CONHECIMENTO
TRADICIONAL: CONCEITOS E DEFINIÇÕES
Tony
Marcos Porto Braga1
INTRODUÇÃO
A região amazônica está sendo atualmente explorada pela imposição
de vários sistemas de utilização desenvolvidos em outros locais e frequentemente
inapropriados às suas características. Diante disso, surgem alguns
questionamentos que podem nos levar a uma melhor clareza e reflexão do tema em
questão. Morán (1994) afirma que nos últimos anos do século XX já vivíamos com
uma grande preocupação: será que a imensa floresta amazônica sobreviverá às
recentes depredações?
Poderá a medicina e a farmacologia descobrir na floresta novas substâncias
químicas para a cura de doenças até agora incuráveis? Serão as populações
indígenas arrasadas e dizimadas cultural e biologicamente? Diante desses
questionamentos, chegamos à outra questão proposta por Albuquerque (2006):
podem os cientistas, hoje, trabalhar a serviço da terra, se estamos mergulhados
em um referencial etnocêntrico? O mesmo autor afirma que esse etnocentrismo2
não nos permite reconhecer que outras culturas3 (ou pessoas), diferentes da
nossa, podem possuir um sistema de conhecimento igualmente válido, o qual possa
responder, orientar e organizar as relações dessas culturas com o seu ambiente.
Mais do que isso: trata-se de indagar como esse corpo de conhecimento pode
interferir na nossa própria percepção de realidade.
Sem sombra de dúvida é preciso discutir essas questões, sobretudo
as questões ambientais decorrentes das atividades humanas sobre o meio ambiente,
pois estão entre os temas modernos que exigem uma abordagem interdisciplinar.
Discutir esses conceitos em um período de nossa história científica caracterizado
pela intolerância e pelas ideias de superioridade étnica foi e continua sendo
uma tarefa árdua.
Diegues (2001) afirma que os especialistas de várias disciplinas
se veem forçados a cooperar entre si em razão do surgimento de problemas
complexos inerentes à vida social moderna, como demonstram estudos sobre o
desenvolvimento, a paz e o meio ambiente. No entanto, essa cooperação entre as várias
disciplinas do campo científico pode tornar-se falaciosa (4) quando ocorre em
situações como as existentes na elaboração da maioria dos Estudos de Impactos
Ambientais (EIA). Em grande parte desses estudos, existe uma “pseudo-interdisciplinaridade”,
na medida em que seu objetivo está pré-determinado: a aprovação de projetos de
desenvolvimento que apresentam impactos sobre o meio ambiente. O mesmo autor
esclarece que, no geral, trata-se de uma justaposição de diagnósticos
realizados por técnicos ou pesquisadores de várias disciplinas nas áreas de
biologia, geologia, geomorfologia, geografia, sociologia, economia e outras,
sem que haja a menor interação entre eles. O relatório final consiste na
justaposição de dados por um chefe de equipe que conhece de antemão qual deva
ser a conclusão final.
O estudo dos impactos da ação humana sobre o meio ambiente se
localiza, no entanto, na interface entre as diversas ciências naturais e
sociais, demandando a contribuição e a ação das diversas disciplinas e dos diversos
tipos de conhecimentos. Dito de outra forma, na atual questão da
conservação da biodiversidade é preciso a participação ativa e o engajamento de
diferentes profissionais em um esforço articulado envolvendo as populações
locais (e seus conhecimentos tradicionais) nesse empreendimento.
Diversos estudos já documentaram que populações locais podem apresentar um
conhecimento refinado do ambiente em que vivem. Dessa forma, excluí-las de
processos que envolvam garantir a conservação da biodiversidade existente
parece ser uma fórmula ineficiente e danosa. Mas não se confunda essa
participação com educação ambiental, a ideia de que “essas pessoas precisam
ser instruídas sobre as questões ambientais”. Não se trata aqui de “educar”
essas populações, mas de estabelecer parcerias que possam assegurar a sua
sobrevivência biológica e cultural e que podem subsidiar alternativas viáveis e
politicamente sérias de desenvolvimento sustentável (Diegues, 2001;
Albuquerque, 2006).
1
CONHECIMENTO TRADICIONAL: HISTÓRIA E A RELAÇÃO DO HOMEM COM O AMBIENTE
Internacionalmente, o termo “tradicional” é utilizado como
adjetivo, referindo-se a tipo de manejo, tipo de sociedade, forma de utilização
de recursos, de território, modo de vida, grupos específicos e tipos culturais.
Diegues & Arruda (2001) definem conhecimento tradicional como o
conjunto de saberes e saber-fazer a respeito do mundo natural e sobrenatural, transmitido
oralmente, de geração em geração.
Precisamos, portanto, conhecer os caminhos percorridos historicamente
por diferentes gerações e suas ideias próprias sobre suas relações com o meio
ambiente, com o mundo natural. Este conhecimento, além disso, se faz necessário
para entendermos as polêmicas causadas por imprecisões de definição e pela
utilização de certos conceitos (muitos deles ecológicos) por áreas como
sociologia, antropologia e outras. Begossi (1993), ao estudar a “relação do
homem com o ambiente”, inclui tantos outros fatores (como econômicos, sociais,
psicológicos), que transcende a ecologia.
Sociedades relativamente autônomas, como, por exemplo, algumas
populações isoladas da Amazônia, terão relações íntimas e de profunda
familiaridade com o meio ambiente do qual dependem para suprir suas
necessidades, enquanto uma sociedade na qual as comunidades são interdependentes
e especializadas, como, por exemplo, as urbanas, dependerão tanto ou mais das
suas relações institucionais com outras comunidades do que do ambiente físico
para sua sobrevivência.
Portanto, quando falamos das relações entre o homem e o ambiente,
temos que observar com precisão o grau de relacionamento entre a população
humana e seu ambiente. Em alguns casos, o ambiente com o qual interage a
população é um ambiente físico (a natureza), enquanto em outros casos tal
ambiente serão principalmente as instituições sociais (isto é, a sociedade).
Contudo, com a possível exceção dos bandos primitivos da mais remota
pré-história, as comunidades humanas dependem da mediação social tanto ou mais
do que dependem do ambiente físico. Portanto, as relações ambientais do Homo
sapiens só podem ser compreendidas se nessa reflexão incluímos o papel da
cultura e das instituições sociais que, por milhares de anos, intervêm entre
nós e o ambiente.
A diversidade de interações que as culturas humanas têm com o
ambiente vem sendo tema de trabalhos com enfoques variados. Essas relações de
conhecimento e ação entre populações e seu ambiente podem ser estudadas tanto
do ponto de vista das ciências biológicas como das ciências sociais. Para se ter
uma ideia, vejamos a interação da Ecologia com várias outras disciplinas, a
qual possibilitou, de forma extraordinariamente rica, analisar o comportamento
humano em interação com a natureza, representando o que se denomina Ecologia
Humana, como é bem exposto por Saldanha (2005) (5).
A história das teorias homem/natureza no mundo ocidental tem
criado certos temas persistentes e contraditórios.
É possível observar a influência de tais temas nas contradições e
nas atitudes relativas ao ambiente natural da Amazônia. De um lado, há a
tendência a considerar a Amazônia um “Inferno Verde”, uma região na qual só
populações com técnicas de subsistência simples podem sobreviver, devido às
limitações do ambiente quente e úmido, de solos pobres e chuvas torrenciais, como
afirmou Betty Meggers (1977). Morán (1994) afirma que esse enfoque justificou a
falta de atuação da sociedade brasileira na Amazônia, bem como a falta de
“progresso” por parte das comunidades no interior da região. De outro lado,
temos a tradição intelectual que vê a Amazônia como o “paraíso”, o “celeiro e o
pulmão do mundo” ou o “El Dorado”.
Morán (1994) faz uma revisão das teorias sobre a interação homem/natureza
formuladas desde a Antiguidade e afirma que as mesmas refletem aspirações de grupos
dominantes nas sociedades hierarquizadas em que foram apresentadas. Essas teorias,
que serão mencionadas mais adiante, tiveram alguns de seus elementos
constituintes perpetuados por culturas tradicionais em diversas partes do
mundo. Antes de abordarmos o tema, porém, vale a pena apontar quais eram as
relações dos primeiros habitantes da América com os “descobridores”, cotejando
essas informações com as teorias que serão expostas.
Os livros de História têm registrado que a América foi descoberta
por Cristóvão Colombo no dia 12 de outubro de 1492, quando aportou na ilha
que denominou de São Salvador (hoje Watling), no arquipélago das Bahamas, e que
o Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral no dia 22 de abril de
1500.
Tais registros, entretanto, são frutos do etnocentrismo europeu, pois
os “descobridores”, ao encontrarem a América, ou melhor, o Novo Mundo, habitado
por populações em graus diferentes de desenvolvimento cultural, às quais
chamaram de índios (porque Colombo pensou ter chegado às Índias), viram
nelas seres inferiores, exóticos, que precisavam ser “civilizados”, colonizados
e cristianizados. Por outro lado, as pesquisas arqueológicas, botânicas,
genéticas, linguísticas e outras têm levado a evidências que demonstram ser o
homem americano originário da Ásia. Assim, se ele não é autóctone, foi,
portanto o descobridor real desse Novo Mundo que os europeus revelaram ao Velho
Mundo. Eram, provavelmente, grupos de caçadores, os quais possuíam maneiras
peculiares de pensar, agir e sentir, maneiras estas que representavam a sua
adaptação diante da vida. Eles, provavelmente chegaram ao novo mundo com a finalidade
de sobreviver e aí viveram sem a preocupação de colonizar seus semelhantes, se
quisermos contrastar seu modo de vida com o processo de colonização que se
iniciou com a chegada dos espanhóis e portugueses (Oliveira, 1983, p. 144).
As mais antigas teorias conhecidas sobre as interações homem/natureza
foram produzidas sob o estímulo do contato entre a civilização grega e
outras culturas. Os gregos no período pré-helênico penetraram no Egeu como
figuras dominantes do Mediterrâneo, criando colônias desde o Norte da África
até o Mar Negro. O conhecimento tradicional acumulado pelos babilônios,
persas, egípcios e hindus encontrou um ambiente acolhedor na Grécia, e ali
novos elementos foram incorporados no dia-a-dia da população e também em
diversas teorias. A “teoria dos humores”, que chegou a um alto grau de
elaboração na Índia, entre as culturas védicas, sofreu desenvolvimento ainda
maior na Grécia. Empédocles (504-443 a.C.) considerou o mundo como
composto por quatro elementos: fogo, terra, água e ar. A união desses elementos
criava tudo o que é vivo, enquanto que a falta de harmonia entre os elementos
seria responsável pela doença e morte. As teorias de Empédocles eram dinâmicas,
destacando equilíbrio e mudança como as duas forças responsáveis pelo fluxo dos
humores. De acordo com essas teorias, se uma mudança ocorria, o sangue mudava
em espessura e o sistema tentava voltar ao equilíbrio pelo uso de substâncias
que diluíam ou esfriavam o sangue. As teorias de Empédocles influenciaram o
pensamento cientifico por vários séculos e suas ideias sobre equilíbrio
dinâmico enquadravam-se bem com ideias contemporâneas sobre o processo
adaptativo.
O pensamento biológico dos gregos foi ainda mais influente através
da obra de Hipócrates. As teorias de Hipócrates incorporaram os quatro
elementos de Empédocles adicionando quatro qualidades que estariam presente em
todas as coisas: o frio, o calor, o seco e o molhado. Junto aos quatro humores
(isto é, sangue, fleuma, bile amarela e bile negra), esses fatores (agora se
tornam oito) serviam para diagnosticar todos os estados de saúde, doença e
personalidade. O sangue representava um humor que era quente e úmido; a fleuma
um humor frio e úmido; a bile amarela um humor quente e seco, e a bile negra um
humor frio e seco. Os órgãos do corpo produziam humores que tinham que se
manter em equilíbrio de forma a evitar doenças. Da produção equilibrada dos
humores vinha saúde, bom caráter e inteligência. Do desequilíbrio resultavam a
doença e a morte. Essas ideias persistem até hoje na medicina popular do
Brasil, e em partes da América Latina, para onde vieram trazidas pelos
espanhóis e portugueses.
Hipócrates é responsável pelo começo de uma tradição que continuou
até o século XX, que tentava explicar as diferenças entre as etnias a partir de
diferenças climáticas. Por exemplo, Hipócrates considerava que os asiáticos
eram estoicos em consequência do clima estável que levava a uma atitude tranquila
e serena.
As teorias gregas surgiram tanto de observações do homem e da
natureza como da herança de tradições antigas.
De acordo com tais teorias, climas quentes e secos reduziam a
vitalidade, populações de climas mais brandos tinham uma natureza apaixonada, e
povos de climas frios possuíam fortaleza física. Implícito nessas teorias
estava o reconhecimento de que a posição estratégica dos gregos no Mediterrâneo
em grande parte era responsável pelo seu poderio. Por sua localização, os gregos
consideravam-se o povo mais bem governado e com um equilíbrio que lhes dava o
direito de serem os dirigentes de outras civilizações.
A ascendência de Roma deu continuidade à tradição que apresentava
a posição geoclimática como justificativa para exercer o domínio político de
uma área. O autor romano Vitrício associou o sucesso romano à
localização ideal de Roma e o perfeito equilíbrio dos romanos graças ao efeito
salutar das latitudes médias. Para ele, os povos das latitudes nórdicas eram
fisicamente capazes e até corajosos, mas sem inteligência.
Enquanto que os povos das regiões quentes eram capazes de aguentar
febre e sofrimentos, porém faltavam-lhes sangue e coragem. Os romanos, ao
contrário, achavam-se numa posição intermediária em relação aos extremos
climáticos, possuindo tanto coragem como inteligência.
O fim da dominação romana trouxe uma mudança no epicentro do
“perfeito ambiente” – das áreas mornas do Mediterrâneo para as áreas mais frias
da Europa. O domínio passou para regiões ocupadas por povos considerados anteriormente
corajosos, mas de pouca inteligência e com baixa capacidade de organização
política. Da mesma maneira, os árabes, que foram a civilização dominante por
vários séculos após a queda do império romano, acharam que seu controle era consequência
das condições geográficas.
Uma das grandes tradições nos estudos das relações homem/ambiente
é tentar desenvolver classificações tipológicas que os relacionem. Uma das mais
antigas contribuições ao desenvolvimento de tipologias vem do grande
historiador e geógrafo árabe Ibn Khaldum. Ele dividiu o mundo e seus habitantes
em zonas climáticas e tentou analisar a contribuição do clima sobre aspectos
sócio-culturais. Khaldum considerou os habitantes de climas frios lacônicos e
com falta de vivacidade, em contraste com habitantes de climas quentes que eram
apaixonados e dados a prazeres físicos intensos. Povos das latitudes médias e
temperadas reuniam em suas personalidades o melhor das duas zonas, ou seja,
vivacidade e inteligência.
Como seu próprio país não ficava dentro de nenhuma dessas zonas,
Khaldum argumentou que uma corrente fria ao largo da costa tinha um efeito
amenizador sobre o clima e que na realidade seu país possuía um clima ideal e
temperado.
Os estudiosos árabes preservaram, traduziram e adicionaram suas
ideias aos clássicos greco-romanos. Assim, quando esses textos recomeçaram a
ser lidos na Europa, continham comentários dos intelectuais árabes e judeus de Córdoba,
Sevilha, Toledo, Bagdá e Damasco. Santo Tomás de Aquino, por exemplo,
aceitou as ideias de Aristóteles e de outros sobre a influência do clima nas
civilizações, acrescentando que uma área urbana deve ser bem ventilada e
drenada, além de possuir fontes de água. Assim, Santo Tomás de Aquino fez uma importante
conexão entre saúde de uma população e seu padrão de desenvolvimento. Como
Hipócrates, Aquino observou que os desequilíbrios ecológicos traduzem-se em
problemas sanitários, uma vez que a saúde resulta de um equilíbrio homeostático
entre um organismo e o meio físico e biótico em que normalmente vive.
O século XVIII foi produtivo no que se refere às tipologias sobre
a evolução humana. Turgot, na sua História Universal (1750),
fundamentou-se em bases ecológicas: sociedades de caçadores desenvolveram uma
organização social no nível de bandos em função da necessidade de se deslocarem
para seguir a caça, resultando numa forma de organização dispersa que contribuiu
para a difusão dos povos pelo planeta. Observou também que a presença de
animais facilmente domesticados conduzia à formação de sociedades pastoris e à
concentração populacional, aumentando a possibilidade do surgimento de civilizações.
De acordo com Turgot, quanto maior a abundância de recursos naturais, maior
seria a população e mais provável o surgimento de sistemas políticos estáveis.
As ideias evolucionistas são muito antigas, mas no século XIX
começaram a receber mais atenção. Podemos considerar Lamarck o primeiro
grande evolucionista. Ele sugeriu uma teoria baseada no gradualismo evolutivo
por meio de herança de características adquiridas. Essencialmente, Lamarck
propunha modificações físicas para adaptar-se às mudanças ambientais.
Até este ponto, Lamarck estava certo. Ele errou ao acrescentar que
tais mudanças que ocorrem na vida do indivíduo poderiam ser transmitidas às
gerações seguintes. Como sabemos hoje, as teorias de Lamarck aplicam-se ao
processo de adaptação e evolução cultural, mas não ao processo de
evolução das espécies.
O caminho para uma síntese de teoria evolutiva foi facilitada pelas
contribuições da geologia. Lyell, em sua obra Princípios de Geologia (1830),
utilizou, pela primeira vez, registros geológicos com o objetivo de documentar
mudanças evolutivas de plantas e animais, relacionando as entidades biológicas
extintas com as ainda vivas. Lyell enfatizou o papel das mudanças ambientais e temporais
sobre as formas das comunidades bióticas. Darwin leu a obra de Lyell na
sua famosa viagem ao redor do mundo e reconheceu que sua leitura alterou sua
percepção sobre os processos de evolução biológica. Lamarck e Lyell também
influenciaram Herbert Spencer que, por sua vez influenciou Darwin.
Spencer enfatizou o papel da competição entre indivíduos, em vez do papel da
adaptação populacional. Spencer foi o primeiro a utilizar o termo “a luta
pela sobrevivência”, tentando explicar como o progresso resulta da
competição. Infelizmente, suas teorias foram utilizadas na construção de
teorias racistas na Europa do século XIX, justificando o colonialismo europeu
na África e na Ásia, assim como o comportamento dos colonizadores. A luta pela sobrevivência
como justificação das exigências do progresso reinou suprema tanto nas ciências
biológicas como nas ciências sociais.
A posição de Charles Darwin nesse cenário representava uma sutil e
importante diferença. De acordo com o pensamento darwiniano, a evolução é um
processo oportunístico e imprevisível que não necessariamente avança para um
ponto melhor, para o progresso, ao contrário do que insistia a maioria dos intelectuais
da sua época. Em oposição a Lamarck, sua noção de competição não enfocava o
sucesso do indivíduo, mas o sucesso reprodutivo da espécie. Contrastando com os
argumentos contendo preconceitos raciais de seus contemporâneos, Darwin apresentou
dados biológicos detalhados para apoiar suas ideias sobre a “seleção natural”
na obra A origem das espécies (1859). As teorias de Darwin foram
simultaneamente sugeridas por Alfred R. Wallace. Darwin enfatizava que a
variação genética resulta de processos aleatórios e não-direcionais, sem objetivos
particulares. As forças seletivas atuam sobre essa variabilidade e promovem o
sucesso reprodutivo diferencial.
A teoria de Darwin não tem o atrativo da teoria de Lamarck, porque
apresenta um universo sem significado algum.
Outros cientistas e filósofos propuseram ideias até hoje influentes
nesta época fértil do evolucionismo. Karl Marx propôs um esquema
evolutivo baseado na luta, não entre as espécies, mas entre classes sociais.
Marx sugeriu uma metodologia para estudar o processo de evolução social,
baseada na compreensão das formas de organização para a produção, das
alternativas econômicas da população, da competição entre grupos sociais pelo
controle dos meios de produção e da relação entre trabalho, produção e consumo.
Tal como Darwin, Marx via o processo evolutivo como fora do controle dos
indivíduos. Para ele, mudanças nas relações de classe, mudanças na tecnologia
de produção e lutas de classe eram resultado de uma dinâmica fora de controle
dos participantes.
Outra tendência do fim do século XIX que visava compreender a variabilidade
humana utilizou um método simples de análise: o agrupamento de artefatos e
costumes por localidade geográfica. Geógrafos e mais tarde etnólogos usaram
tal metodologia para explicar a presença ou a ausência de artefatos e costumes.
O mais influente estudioso da Escola de Antropogeografia foi Friedrich
Ratzel. Suas ideias foram influentes no desenvolvimento da Escola
Difusionista Alemã e nas várias formas de determinismo ecológico do século XX.
Ratzel concebia o ambiente, em vez da invenção particular ou do
esforço do indivíduo, como a causa principal da diversidade e da distribuição
das culturas. Para ele a sociedade respondia à natureza do mesmo modo que
um animal a seu meio. Sua tese enfatizava o papel das migrações dos povos na
difusão cultural e reintroduziu o conceito da posição “geoclimática” no
surgimento de sistemas políticos. De acordo com essa perspectiva, montanhas
promoviam isolamento e estabilidade cultural, enquanto que áreas niveladas
favoreciam migrações e instabilidade cultural.
Verifica-se que o determinismo cultural coexistiu com um
renascente determinismo ecológico no fim do século XIX e começo do século XX. A
maioria dos cientistas nesta época aderiu a uma ou outra das formas de
determinismo anteriormente descritas, especialmente em suas versões racistas.
Em tal cenário surgiu Frans Boas, participando
primeiramente da linha antropogeográfica, para então rejeitá-la posteriormente pela
falta de evidência científica apresentada. Boas e seus seguidores introduziram
novos e rígidos padrões de pesquisa etnográfica mantidos até os dias
atuais. Em sua primeira obra, The Central Eskimo (publicada
originalmente em 1888), Boas (1964) apresentou um enfoque das inter-relações
entre o ambiente físico e fatores culturais que lembra a estratégia de Ratzel.
Já no final dessa obra, porém, Boas passou a duvidar da sua análise
antropogeográfica e do papel do ambiente sobre a cultura esquimó. A partir de
então, não deu mais peso ao papel do ambiente, enfatizando em seu lugar o papel
da história no desenvolvimento cultural. Para Boas, o ambiente não é um
fator determinante, mas um fator que o homem utiliza de acordo com sua
herança cultural. A cultura seleciona o que será utilizado do ambiente. Para
Boas, o comportamento humano só é compreensível no contexto cultural, um
enfoque que substitui o determinismo ecológico pelo determinismo cultural.
Goldenweisser (1937), um seguidor de Boas, interpretava que
o homem criava seu ambiente e não era determinado por ele – um argumento que
será mais tarde utilizado por Ferdon (1959) na sua resposta crítica a Meggers
sobre as limitações ambientais ao desenvolvimento cultural (1954). Boas e
seus estudantes enfatizaram que fatores históricos particulares eram tão
significativos na explicação de mudanças sociais como o eram os fatores
geográficos e ambientais. Lowie, por exemplo, na sua obra Cultura e
Etnologia (1917) tentou demonstrar que o determinismo geográfico da época
estava errado, mostrando que nas mesmas condições geográficas se desenvolvem
culturas muito diferentes. Lowie demonstrou que a presença de recursos naturais
não predispõe uma população a utilizá-los e que fatores históricos, geralmente
imprevisíveis, são os que explicam o uso particular dos recursos pelas
populações.
2.
CONHECIMENTO TRADICIONAL E O SURGIMENTO DA ETNOCIÊNCIA
Nas suas origens, a Etnociência e as etno-x (onde x é uma
disciplina da academia) enfatizaram em suas pesquisas os aspectos linguísticos
e taxonômicos, relegando a um segundo plano a diversidade e a dinâmica das
relações entre “ser humano de uma dada cultura” e “natureza”. O termo “ethnobotany”
foi um dos primeiros que surgiram na literatura cientifica, associando o
prefixo “etno” a uma das subáreas da biologia, tendo sido cunhado por
Harshberger (1896) para trabalhos que tinham como objetivo o estudo do uso de
plantas por populações aborígenes. A partir da segunda metade do século XX,
muitas pesquisas passaram a utilizar explicitamente termos precedidos pelo
prefixo “etno”: Etnobotânica, Etnoecologia, Etnoictiologia, entre outros. O termo
Etnociência aparece pela primeira vez no livro Outline of cultural materials
de autoria do pesquisador Murdock e colaboradores, editado em 1950.
Em 1954, Kenneth Pike cunhou os termos “êmico” e “ético” para
explicar as aproximações que existiam entre idioma e cultura, com a intenção de
estabelecer um parâmetro mais resumido às explicações sobre o entendimento que
o outro (entrevistado, informante ou mesmo observado) possui a respeito do
mundo exterior a partir de sua formulação própria, independentemente dos dados
científicos e da provação científica. Para tal explicação Kenneth Pike usou o
termo “êmico”, referindo-se ao que o pesquisador obtinha do entendimento do seu
pesquisado.
Quanto à abordagem “ética”, ela se compõe de categorias e valores
“do observador”, pré-estabelecidos pela ciência, utilizados na descrição e
análise por ele realizadas, os quais não correspondem, necessariamente, àqueles
que vigoram na sociedade ou cultura em estudo. Enquanto a abordagem ética é conceitualmente
lapidada antes do conhecimento, podendo ser considerada a mais convencional,
que o pesquisador conhece previamente, independentemente do universo da etnia
que será estudada, a abordagem “êmica” baseia-se no entendimento dos valores
daquela cultura em especial no “desarmamento” do pesquisador, permitindo-se à
abertura para novos conceitos, os quais, para a sua existência, não dependem
dos conceitos científicos.
D’Olne Campos (2002) faz um interessante comentário quanto o uso
do “ético” e “êmico”, termos inspirados em fonética e fonêmica. Nos primórdios
da Sociolinguística, alguns pesquisadores acreditavam que, apenas a partir de
transcrições fonéticas, poder-se-ia estudar uma língua estranha. Como em geral,
isso se referia a sociedades ágrafas, nelas, por mais forte razão, muito se
perderia da entonação (fonêmica) no contexto da fala. Ético e êmico são usados
em alguns casos como o que anglo-saxônicos chamam, por um lado, de situação de observador
“outsider” (de fora), a partir e com as “ferramentas” da sua
ciência, vendo o outro como um “insider” (de dentro), emicamente.
Pesquisas com populações tradicionais revelaram modelos cognitivos
complexos, tais como sistemas de classificações de animais e plantas,
estratégias de coleta/captura de espécimes, medicina e farmacologia, astronomia,
além de uso e manejo de recursos. Esses trabalhos ajudaram a revelar a existência
de conhecimentos sofisticados, sob domínio intelectual de populações
tradicionais. É permissível assumir, portanto, que foi durante o século XX,
marcado pela emergência de novos paradigmas (principalmente o da
interdisciplinaridade) e do abandono de velhos preconceitos (principalmente o
do etnocentrismo), que a Etnociência se consolidou. Segundo Marques (2002), o
que hoje chamamos de Etnociência já emergiu no panorama científico não como um
conjunto de disciplinas, mas sim como um campo interdisciplinar, de cruzamentos
de saberes, que geraram novos campos. Estes saberes foram oriundos do diálogo
entre as ciências naturais e as ciências humanas e sociais.
A Etnociência trata do estudo das percepções culturais do mundo e
de como os indivíduos organizam essas percepções por meio de linguagem. Esta
ciência, que parte da linguística para estudar o conhecimento das populações
humanas sobre os processos naturais, tentando descobrir a lógica subjacente ao
conhecimento humano do mundo natural, as taxonomias e classificações
totalizadoras, está entre os enfoques que têm contribuído para os estudos das
relações entre o homem e o meio ambiente. Os resultados desses estudos, que envolvem
o conhecimento tradicional, podem facilitar a concepção de novos modelos de
sustentabilidade do uso e manejo dos recursos naturais.
Segundo Berlin (1992), há três áreas básicas de estudo na
etnociência: a da classificação, que se preocupa em estudar os princípios de
organização de organismos em classes; a da nomenclatura, em que são estudados
os princípios linguísticos para nomear as classes folk; e a da identificação,
que estuda a relação entre os caracteres dos organismos e a sua classificação.
A grande atração que a Etnociência exerce vem de sua promessa de
encontrar as representações paradigmáticas precisas e altamente elucidativas
dos fenômenos culturais que estariam associados às descrições linguísticas da
fonologia e da gramática.
Costa Neto et al. (2002) discorrem sobre as dificuldades encontradas
para que se realize um estudo nas etnociências.
Afirmam que há pelo menos três dificuldades quando se pretende
realizar um estudo “etno” e que elas são intrínsecas e extrínsecas ao
pesquisador. A primeira se apresenta como um preconceito da ciência ocidental
que, de um modo geral, cria diversas barreiras para aceitar as etnociências.
Tradicionalmente, os cientistas foram treinados para se considerarem os únicos capazes
de descrever o universo e de dar a ele um sentido lógico.
Essa é a perspectiva que aponta para que a ciência ocidental julgue
qualquer hipótese ou interpretação elaboradas fora de suas próprias regras de
preceitos, as quais fujam de sua estrita objetividade, como muito duvidosas, e
para que estas sejam quase que totalmente banidas dos meios acadêmicos.
A segunda dificuldade, notadamente importante, é a questão que
trata da excessiva especialização dos biólogos e cientistas sociais.
Normalmente os cientistas sociais não recebem o devido treinamento que os
capacite para trabalhar com informações das ciências biológicas. O inverso
também é constatado, sendo que muitos biólogos consideram os dados das ciências
sociais como de pouca ou nenhuma importância para os seus estudos e raramente
levam em consideração os fatores culturais, entre os quais os costumes, a
cosmogonia e a cosmologia de uma dada comunidade, não se preocupando com dados
históricos – ou mesmo atuais –, não estritamente relacionados à biologia, dos
sistemas ecológicos.
A terceira dificuldade diz respeito ao etnocentrismo, que, como se
sabe, conceitualmente é uma visão de mundo em que um grupo se considera o
centro de todos os outros e em que a tendência é considerar as categorias,
normas e valores da própria sociedade, neste caso da ciência ocidental, os
únicos parâmetros verdadeiros e testáveis, enquanto os outros não são
verdadeiros e, tradicionalmente, são considerados errados, falsos ou de menor
valor.
Essa dicotomia dos saberes leva a caminhos conflituosos.
Muitas vezes as comunidades dotadas de um saber-fazer que as
acompanha por várias gerações dificilmente são levadas em conta quando se
planejam formas de uso sustentáveis de recursos naturais. Configura-se, nesse
caso, o confronto de dois saberes: o tradicional e o científico-moderno. A esse
respeito, Diegues (2001) afirma que, de um lado, está o saber acumulado sobre
os ciclos naturais, a reprodução e migração da fauna, a influência da lua nas
atividades de corte de madeira e de pesca ou sobre sistemas de manejo e, de
outro lado, está o conhecimento científico, que não apenas desconhece, como
também, na maioria das vezes, despreza o conhecimento tradicional acumulado.
3.
CONHECIMENTO TRADICIONAL E CONHECIMENTO CIENTÍFICO: O DIÁLOGO DOS SABERES
Muitos pesquisadores em manejo de recursos naturais têm discutido
as razões para tantos exemplos de insucesso no manejo de recursos naturais ao
redor do mundo. A crença de que os especialistas têm toda a informação
necessária para saber como utilizar de forma sustentável os recursos está relacionada
ao etnocentrismo intrínseco a algumas ciências, das quais seus respectivos
especialistas acreditam ter as habilidades necessárias a uma autosuficiência
para manejar os recursos naturais, mantendo-se céticos com relação a algum
outro tipo de conhecimento, principalmente aquele que nem sempre permite verificação
cientifica, como o conhecimento tradicional possuído por comunidades.
Na perspectiva de resolver esta carência de um conhecimento mais
dinâmico e integrador sobre os ecossistemas, muitos especialistas em manejo têm
procurado esta possibilidade no conhecimento tradicional, ou conhecimento
ecológico tradicional (CET) como alguns preferem chamar. Berkes (1999) define
esse conhecimento como um [...] corpo acumulativo de conhecimento, práticas e
crenças das comunidades tradicionais sobre a relação entre os seres vivos
(inclusive o homem) e o seu ambiente, que se desenvolve ao longo do tempo
através de um processo adaptativo e é repassado através de gerações por
transmissão cultural.
Através dessa perspectiva é possível reconhecer diferentes
relações e as suas implicações ecológicas e culturais, como sugere a Ecologia
Humana. Posey (1987) nos mostra que essa relação compreende ao mesmo tempo uma
interação e uma modificação constantes. Isso significa que, do ponto de vista ecológico
humano, a definição de biodiversidade não se limita a um aspecto unicamente
biológico. Mais do que uma diversidade genética de indivíduos e de espécies, a
biodiversidade representa o resultado de práticas milenares dessas comunidades.
A prática dessas comunidades pode estar relacionada à ideologia
conservacionista, mas não necessariamente. Essa ideologia pode levar a uma
exploração limitada dos recursos, no entanto, podem-se ter práticas culturais
que naturalmente sejam conservacionistas sem que necessitem de qualquer tipo de
ideologia ou de rotulação. Isso significa dizer que existem populações que
simplesmente seguem regras culturais locais para o uso e apropriação dos
recursos naturais, e estas, por sua vez, é que se definem como sustentáveis.
Trata-se de uma relação que ultrapassa a consciência conservacionista e se
expressa como uma forma de vida.
As comunidades tradicionais aprendem de forma cumulativa, no
decorrer dos tempos, em um processo contínuo de aprimoramento e revalidação de
suas práticas. Faz parte de sua cultura a “atividade inventiva”. Não existem
regras para o sucesso de uma prática sem que esta se submeta a tentativa de
acerto e de erro. É dessa forma que essas comunidades acompanham os padrões
oferecidos pela natureza e é assim que respondem progressivamente aos
obstáculos encontrados.
A cada geração o conhecimento se renova e novos valores são incorporados;
apesar de se constatar mudanças e conflitos, muitas práticas permanecem, assim
como os traços tradicionais característicos de cada cultura.
Para se manejar um recurso ou para se ordenar um espaço é preciso
conhecer profundamente cada elemento físico, biológico, ecológico, simbólico,
mitológico, etc., que compõe o ambiente. Essa complexidade, no entanto, só é
apreendida por aqueles que de alguma forma reconhecem esses elementos como
parte de sua dinâmica de vida, incorporando-os de forma natural – o que
caracteriza a identidade do grupo com o meio.
Nas últimas décadas têm-se retratado evidências da habilidade que
os grupos desenvolvem para utilizar e alocar os direitos de uso entre seus
membros, evidências essas relevantes sobre o manejo de recursos comum. Vale
destacar, para a região amazônica, os acordos de pesca que vêm sendo firmados
nos últimos anos e que estão se proliferando, na medida em que as comunidades
ribeirinhas buscam proteger os lagos da pressão da pesca comercial.
Os acordos de pesca representam formas participativas de gestão,
de regulamentação dos recursos pesqueiros das regiões de várzea da Amazônia
Central desde os anos 1960 e 1970. Este novo paradigma da pesca na Amazônia
parte do princípio de que a sustentabilidade é possível manejando o recurso
como um bem comum e não como recurso de uso exclusivo ou restrito. Fatos como
esses contradizem a teoria de Hardin (1968) em a Tragédia dos comuns,
obra na qual o autor nega a possibilidade de arranjos institucionais ou de
qualquer outra forma de interação e de ligação entre os indivíduos envolvidos.
No entanto, destituídas de qualquer burocracia oficial, as instituições
informais mantêm sistemas tradicionais de acesso ao recurso, nos quais residem
as grandes forças de manejo e do direito consuetudinário (direito de uso
fundamentado em costumes locais).
Muitos estudos têm sido desenvolvidos nesta área temática,
enfocando as relações entre as comunidades tradicionais e os recursos naturais
do ambiente, e alguns destes têm proposto que a incorporação do conhecimento
dessas comunidades é fundamental no desenvolvimento de planos de manejo
sustentável. No entanto, o respeito às diferentes culturas deve ser levado em
consideração. Viertler (2001) afirma que cada cultura induz os seus portadores
a desenvolver vivências peculiares a partir do entre-jogo de certas modalidades
privilegiadas de percepção do mundo natural. Tais modalidades privilegiadas de
percepção ou primazias de percepção variam de uma para outra cultura.
Uma tribo indígena Kashinawa, por exemplo, não confere primazia
aos aspectos visuais do mundo físico tal como nós o fazemos. No mundo Kashinawa,
o mundo visível constitui um mero reflexo de um mundo mais real e importante, não
visível, que se manifesta por meio de experiências tais como os sonhos, as
visões tidas durante os transes, os cheiros e os sons emanados dos cantos e das
danças religiosas. Neste contexto, Viertler (2001) nos faz o seguinte
questionamento: como dialogar com um Kashinawa sem recair em monólogos ou
imposições? Além desta dificuldade, lembremo-nos que, enquanto o pesquisador
tenta desenvolver o seu trabalho de pesquisa, também o informante Kashinawa não
desistirá de tentar se comunicar. Isto porque o informante tentará tirar alguma
vantagem material ou, quando for mais generoso, educar ou socializar o
pesquisador para que este aprenda a fazer perguntas que tenham um mínimo de
sentido. Esta é uma situação possível de ocorrer em outras comunidades, como os
ribeirinhos amazônicos, por exemplo, já que é constatada uma intrincada teia de
dificuldades e armadilhas que nos impedem a comunicação mais espontânea e
habitual com representantes de sociedades culturalmente diferentes da nossa.
Entre os índios Bororo do Mato Grosso, por exemplo, o “não falar”
associado ao ficar de “rosto sério” e ao “cruzar de braços” significa
reprovação ou crítica muda. Este padrão de comunicação social ou “etiqueta” é
bastante disfuncional no contexto das relações destes índios com os não índios
e outras tribos indígenas brasileiras. Isto porque, ao se apegarem a esta
etiqueta, os Bororo não chegam a contestar abertamente as autoridades, etiqueta
esta interpretada como “passividade” ou “desinteresse” pelos não índios. Já os
índios Xavante, cujo padrão social permite que gritem, “falem duro” e discordem
abertamente, acabam alcançando vantagens econômicas e políticas junto a órgãos
do governo, a missionários e a outras forças políticas de não índios. Portanto,
do ponto de vista da etiqueta ligada à comunidade social e intercultural, os
Xavante possuem maior “afinidade” ou “comunicabilidade” com os não índios do
que os Bororo, estes últimos mais fechados, apesar de terem sido obrigados a
conviver com o dominador branco há mais tempo do que os primeiros.
A fim de alcançar uma real comunicação com os portadores de outras
culturas, é preciso descobrir tais etiquetas de comunicação intercultural. Se o
“falar” é importante à comunicação, o “não falar” pode ter vários significados,
desde a timidez e humildade até a discordância ou a reprovação.
Antes de finalizarmos esta temática queremos ressaltar que a
partir da Etnociência, vista anteriormente, originaram-se vários campos de
domínios específicos, entre estes a Etnobiologia (com suas sub-áreas),
recebendo contribuições basicamente da sociolinguística, da antropologia
estrutural e da antropologia cognitiva. A etnobiologia, na esfera da produção do
conhecimento científico, caracteriza-se como uma ponte entre as ciências
humanas e as ciências biológicas e vice-versa, fornecendo ferramentas
essenciais para a interdisciplinaridade entre ambas e proporcionando ao
pesquisador desenvolver um trabalho mais profundo e abrangente, testando
hipóteses que dificilmente seriam elaboradas sem uma metodologia interdisciplinar.
A conceituação epistemológica, neste caso, resulta da recusa de interpretação
reducionista. Para se estudar um assunto por meio das etnociências, como a
Etnobiologia, é indispensável o reconhecimento de que não há divergências entre
as diversas linhas de pesquisa, mas sim que existe uma complementaridade entre
elas e que a ciência não é “monolítica” e acabada, bem como o conhecimento e o
saber não são estanques, ou exclusivos de um determinado grupo.
Abaixo, trecho de um trabalho sobre a cognição comparada entre o
conhecimento tradicional dos pescadores de pirarucu (Arapaima gigas), no
estado do Amazonas, sobre a reprodução da espécie e a literatura científica disponível,
o qual nos mostra a congruência entre esses tipos de conhecimentos.
“Quem cuida dos filhotes é o macho, que fica boiando manso com
queixo e o rabo vermelho” (citação dos pescadores).
“...Somente no período de reprodução é possível a identificação
do sexo dos pirarucus, uma vez que o macho adquire acentuada coloração escura na
parte superior da cabeça e na região dorsal, que se prolonga até quase a
inserção da nadadeira dorsal, enquanto os flancos, ventre e parte caudal adquirem
coloração vermelha.” (Braga, 2009) (citação da literatura).
CONCLUSÃO
No decorrer do texto verificamos que o conhecimento tradicional,
de senso comum, ou conhecimento popular, como também se ouve falar, durante
muito tempo vem, de alguma forma, sendo utilizado e transmitido por várias
gerações, mesmo sendo visto por muitos como um conhecimento de menor
importância e desprovido de razão. Nas últimas décadas já se observa uma
tendência em curso que é a distinção entre as diversas formas de conhecimento.
Nesta linha, Santos (2006) afirma que a ciência moderna construiu-se contra
esse conhecimento por considerá-lo superficial e ilusório, ou até mesmo falso.
Já a ciência pós-moderna procura dar maior crédito ao senso comum por
reconhecer virtualidades nesta forma de conhecimento que ajudarão a enriquecer
a nossa relação com o mundo.
Do estudo científico sobre o conhecimento tradicional verificamos
a emergência de um novo campo de pesquisa, denominado por alguns autores de
“Etnociência”. No entanto, é preciso, antes de tudo, se reconhecer a existência
nas comunidades tradicionais de outras formas de se perceber, representar e
manejar a biodiversidade, igualmente válidas e além daquelas oferecidas pela
ciência reducionista. E isso já vem ocorrendo, pois se percebe que nunca houve
tantos cientistas interessados no estudo do conhecimento produzido do lado de
fora do mundo acadêmico e usado por comunidades para compreender o mundo.
Concordamos com o Prof. Antonio Carlos Diegues (2009) de que não é
tarefa fácil romper com os padrões clássicos dessa ciência reducionista, pois
nossas instituições de pesquisa e ensino são, em geral, unidisciplinares,
discriminadoras dos saberes tradicionais, marcadas por “correias de
transmissão” que nos ligam aos grandes centros, dentro e fora do país, onde são
gerados modelos científicos reducionistas que, transformados em práticas (ou
ideologias), levam a uma forma de conservação autoritária e pouco eficaz,
subordinada a interesses não locais.
É preciso, portanto romper com essas “correias”, superar esses
modelo e práticas e dar a devida importância a esse tipo de conhecimento, seja
como ferramenta local para compreender o mundo, seja como um atalho para se
produzir conhecimento científico a partir de “dicas” populares. Isto deve ser
feito principalmente nas análises de problemas ambientais, onde a constituição
de equipes interdisciplinares compostas de pesquisadores das áreas das ciências
naturais e humanas já se mostrou não ser suficiente. As comunidades devem
participar do processo, e os resultados dos trabalhos também devem ser submetidos à critica da sociedade, dentro de
processos de consultas democráticas, para que as opiniões dos comunitários estejam
incluídas e façam parte da pesquisa.
............................................
NOTAS
1)
Mestre em Biologia de Água Doce e Pesca Interior pelo INPA (Instituto Nacional
de Pesquisas da Amazônia) e professor do ICTA (Instituto de Ciências e
Tecnologia das Águas) da UFOPA (Universidade Federal do Oeste do Pará).
2) O
autor usa o termo etnocentrismo no sentido em que habitualmente é
empregado e entendido entre alguns cientistas, mas ressalta: é preciso admitir
que o etnocentrismo é uma atitude universal e inerente aos indivíduos e difere
do racismo, que é uma atitude própria do Ocidente moderno e que melhor
representa a ideia esboçada acima.
3)
Cultura: é um dos principais conceitos necessários para o entendimento do
comportamento de populações humanas. De forma prática, cultura é o conhecimento
adquirido; é passada através de gerações por processos de socialização, a qual
inclui um conjunto de regras para a convivência, relacionados a comportamento
em grupo, valores, linguagem e tecnologia (Kormondy & Brow, 2002, p. 41).
4) As
falácias são discutidas no texto 2 deste livro (Introdução à Filosofia),
quando se discute “lógica”.
5) “Em
ecologia humana focalizamos as interações entre dois sistemas. Um é o Homem, sistema
bem mais complexo que aqueles encontrados entre os mamíferos superiores, onde a
inteligência, a criatividade, o livre-arbítrio e o domínio de artes e ciências
geram desempenhos que excedem o condicionado pelo binômio genes-ambiente. O
outro é o meio ambiente do Homem, também mais complexo que qualquer outro, uma
vez que é constituído não só do universo abiótico e do universo biótico, mas
também do ambiente construído pelo Homem, suas religiões, suas doutrinas e
teorias, sua economia, suas máquinas, seus governos, sua sociedade, seus mitos,
etc.”
............................................
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