades.
A prática dessas comunidades pode estar relacionada à ideologia conservacionista, mas não necessariamente. Essa ideologia pode levar a uma exploração limitada dos recursos, no entanto, podem-se ter práticas culturais que naturalmente sejam conservacionistas sem que necessitem de qualquer tipo de ideologia ou de rotulação. Isso significa dizer que existem populações que simplesmente seguem regras culturais locais para o uso e apropriação dos recursos naturais, e estas, por sua vez, é que se definem como sustentáveis. Trata-se de uma relação que ultrapassa a consciência conservacionista e se expressa como uma forma de vida.
As comunidades tradicionais aprendem de forma cumulativa, no decorrer dos tempos, em um processo contínuo de aprimoramento e revalidação de suas práticas. Faz parte de sua cultura a “atividade inventiva”. Não existem regras para o sucesso de uma prática sem que esta se submeta a tentativa de acerto e de erro. É dessa forma que essas comunidades acompanham os padrões oferecidos pela natureza e é assim que respondem progressivamente aos obstáculos encontrados.
A cada geração o conhecimento se renova e novos valores são incorporados; apesar de se constatar mudanças e conflitos, muitas práticas permanecem, assim como os traços tradicionais característicos de cada cultura.
Para se manejar um recurso ou para se ordenar um espaço é preciso conhecer profundamente cada elemento físico, biológico, ecológico, simbólico, mitológico, etc., que compõe o ambiente. Essa complexidade, no entanto, só é apreendida por aqueles que de alguma forma reconhecem esses elementos como parte de sua dinâmica de vida, incorporando-os de forma natural – o que caracteriza a identidade do grupo com o meio.
Nas últimas décadas têm-se retratado evidências da habilidade que os grupos desenvolvem para utilizar e alocar os direitos de uso entre seus membros, evidências essas relevantes sobre o manejo de recursos comum. Vale destacar, para a região amazônica, os acordos de pesca que vêm sendo firmados nos últimos anos e que estão se proliferando, na medida em que as comunidades ribeirinhas buscam proteger os lagos da pressão da pesca comercial.
Os acordos de pesca representam formas participativas de gestão, de regulamentação dos recursos pesqueiros das regiões de várzea da Amazônia Central desde os anos 1960 e 1970. Este novo paradigma da pesca na Amazônia parte do princípio de que a sustentabilidade é possível manejando o recurso como um bem comum e não como recurso de uso exclusivo ou restrito. Fatos como esses contradizem a teoria de Hardin (1968) em a Tragédia dos comuns, obra na qual o autor nega a possibilidade de arranjos institucionais ou de qualquer outra forma de interação e de ligação entre os indivíduos envolvidos. No entanto, destituídas de qualquer burocracia oficial, as instituições informais mantêm sistemas tradicionais de acesso ao recurso, nos quais residem as grandes forças de manejo e do direito consuetudinário (direito de uso fundamentado em costumes locais).
Muitos estudos têm sido desenvolvidos nesta área temática, enfocando as relações entre as comunidades tradicionais e os recursos naturais do ambiente, e alguns destes têm proposto que a incorporação do conhecimento dessas comunidades é fundamental no desenvolvimento de planos de manejo sustentável. No entanto, o respeito às diferentes culturas deve ser levado em consideração. Viertler (2001) afirma que cada cultura induz os seus portadores a desenvolver vivências peculiares a partir do entre-jogo de certas modalidades privilegiadas de percepção do mundo natural. Tais modalidades privilegiadas de percepção ou primazias de percepção variam de uma para outra cultura.
Uma tribo indígena Kashinawa, por exemplo, não confere primazia aos aspectos visuais do mundo físico tal como nós o fazemos. No mundo Kashinawa, o mundo visível constitui um mero reflexo de um mundo mais real e importante, não visível, que se manifesta por meio de experiências tais como os sonhos, as visões tidas durante os transes, os cheiros e os sons emanados dos cantos e das danças religiosas. Neste contexto, Viertler (2001) nos faz o seguinte questionamento: como dialogar com um Kashinawa sem recair em monólogos ou imposições? Além desta dificuldade, lembremo-nos que, enquanto o pesquisador tenta desenvolver o seu trabalho de pesquisa, também o informante Kashinawa não desistirá de tentar se comunicar. Isto porque o informante tentará tirar alguma vantagem material ou, quando for mais generoso, educar ou socializar o pesquisador para que este aprenda a fazer perguntas que tenham um mínimo de sentido. Esta é uma situação possível de ocorrer em outras comunidades, como os ribeirinhos amazônicos, por exemplo, já que é constatada uma intrincada teia de dificuldades e armadilhas que nos impedem a comunicação mais espontânea e habitual com representantes de sociedades culturalmente diferentes da nossa.
Entre os índios Bororo do Mato Grosso, por exemplo, o “não falar” associado ao ficar de “rosto sério” e ao “cruzar de braços” significa reprovação ou crítica muda. Este padrão de comunicação social ou “etiqueta” é bastante disfuncional no contexto das relações destes índios com os não índios e outras tribos indígenas brasileiras. Isto porque, ao se apegarem a esta etiqueta, os Bororo não chegam a contestar abertamente as autoridades, etiqueta esta interpretada como “passividade” ou “desinteresse” pelos não índios. Já os índios Xavante, cujo padrão social permite que gritem, “falem duro” e discordem abertamente, acabam alcançando vantagens econômicas e políticas junto a órgãos do governo, a missionários e a outras forças políticas de não índios. Portanto, do ponto de vista da etiqueta ligada à comunidade social e intercultural, os Xavante possuem maior “afinidade” ou “comunicabilidade” com os não índios do que os Bororo, estes últimos mais fechados, apesar de terem sido obrigados a conviver com o dominador branco há mais tempo do que os primeiros.
A fim de alcançar uma real comunicação com os portadores de outras culturas, é preciso descobrir tais etiquetas de comunicação intercultural. Se o “falar” é importante à comunicação, o “não falar” pode ter vários significados, desde a timidez e humildade até a discordância ou a reprovação.
Antes de finalizarmos esta temática queremos ressaltar que a partir da Etnociência, vista anteriormente, originaram-se vários campos de domínios específicos, entre estes a Etnobiologia (com suas sub-áreas), recebendo contribuições basicamente da sociolinguística, da antropologia estrutural e da antropologia cognitiva. A etnobiologia, na esfera da produção do conhecimento científico, caracteriza-se como uma ponte entre as ciências humanas e as ciências biológicas e vice-versa, fornecendo ferramentas essenciais para a interdisciplinaridade entre ambas e proporcionando ao pesquisador desenvolver um trabalho mais profundo e abrangente, testando hipóteses que dificilmente seriam elaboradas sem uma metodologia interdisciplinar. A conceituação epistemológica, neste caso, resulta da recusa de interpretação reducionista. Para se estudar um assunto por meio das etnociências, como a Etnobiologia, é indispensável o reconhecimento de que não há divergências entre as diversas linhas de pesquisa, mas sim que existe uma complementaridade entre elas e que a ciência não é “monolítica” e acabada, bem como o conhecimento e o saber não são estanques, ou exclusivos de um determinado grupo.
Abaixo, trecho de um trabalho sobre a cognição comparada entre o conhecimento tradicional dos pescadores de pirarucu (Arapaima gigas), no estado do Amazonas, sobre a reprodução da espécie e a literatura científica disponível, o qual nos mostra a congruência entre esses tipos de conhecimentos.
Quem cuida dos filhotes é o macho, que fica boiando manso com queixo e o rabo vermelho” (citação dos pescadores).
“...Somente no período de reprodução é possível a identificação do sexo dos pirarucus, uma vez que o macho adquire acentuada coloração escura na parte superior da cabeça e na região dorsal, que se prolonga até quase a inserção da nadadeira dorsal, enquanto os flancos, ventre e parte caudal adquirem coloração vermelha.” (Braga, 2009) (citação da literatura).

CONCLUSÃO
No decorrer do texto verificamos que o conhecimento tradicional, de senso comum, ou conhecimento popular, como também se ouve falar, durante muito tempo vem, de alguma forma, sendo utilizado e transmitido por várias gerações, mesmo sendo visto por muitos como um conhecimento de menor importância e desprovido de razão. Nas últimas décadas já se observa uma tendência em curso que é a distinção entre as diversas formas de conhecimento. Nesta linha, Santos (2006) afirma que a ciência moderna construiu-se contra esse conhecimento por considerá-lo superficial e ilusório, ou até mesmo falso. Já a ciência pós-moderna procura dar maior crédito ao senso comum por reconhecer virtualidades nesta forma de conhecimento que ajudarão a enriquecer a nossa relação com o mundo.
Do estudo científico sobre o conhecimento tradicional verificamos a emergência de um novo campo de pesquisa, denominado por alguns autores de “Etnociência”. No entanto, é preciso, antes de tudo, se reconhecer a existência nas comunidades tradicionais de outras formas de se perceber, representar e manejar a biodiversidade, igualmente válidas e além daquelas oferecidas pela ciência reducionista. E isso já vem ocorrendo, pois se percebe que nunca houve tantos cientistas interessados no estudo do conhecimento produzido do lado de fora do mundo acadêmico e usado por comunidades para compreender o mundo.
Concordamos com o Prof. Antonio Carlos Diegues (2009) de que não é tarefa fácil romper com os padrões clássicos dessa ciência reducionista, pois nossas instituições de pesquisa e ensino são, em geral, unidisciplinares, discriminadoras dos saberes tradicionais, marcadas por “correias de transmissão” que nos ligam aos grandes centros, dentro e fora do país, onde são gerados modelos científicos reducionistas que, transformados em práticas (ou ideologias), levam a uma forma de conservação autoritária e pouco eficaz, subordinada a interesses não locais.
É preciso, portanto romper com essas “correias”, superar esses modelo e práticas e dar a devida importância a esse tipo de conhecimento, seja como ferramenta local para compreender o mundo, seja como um atalho para se produzir conhecimento científico a partir de “dicas” populares. Isto deve ser feito principalmente nas análises de problemas ambientais, onde a constituição de equipes interdisciplinares compostas de pesquisadores das áreas das ciências naturais e humanas já se mostrou não ser suficiente. As comunidades devem participar do processo, e os resultados dos trabalhos também devem ser  submetidos à critica da sociedade, dentro de processos de consultas democráticas, para que as opiniões dos comunitários estejam incluídas e façam parte da pesquisa.

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NOTAS
1) Mestre em Biologia de Água Doce e Pesca Interior pelo INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia) e professor do ICTA (Instituto de Ciências e Tecnologia das Águas) da UFOPA (Universidade Federal do Oeste do Pará).
2) O autor usa o termo etnocentrismo no sentido em que habitualmente é empregado e entendido entre alguns cientistas, mas ressalta: é preciso admitir que o etnocentrismo é uma atitude universal e inerente aos indivíduos e difere do racismo, que é uma atitude própria do Ocidente moderno e que melhor representa a ideia esboçada acima.
3) Cultura: é um dos principais conceitos necessários para o entendimento do comportamento de populações humanas. De forma prática, cultura é o conhecimento adquirido; é passada através de gerações por processos de socialização, a qual inclui um conjunto de regras para a convivência, relacionados a comportamento em grupo, valores, linguagem e tecnologia (Kormondy & Brow, 2002, p. 41).
4) As falácias são discutidas no texto 2 deste livro (Introdução à Filosofia), quando se discute “lógica”.
5) “Em ecologia humana focalizamos as interações entre dois sistemas. Um é o Homem, sistema bem mais complexo que aqueles encontrados entre os mamíferos superiores, onde a inteligência, a criatividade, o livre-arbítrio e o domínio de artes e ciências geram desempenhos que excedem o condicionado pelo binômio genes-ambiente. O outro é o meio ambiente do Homem, também mais complexo que qualquer outro, uma vez que é constituído não só do universo abiótico e do universo biótico, mas também do ambiente construído pelo Homem, suas religiões, suas doutrinas e teorias, sua economia, suas máquinas, seus governos, sua sociedade, seus mitos, etc.”

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