terça-feira, 5 de agosto de 2014


QIN SHI HUANGDI

Um inimigo da história

A História registra muitos casos de destruição de livros 
por motivos políticos e/ou religiosos. Um muito conhecido, e talvez o primeiro caso conhecido, foi ordenado
 pelo primeiro imperador da China, no século II a.C.

No tempo em que Aníbal percorria a Itália (ou melhor, a partir de 221 a.C.), reinava na China um imperador que, hostil à História, ordenou em 213 a.C. que fossem queimados todos os livros de História, todos os documentos e testemunhos dos tempos antigos, assim como todos os escritos de Confúcio e de Laozi. Enfim, ordenou que se queimasse tudo o que, na opinião dele, era inútil. Os únicos livros tolerados eram os que tratavam de agricultura ou de considerações práticas. Ai daquele que era encontrado com alguma obra proibida! Era morto imediatamente.
Esse imperador, que se chamava Qin Shi Huangdi, foi um dos maiores heróis de guerra que já existiram. Não era filho de imperador, mas filho de príncipe. Reinava, portanto, sobre um reino que se chamava Qin, como sua família. Provavelmente é de seu nome que vem o da China atual.

Pintura do Primeiro Imperador Chinês, Qin-Shi Huangdi (259-210 aC.), 
 mostrando a queima de llivros. 

Não é por acaso que o nome desse príncipe foi dado a toda a China. De conquista em conquista, expulsando os príncipes de seus reinos, Huangdi tornou-se senhor de todo o país e conseguiu unificá-lo, apesar de sua imensa extensão. Certamente, você irá perguntar por que ele era tão hostil à História. Acontece que, para unificar o país, era preciso, na opinião dele, deixar de lado antigos particularismos, apagando qualquer lembrança deles.
Ele queria que o nascimento da China fosse sua obra pessoal. Para conseguir a unificação daquele imenso país, ele mandou construir estradas através de todo o território e empreendeu uma construção gigantesca: a Grande Muralha da China. Até hoje podemos vê-la, imponente, com suas torres e suas ameias, escalando montanhas escarpadas e colinas, por uma extensão de mais de dois mil quilômetros. Huangdi mandou construí-la ao longo da fronteira de seu imenso império para proteger o país e sua população laboriosa e tranquila das tribos das estepes, de seus cavaleiros belicosos que passavam a vida percorrendo as vastas planícies da Ásia central. Ele queria que aquela gigantesca muralha acabasse com as invasões constantes daquelas hordas de cavaleiros que chegavam para pilhar e matar. Portanto, era preciso que a Grande Muralha pudesse resistir a seus ataques. Isso explica que ela tenha sobrevivido aos séculos, embora tenha sido necessária restaurá-la várias vezes.

A Grande Muralha sendo construída.

Huangdi não reinou sobre toda a China por muito tempo. Pouco depois de sua morte, uma outra família subiu ao trono dos Filhos do Céu, a família Han. Esses conservaram os princípios administrativos estabelecidos por Huangdi. Sob seu reinado a China continuou sendo um Estado unificado. Mas, ao contrário da dinastia anterior, os Han não eram inimigos da História. Lembraram-se daquilo que a China devia aos ensinamentos de Confúcio. Mandaram procurar seus escritos por toda parte e revelou-se que muita gente tinha tido a coragem de não queimá-los. De repente, todos passaram a se empenhar em reencontrá-los e redobraram seu interesse por eles.
É importante notar que a China é o único país do mundo que, ao longo dos séculos, não foi governado por nobres, militares ou sacerdotes, mas por letrados. Hoje diríamos: por intelectuais. Para ser funcionário, pouco importava ser de origem modesta ou nobre. O essencial era passar nos exames. A mais alta função era confiada ao que se saía melhor entre os que tinham respondido às provas mais difíceis. É preciso dizer que, de fato, esses exames não eram fáceis. Os candidatos tinham que saber escrever muitos milhares de sinais. Ora, você lembra que a escrita chinesa não é simples. Eles também precisavam saber de cor uma grande quantidade de livros antigos e recitar sem errar os pensamentos e os preceitos de Confúcio e de outros sábios.
Então, não adiantou nada Huangdi mandar queimar os livros. Pode ser que algum aluno ficasse satisfeito se ele tivesse conseguido. Mas ele precisa saber que é inútil querer, de um modo ou de outro, proibir o acesso à História, pois não é possível fazer nada de novo se não se conhece o que foi feito antes.
Adaptado de: Gombrich, Ernest H. Breve história do mundo. São Paulo:
Martins Fontes, 2001. p.103-5.

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