sábado, 14 de abril de 2018


ESCRAVIDÃO, SALARIATO, LIBERALISMO
João Tristan Vargas[1]

O lugar da ideia de liberdade de trabalho no debate sobre escravidão e liberalismo
Em princípio, liberalismo não é incompatível com escravidão, por mais bizarro que isso possa soar. Estamos acostumados a pensar em liberalismo como oposto a escravidão, mas isso ocorre, a meu ver, porque de modo geral se acredita que o pensamento liberal vê como um princípio fundamental a liberdade de trabalho – e isso, por surpreendente que possa parecer, deve ser questionado. Tal princípio não é um valor absoluto no liberalismo, seja este o “velho”, seja o “novo” (neo).
O que se vê como absoluto nos textos fundadores da ideia liberal (isto é, o que se vê como um princípio válido em si mesmo, um princípio que não precisa ser demonstrado, um princípio que, para ser validado, não precisa ser amparado por referências externas) é a liberdade de comércio, que está fundamentada no direito de propriedade. É assim nas obras de Locke, é assim no projeto de lei francês sobre as associações operárias, de 1791, de autoria de Chapelier[2].
Quem já leu com atenção o Segundo tratado sobre o governo (Cap. IV, “Da escravidão”), integrante de sua obra Dois tratados sobre o governo, publicada em 1690, sabe que Locke trata da escravidão como de um elemento do cotidiano sobre o qual não se opõe em princípio. O que chama a atenção nesse texto, que é um dos fundadores do pensamento liberal, é que a escravidão não era vista como um problema para o liberalismo. Locke chega aí a fazer um exercício de justificação da escravidão. Ele diz (item 23 do Segundo tratado):
“De fato, tendo por culpa própria perdido o direito à vida por algum ato que mereça a morte, aquele a quem a entregou pode, quando o tem entre as mãos, demorar em tomá-la [a vida do outro], empregando-o a seu próprio serviço; e com isso não lhe causa dano. Pois, sempre que achar [que] ultrapasse o sofrimento da escravidão ao valor da própria vida, está nas suas mãos [do escravo], pela resistência à vontade do senhor, atrair sobre si a morte que deseja” (LOCKE, 1978, p. 43).[3]
No projeto de lei de Chapelier sobre as associações operárias francesas, de 1791, a extinção delas não se defende com base num suposto princípio de liberdade de trabalho, e sim pela consideração de que a existência dessas associações (assim como as dos patrões) fere o princípio de igualdade entre os cidadãos, ao fazer surgir forças coletivas, que destruiriam a igualdade dos indivíduos, favorecendo a imposição da vontade de grupos. Nem se defende a exclusão do Estado das relações entre trabalhadores e patrões – pelo contrário, prevê-se, em tese, a intervenção do Estado para amparar aqueles que não encontram meios para manter-se dentro dos padrões materiais compatíveis com a condição de cidadão – para não cair em condição similar à de escravo. Eis como o deputado francês trata da possibilidade de tal queda ocorrer:
“Sem examinar qual deve ser razoavelmente o salário da jornada de trabalho e admitindo apenas que deveria ser um pouco mais considerável do que é no momento [murmúrios], e o que digo neste ponto é extremamente verdadeiro, pois em uma nação livre os salários devem ser suficientemente consideráveis para que aquele que os recebe esteja fora desta dependência absoluta que produz a privação dos artigos de primeira necessidade e que é quase aquela da escravidão.” (IMBERT; SAUTEL; BOULET-SAUTEL, 1956, p. 279-281)[4]
Essa ação do Estado anularia uma das justificativas naquele momento para a existência de associações operárias: auxiliar os que se encontram sem meios de vida, por desemprego ou qualquer outra razão. O que se constata é que, no texto de Chapelier, o inimigo visado, ao menos formalmente (mas a “forma” não é um elemento desprezível nem artificial), são as corporações, um elemento do chamado Antigo Regime, que se deseja extinguir.[5]

Capitalismo com escravos
O fim da escravidão não é uma exigência para que o capitalismo seja estabelecido. O que se observa é justamente o contrário: a escravidão foi um recurso utilizado para o estabelecimento do capitalismo. A esse respeito, parece oportuno lembrar as ponderações de Maria Sylvia de Carvalho Franco, uma estudiosa da área de Filosofia, que expôs uma visão absolutamente original sobre a escravidão, num artigo de 1978, mais tarde republicado (FRANCO, 1984), segundo o qual, quando foi montada a empresa agroexportadora colonial (como a produção de açúcar no Brasil), não havia como empregar, nos numerosos postos básicos de trabalho, outra mão de obra que não a escravizada (embora houvesse, sem dúvida, trabalhadores livres nos engenhos, em diversas funções) porque, na época, simplesmente não havia um proletariado que pudesse ser mobilizado para isso. Não havia trabalhadores livres e despossuídos em número suficiente na Europa (ou em qualquer outro lugar), que pudessem ser levados a abandonar seus lares e fazer a longa, penosa e perigosa viagem para a América, para trabalhar nas plantações de cana ou naquelas primeiras fábricas que foram os engenhos. (FRANCO, 1978)
As pessoas só fariam isso se fossem obrigadas, se não tivessem alternativa. Elas só o fariam se fossem constrangidas justamente pela sua “liberdade”: a liberdade que veio a caracterizar o proletariado moderno, isto é, a falta de ligação com a rede de relações baseada em obrigações recíprocas e desiguais que caracterizava a sociedade senhorial. Essa falta de ligação, que representava um desenraizamento, se dava pela falta de direitos à terra. Estamos acostumados a pensar os camponeses europeus da época senhorial como pessoas cobertas de obrigações, mas esquecemos que essas obrigações só existiam porque, de um modo ou de outro, elas tinham uma forte ligação com a terra. Essa ligação era dada pelas normas que regulavam as relações entre senhores e camponeses. E tais normas, por muito assimétricas que fossem para um e outro lado da relação, não deixavam de apontar para uma forma de direito: o direito a permanecer na terra, a usá-la e não ser expulso dela arbitrariamente. Foi justamente esse direito a permanecer na terra que, na Inglaterra dos séculos XVI, XVII e XVIII, no movimento dos chamados cercamentos, foi sendo negado e retirado, por diversos meios, a maioria deles “legais” (isto é, com decisões tomadas pelo parlamento).[6] E foi esse movimento que tornou possível a formação do proletariado num local onde, não por acaso, como se vê, teve início a Revolução Industrial.
Apenas por certo bizantinismo classificatório deixaríamos de chamar de capitalista a empresa açucareira colonial no Brasil. E essa empresa capitalista era movida por mão de obra escrava. Sim, capitalismo com escravos. A partir de determinado momento da história do capitalismo, a escravidão passa a apresentar inconvenientes, como o fato de, em tese, ser um obstáculo para a expansão do mercado internacional. Cabe notar, contudo, que esse inconveniente foi apontado após a consolidação do trabalho assalariado como tipo de mão de obra utilizado nas empresas capitalistas. Isto é, a identificação desse inconveniente é fruto do olhar de alguém que vive a face moderna do capitalismo, alguém do século XIX, XX ou XXI. E muita gente que vivia no século XIX não via incompatibilidade alguma entre atividades típicas do capitalismo, de um lado, e escravidão, de outro. Dificilmente os industriais que integravam o ramo-chave da produção britânica – fiação e tecelagem – e importavam algodão produzido por escravos na América teriam interesse no fim da escravidão[7]. Não custa lembrar, também, que, hoje em dia, no Brasil, a escravidão (ou “condição similar à de escravidão”) ressurge sempre que há oportunidade e alguém disposto a aproveitá-la, por exemplo em locais de difícil acesso, onde o trabalhador esteja totalmente à mercê do patrão.
É claro que a universalização do trabalho assalariado era vista como um passo à frente por muitos – mas esses muitos eram, na imensa maioria, pessoas de esquerda, pessoas que, como Marx, viam a máxima expansão e aquilo que foi chamado de “amadurecimento” do capitalismo como condição para a construção do socialismo. Em vão procuraríamos um empresário industrial de qualquer ramo, ou um negociante, reclamando da existência da escravidão na época. Certamente Robert Owen, o industrial-socialista, era contra a escravidão; mas ele via a escravidão em suas próprias empresas, ele constatava que os seus operários permaneciam escravos. E, obviamente, esse é um caso totalmente excepcional. Até onde sei, empresário nenhum ficava sonhando com o dia em que ex-escravos iriam comprar as suas mercadorias. O fato é que, em todas as situações históricas em que a escravidão moderna foi modificada por leis ou “abolida”, isso ocorreu devido à pressão de movimentos sociais, movimentos dos próprios escravos e/ou de outros grupos não dominantes na sociedade. A presença de empresários (ou que outro nome se queira dar para quem detém a propriedade de meios de produção e os transforma em capital) nesses movimentos foi sempre excepcional e frequentemente de caráter oportunista, como foi o caso, no Brasil, de alguns cafeicultores de S. Paulo, que só aderiram à ideia de abolição nos últimos momentos, quando já se percebia que não haveria outra opção, e ainda assim cheios de reservas para garantir o direito à indenização dos proprietários de escravos.

Trabalho, pessoa e cidadania
Em suma, o convívio com a escravidão, o uso da escravidão por parte de empreendedores não é algo excepcional, uma excrescência, um apêndice teratológico na sua atitude. Trata-se de uma opção que, de um lado, está na origem do capitalismo como uma condição necessária para a sua constituição e, de outro, tem, como fundamento, pressupostos comuns àqueles que fundamentam o próprio trabalho assalariado, como se argumentará a seguir.
Trabalhadores escravizados foram usados durante séculos em atividades lucrativas, que integravam mercados nacionais e o mercado internacional, atividades que conviveram e se articularam, a partir de certo momento, com outras, nas quais se usava o trabalho assalariado. O uso desses trabalhadores foi determinado pela configuração das sociedades humanas no momento em que se expandia o mercado internacional de mercadorias na época das Grandes Navegações, quando grandes oportunidades de lucro se apresentavam para quem conseguisse entrar diretamente na produção das mercadorias mais valorizadas. Esse uso de trabalhadores – e a palavra “uso” aqui é proposital – nesses longos séculos merece uma ponderação, cujas implicações se estendem para o período em que o trabalho assalariado se tornou a opção hegemônica. Essa ponderação se coloca na esfera do direito.
Apenas em anos recentes a expressão “recursos humanos”, quando usada para designar a seção ou departamento de uma empresa encarregada dos assuntos relacionados à gestão da mão de obra, começou a ser substituída por “gestão de pessoas”, em alguns locais de trabalho (o que exatamente concorreu para que essa substituição ocorresse é de interesse para a história do trabalho e mereceria maiores pesquisas). A expressão “recursos humanos” é análoga à que é usada para outros tipos de recursos, como “recursos financeiros”, “recursos tecnológicos”, “recursos naturais” etc. Todos têm como pressuposto a ideia de que é legítimo usar algo – força, habilidades ou conhecimentos humanos, dinheiro, artigos tecnológicos, elementos extraídos dos ambientes naturais e assim vai. Dificilmente algum empresário consideraria seriamente a hipótese de não existirem pessoas constrangidas a trabalhar para outrem – todos simplesmente trabalham com esse dado, visto como algo próprio da condição humana. Ocorre que ser constrangido a trabalhar e a ideia de que isso é legítimo, e mais, de que isso é natural, é a essência das relações de trabalho características do mundo moderno, tanto na escravidão propriamente dita como no trabalho assalariado. Foi, aliás, como dissemos antes, a possibilidade de constranger pessoas a trabalhar que ensejou a formação do capitalismo industrial na Europa. Esse traço das relações de trabalho é comum a ambas as situações: todo empreendedor trabalha com a expectativa de usar alguma mão de obra, um “recurso” que com frequência é disputado no mercado. Busca-se usar o recurso com o menor custo possível: apenas excepcionalmente as empresas apresentam aos trabalhadores condições de trabalho, remuneração etc. a que não sejam obrigadas por lei, pela fiscalização do Estado ou pela pressão direta dos trabalhadores.
A complicação é que esse “recurso” não se dissocia da figura humana, não se separa dos seres humanos, das pessoas cujo trabalho se quer usar. E o caso é que, de modo geral, essas pessoas, ou esses seres humanos que se pretendem pessoas (cabe lembrar que o termo “pessoa” remete intuitivamente à ideia de direitos[8]) teimam em não entregar seu trabalho sem alguma contrapartida. No período da escravidão no Brasil, o direito ao pecúlio por parte do escravo, por exemplo, previsto na Lei do Ventre Livre (1871), representou a cristalização em lei de uma demanda e uma prática dos próprios escravizados, como demonstrou o historiador Sidney Chalhoub (1990). Isto é, mesmo no contexto da escravidão, os indivíduos constrangidos a trabalhar como escravos procuravam e encontravam maneiras de pressionar ou negociar certos itens de sua condição. Pelo fato de, por um lado, ser considerado natural, legítimo, o uso do trabalho alheio e, por outro lado, a possibilidade de usar esse trabalho decorrer de um constrangimento – direto, na escravidão, ou econômico, no trabalho assalariado – não surpreende que industriais e outros empreendedores tivessem – e, em muitos casos, ainda tenham – uma visão escravista do uso da mão de obra. É que, num aspecto essencial, esse uso pode ser visto, mesmo, como de caráter escravista. Cabe lembrar que escravos e “livres” trabalharam lado a lado em estabelecimentos fabris no país, em variadas proporções, até as últimas décadas do século XIX. Durante a Primeira República (1889-1930), na imprensa operária, eram frequentes as denúncias de patrões “escravocratas”, que tratavam seus operários como tratariam a escravos.
Mas a ideia de que o trabalho, em vez de um recurso a ser usado, é algo fornecido por uma pessoa, isto é, por alguém que tem ou deve ter direitos, se efetivamente reconhecida, de fato impõe uma modificação importante nas relações de trabalho, que, em si mesmas, tendem a adquirir um caráter escravista. Em outras palavras, a constituição, o fortalecimento e o enriquecimento de uma esfera de cidadania que abranja as relações de trabalho é a condição para que o aspecto escravista dessas relações seja minimizado ou mesmo eliminado quanto a algumas de suas implicações práticas na vida do trabalhador.[9]
A história das relações de trabalho num longo período, o iniciado com a Revolução Industrial (o qual ainda vivemos) pode mesmo ser vista como a história da expansão da esfera da cidadania. As lutas por direitos de trabalho permearam todo esse período. Com isso não queremos dizer que essa expansão fosse vista unanimemente pelos trabalhadores como um objetivo a ser atingido. Os grupos identificados com o anarquismo, nas suas várias modalidades, não se identificavam com tal objetivo. E a presença desses grupos foi muito forte no meio operário desde pelo menos a última década do século XIX no Brasil. O aspecto escravista das relações de trabalho era encarado como tal, sem admitirem-se mediações que pudessem modificar-lhe o sentido – e a alternativa só poderia ser a abolição dessa escravatura, a abolição do salariato. Em outras palavras, os patrões eram vistos pelos anarquistas como escravocratas porque boa parte deles se comportavam de fato como proprietários de escravos, mas também porque não havia como, coerentemente, dentro de sua concepção de sociedade, vê-los de outra maneira, pois o direito, entendido como fundamento de cidadania, a rigor não tem lugar nessa concepção.

A autonomia rio-grandense e a oposição gaúcha à criação de leis de trabalho
Focando agora mais diretamente a atenção nas relações de trabalho no Brasil, cabem algumas considerações sobre o período da Primeira República, tido por muitos como marcado pelo padrão laissez-faire nessas relações, em nível institucional.
A proclamação da República, apesar de ter sido o resultado de um golpe, sem participação popular, despertou grandes esperanças de uma ampliação na esfera da cidadania. Os primeiros tempos foram marcados por conflitos armados e agitação popular. Embora uma constituição estivesse em vigor desde 1891, os primeiros anos após a proclamação foram um período de indefinição, de grande instabilidade institucional. Ao longo de toda a Primeira República, os estados mantiveram, ao menos formalmente, grande autonomia política. É preciso destacar que em um deles, o Rio Grande do Sul, era dominante um projeto político muito distinto dos que dominavam em outros estados. Esse projeto era identificado com um conjunto de concepções que foi chamado de positivismo.
Borges de Medeiros, chefe do Partido Republicano Rio-grandense e governador do estado durante a maior parte da Primeira República, era contra a regulamentação dessas relações por meio de leis. Mas não fundamentalmente por apego a algum suposto princípio liberal de liberdade de trabalho e sim porque isso era coerente com seu projeto positivista de incorporação do operário à sociedade. Nesse projeto, um papel central é desempenhado pelos próceres positivistas, que se apresentam como os mediadores nas relações entre patrões e trabalhadores. A mediação não deve ser do Estado e sim do núcleo da chamada igreja positivista. Criar leis de trabalho seria enfraquecer a importância desse núcleo na sociedade. Mas os políticos gaúchos estavam preocupados fundamentalmente com a preservação da autonomia política do Rio Grande: era preciso evitar a implementação de medidas que, por terem aplicação em todo o território nacional, representassem uma redução, na prática, da autonomia do estado sulino. E para isso eles lançavam mão do argumento que estivesse disponível. O argumento mais forte era a interpretação que passaram a dar ao parágrafo 24 do art. 72 da Constituição Federal.
Ocorre que o Rio Grande do Sul, apesar de sua presença na política nacional, não era a unidade política mais influente nesse cenário. Quanto ao poder normativo da visão positivista, tratava-se de um fenômeno regional, que se limitava basicamente a esse estado, porque ali estava articulada com o projeto político de um grupo que se encontrava no poder. Acreditar que a criação de uma abrangente legislação do trabalho na Primeira República foi impedida pela força de uma oposição dos rio-grandenses é deixar-se guiar por uma ilusão de ótica, que resulta da supervalorização dessa força.

O conceito de liberdade de trabalho e o debate constitucional sobre liberdade profissional
Voltemos nossa atenção agora para o item legal que é a base de todas as interpretações pelas quais a Primeira República foi um período avesso à legislação do trabalho: o parágrafo 24 do artigo 72 da Constituição de 1891, que supostamente é fundamentado no princípio da liberdade de trabalho. Dissemos há pouco que os gaúchos passaram a dar uma certa interpretação a esse dispositivo. É que, para atribuir o propósito de bloquear a legislação de trabalho, é preciso mesmo efetuar uma interpretação do parágrafo 24, atribuir-lhe um significado que não tinha originalmente, quando foi elaborado pelo Congresso Constituinte, nos anos de 1890 e 1891. Para se ter uma idéia do que estava em jogo no Congresso Constituinte, quando se discutia a elaboração desse item, é importante citar as emendas apresentadas a respeito. A redação que serviu de base para o debate parlamentar foi a da comissão do Governo Provisório: “Todos podem escolher e seguir a profissão que mais lhes convenha.” (CAVALCANTI, p. 329, grifos meus.)
            Depois dos debates, a redação ficou assim:  “É garantido o livre exercício de qualquer profissão moral, intelectual e industrial.” (CAVALCANTI, p. 329) Essa foi a redação que acabou sendo aprovada. É esclarecedor registrar a posição de um deputado gaúcho a respeito: Demétrio Ribeiro. Ele concordava com a emenda, mas propunha acrescentar o seguinte trecho: “Independente de títulos ou diplomas de qualquer natureza, cessando desde já todos os privilégios que a eles se liguem ou deles dimanem.” (Idem, ibidem.) O deputado Barbosa Lima, eleito pelo Rio Grande do Sul, mas também pelo Ceará, propôs uma emenda substitutiva, de mesmo conteúdo que a de Demétrio: “É livre o exercício de todas as profissões, independentemente de qualquer título escolar, acadêmico ou outro qualquer.” (Idem, ibidem.) Como se vê, o que estava sendo discutido era a liberdade de se trabalhar no que se quisesse, não a regulamentação das relações de trabalho. Simplesmente a legislação de trabalho não era um problema colocado naquela época no âmbito da política institucional.
Juristas que viveram no período da Primeira República e se destacaram como comentadores da Constituição tinham o mesmo entendimento do parágrafo 24, art. 72. Esse é o caso de João Barbalho, referência unânime para todos os estudantes de direito da época. Numa obra de 1902, que comenta a Constituição, ele dizia assim:
“§ 24. O livre exercício de qualquer profissão é garantido como manifestação do direito inerente a cada indivíduo de, segundo sua própria determinação, aplicar e desenvolver suas faculdades naturais e adquiridas, na prática de algum mister, ofício, trabalho de qualquer gênero, à sua escolha e independentemente de licença da autoridade, sendo apenas permitida a ação desta quanto ao que acaso prejudique ao bem geral e ao direito de terceiros. E assim consagrado o livre acesso e prática das profissões, proibida está a regulamentação delas, bem como, matrículas, registros, inspeção por agentes do governo ou corporações prepostas ao exercício e direção das mesmas e em geral quaisquer medidas de caráter preventivo, salvo as limitadas restrições acima indicadas e que se justificam enquanto indispensáveis para garantir a segurança geral e individual; fora daí o estado fere a justiça e coarcta o desenvolvimento social.”  (CAVALCANTI, 1902, p. 329-330)
A preocupação de Barbalho ao interpretar o § 24 do art. 72 passava a léguas do trabalho assalariado. Sua menção a “mister, ofício, trabalho de qualquer natureza”, certamente abrange em princípio o trabalho assalariado. Porém, se levarmos na devida consideração as questões da época em que foram escritos seus comentários e a própria Constituição, podemos inferir que os autores da Carta e também seu comentarista, quando falam em profissões, têm em vista fundamentalmente as chamadas “profissões liberais”, como advogado e médico. Ocorre que uma Constituição tem que fixar regras de aplicação geral, caso contrário estaria criando privilégios. Assim, ao fazer seu comentário, Barbalho não pôde deixar de considerar incluídas naquela referência todas as outras formas de trabalho, mesmo aquelas, caracterizadas pelo trabalho manual, que, na época, nem eram consideradas profissão. Naquele tempo, quando, no âmbito da elite econômica ou cultural, se falava em profissão, nem de longe se incluía nessa categoria o trabalho manual. Profissão abrangia a atividade dos empresários, o trabalho dos profissionais liberais e o dos chamados empregados (Vargas, 2001). Na fala dos empresários e seus representantes, os empregados eram os trabalhadores de escritórios, vendedores etc., enquanto que os operários eram os trabalhadores manuais.
Nos textos patronais, a palavra empregado só passou a ser usada para designar operários a partir da década de 1930, devido às necessidades de referência à legislação de trabalho produzida naquele tempo, a qual adotou essa nova terminologia. Esse fato linguístico, que distinguia operários de empregados, denotava uma diferenciação abissal no modo como os representantes patronais viam a possibilidade de serem concedidos direitos a esses dois grupos de trabalhadores. A ideia de conceder férias, por exemplo, só era admitida, entre os industriais, para os chamados empregados.

Rui Barbosa e o vínculo entre reforma constitucional e legislação de trabalho
Rui Barbosa, o mais eminente nome da área do Direito, da esfera da intelectualidade e da política de sua época, em campanha pela presidência da República (disputada com Epitácio Pessoa), pronunciou, em 20 de março de 1919, no Rio de Janeiro, um discurso que é tido como um marco de mudança nas atitudes da elite política com relação à questão social. No discurso, foi abordada uma série de itens referentes ao tema: moradia, trabalho de menores, de mulheres, jornada, condições de trabalho, acidentes e trabalho agrícola. Nesse texto, Rui vincula a possibilidade de aprovação de leis sociais à reforma da Constituição: esta última, na interpretação apresentada no discurso, asseguraria a mais ampla liberdade contratual. De fato, naquele momento, Rui estava empenhado numa campanha pela reforma da Carta, a qual, na avaliação do autor do presente texto, era seu objetivo principal na campanha pela presidência.
O jurista Evaristo de Morais, grande advogado das causas dos trabalhadores, auxiliou a elaboração do discurso, fornecendo subsídios. Ele comentou, sobre o momento em que as informações foram dadas:
“(...) Ele pasmava diante dos quadros que lhe apresentávamos, das misérias, dos sofrimentos, dos vexames e explorações a que estão sujeitas algumas classes trabalhistas, parecendo-lhe incomportável a situação por nós descrita. E Deus sabe quanto e quanto lhe custou, abandonando os princípios de seu velho Liberalismo Econômico, sugerir, de público, providências legislativas, de cunho intervencionista!” (PINHEIRO; HALL, 1981, p. 272)
Nada mais eloquente para que se registre na memória histórica que era necessária, de fato, uma ruptura com um laissez-faire supostamente vigente durante a Primeira República, para que leis de trabalho fossem criadas. Na descrição de Evaristo, era como se essa ruptura se operasse, com as dores de uma cirurgia sem anestésicos, também dentro do próprio espírito de Rui Barbosa.
Não há como inferir qual foi exatamente o motivo de Evaristo para fazer esse comentário. Poderíamos cogitar a possibilidade de ter expressado com isso um certo orgulho por acreditar ter mudado a opinião do homem público mais popular do país e desse modo tê-lo levado a abordar a questão social em sua campanha presidencial. Mas o fato é que o discurso de Rui não tem um caráter de ruptura com os discursos dos seus adversários. Muito pelo contrário: é uma resposta aos ataques dos partidários de Epitácio Pessoa, que diziam que Rui não tinha interesse na sorte dos operários. Em outras palavras, embora a abordagem da questão social em seu discurso seja feita em tom de denúncia (pois ele diz que “nada se fez” nesse campo no Brasil), ela representa, na verdade, uma atitude defensiva.
A plataforma de Rui não representa uma voz que se sobressai no reconhecimento da necessidade da legislação social, mas, sim, a ampla presença, na esfera da política naquele momento, de um tema de abrangência nacional, com relação ao qual podem ser qualificados ou desqualificados os que disputam o poder. O discurso de Rui só encontra sentido dentro de um debate em que é geral, no meio político institucional, o reconhecimento de que é preciso regulamentar as relações de trabalho (com exceção quase que só dos que falam pelo Rio Grande do Sul).
A interpretação que os gaúchos faziam do parágrafo 24 do artigo 72 era facilmente refutável por uma mente jurídica tão brilhante como a de Rui Barbosa, mas era útil em sua argumentação pela reforma constitucional. Em seu discurso-plataforma, ele se referiu à oposição dos deputados rio-grandenses a um projeto de autoria do deputado Figueiredo Rocha, de 1912, que limitava as horas do trabalho. O argumento principal desses parlamentares era que a iniciativa era contrária à Constituição, por violar a liberdade profissional consagrada no art. 72, n. 24. Eis como o jurista o comenta:
[...] estou de acordo com a ortodoxia rio-grandense. Não alterada a Constituição, não poderia o Congresso Nacional legislar as mais importantes das medidas sociais, que há pouco discuti. No em que estamos em rixa aberta é em não quererem eles, e advogar eu, a revisão constitucional, para chegarmos a essas medidas. Eles estimam o obstáculo constitucional, para não as dar. Eu, para as dar, pretendo remover o obstáculo constitucional.[10] (BARBOSA, 1919, p. 151-152)
Criando um nexo entre revisão constitucional e legislação social, Rui buscava atrair para a causa da revisão aqueles que se batiam pela legislação social. Ele o fazia explicitamente. Ao fim da parte de seu discurso de março, na qual trata da situação dos trabalhadores, ele conclui:
Chego, pois, destarte, ao corolário terminal da minha argumentação; e este corolário, bem vedes que só poderá ser um. Se os operários brasileiros são pelo regime da intervenção da lei nas relações do capital com o trabalho, não poderão deixar de ser pela revisão constitucional. (BARBOSA, 1919, p. 154)
O fato de esse vínculo aparecer apenas em 1919 (pois tal não se verificou na plataforma de 1910, quando também foi candidato[11]) indica que o tema da legislação social se agregou ao discurso de Rui essencialmente como um reforço ao argumento em prol da reforma constitucional, num momento em que grandes manifestações operárias vinham, desde 1917, agitando o país em proporções nunca vistas. O que Rui visava com a reforma era, fundamentalmente, a alteração do art. 6o da Carta, que tratava dos casos em que é lícito à União intervir nos estados. O objetivo era, como ele diz em 1910, eliminar a falta de clareza do texto, porque, nas suas palavras, “a ambiguidade na lei aproveita sempre ao mais poderoso contra o mais fraco” (BARBOSA, 1910, p. 63). A própria oposição do governo gaúcho à sua candidatura em 1919 viria, segundo ele próprio, de sua defesa de uma revisão daquele dispositivo, que reduziria a autonomia do Rio Grande do Sul. Segundo suas próprias palavras:
“[...] O puritanismo rio-grandense não tolera conversas com a indicação do meu nome, por ser de notoriedade que eu simpatizo com a regulamentação do artigo 6o, norma constitucional da intervenção nos Estados, e não admitir o governo do Rio Grande que ninguém lhe meta o bedelho em casa. [...]” (BARBOSA, 1919, p. 126-127)
Não há como não relacionar o engajamento de Rui na alteração do artigo 6º com a sua experiência de disputas políticas em seu estado, a Bahia, onde o jurista tinha presença marcante no proscênio político, fosse como líder da situação, fosse na oposição. Em outras palavras, há, sem dúvida, uma forte conotação regional na batalha política nacional de Rui Barbosa. Sua argumentação, ao evocar questões nacionais (para as quais podemos supor que de fato estivesse atento, levando em conta seu perfil incomum de homem público), parece voltada também para o que se passa na instável cena política baiana, que já havia registrado conflitos armados entre facções. Num deles, em 1912, como se sabe, Salvador foi bombardeada por duas fortalezas situadas nas proximidades, por ordem do general Sotero Meneses, chefe da guarnição do Exército na Bahia, com apoio de um couraçado enviado pelo governo federal, para garantir que o grupo de J. J. Seabra (na época ministro da Viação do presidente Hermes da Fonseca) obtivesse o controle do estado, do que resultou pouco depois a posse deste como governador, tudo sob os protestos de Rui e seus aliados. Devido à forma como na Primeira República se davam as eleições, sujeitas a todo tipo de fraude e pressão, conflitos envolvendo contestação de eleitos ocorriam nos diversos estados. O governo federal figurava muitas vezes como um “árbitro” (nada imparcial), decidindo a permanência ou alternância no poder, o que ocorreu especialmente no governo Hermes. A esperança de Rui era de que regras mais claras sobre os casos em que a intervenção poderia ocorrer, proporcionadas pela mudança na Constituição, tornassem possível um disciplinamento mínimo das disputas políticas.
Ao que tudo indica, o vínculo entre regulamentação do trabalho e reforma constitucional foi construído como resultado das necessidades de argumentação do próprio Rui Barbosa e não como fruto de um diagnóstico da realidade. Na época, quando se falava em empecilhos de competência constitucional, o que estava em jogo era, fundamentalmente, não a regulamentação no nível federal, mas sim a regulamentação no nível municipal, que com frequência era proposta (e por vezes aprovada) nos maiores centros de atividade econômica no Brasil. O interessante é que o questionamento dessa legislação municipal era feito evocando-se justamente a ideia de que o Congresso Nacional é que tinha a competência – competência exclusiva – para legislar no campo das relações de trabalho. Nada mais distante do que a ideia de que na Primeira República havia um obstáculo constitucional à regulamentação do trabalho.

Conclusão
Em suma, a ordem que se costuma classificar como liberal é muito mais plástica do que o modo como por vezes é descrita. Com ela conviveu a escravidão e com ela é compatível, sem que tal represente uma ruptura, a presença do Estado nas relações de trabalho, com o propósito de regulamentá-las, pois o chamado princípio de “liberdade de trabalho” não é um elemento essencial no liberalismo. Pode, é claro, ser encontrado em certas argumentações com finalidades bem específicas, como é o caso dos chefes políticos gaúchos no Brasil. O curioso é que o encontramos justamente em discursos identificados com o positivismo, concepção que dificilmente poderíamos entender como compatível com a visão liberal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARBOSA, Rui. Campanha presidencial (1919). Bahia: Catilina, 1919.
______. Plataforma apresentada em sessão publica no Polytheama Baiano, em a noite de 15 de Janeiro de 1910. 2 ed. Rio de Janeiro:  J. Ribeiro dos Santos, 1910.
CAVALCANTI, João Barbalho Uchoa. Constituição Federal Brazileira: Commentarios. Rio de Janeiro: Litho-Typographia, 1902.
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FRANCO, Maria Sílvia de Carvalho. Organização social do trabalho no período colonial. Discurso. n. 8, p. 1-45, mai. 1978.
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[1] Doutor em História Social do Trabalho, pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Professor da UFOPA (Universidade Federal do Oeste do Pará) de 2010 a 2013 e atual professor da EPPEN (Escola Paulista de Política, Economia e Negócios) da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
[2] Ver Vargas (2004).
[3] O trabalho mais aprofundado sobre a visão de Locke a respeito de trabalho é o de Maria Sylvia de Carvalho Franco (1993).
[4] O trecho citado é do Preâmbulo ao projeto.
[5] A respeito, ver Vargas (2011).
[6] A esse respeito, é obrigatória a leitura de Thompson (1987).
[7] Para Hobsbawm (1982, p. 50), “a escravidão e o algodão marcharam juntos” durante a Revolução Industrial.
[8] Essa relação entre ser pessoa e ter direitos esteve no centro de uma das raras polêmicas públicas na historiografia brasileira, que se deu entre o final de 1990 e o início de 1991, pelas páginas do jornal Folha de S. Paulo, a partir da publicação de um livro de Jacob Gorender (1990), que criticava as novas produções da área de história da escravidão. Sidney Chalhoub (1990) e Silvia Lara (1991) saíram em defesa destas.
[9] Uma rica abordagem das relações de trabalho na escravidão e do trabalho “livre” pode ser encontrada na obra organizada por Lara e Mendonça (2006).
[10] Vale notar que, na entrevista, Rui deixava de mencionar que a posição dos gaúchos, em 1912, foi voto vencido na Comissão de Legislação Social. A interpretação que venceu e que está registrada no parecer da Comissão foi a de que era “incontestável” a competência do Congresso para legislar a respeito, sendo esta fundamentada no art. 34, § 23 da Constituição.
[11] Nessa plataforma ele também mencionava a legislação do trabalho, embora com pouca ênfase, restringindo-se à proposta de uma “justiça chã e quase gratuita” para as pendências entre o colono e os patrões. O que chama a atenção é que ele também tratava do tema da revisão constitucional, mas não fazia qualquer vinculação entre um tema e outro.

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