VIVER PARA CONTAR: LEMBRANÇAS DE UM MOCHILEIRO
Numa manhã
ensolarada de janeiro de 1971, quando eu ainda era um garoto que amava os
Beatles e os Rollingstones, saí de São Paulo com destino ao Chile. Pretendia ver
de perto a experiência de socialismo com democracia do presidente Salvador
Allende. Levava comigo umas poucas roupas numa mochila, um saco de dormir,
algum dinheiro e um desejo grande de aventura. A intenção era viajar de carona,
e de fato assim foi. Relato, a seguir, alguns momentos dessa viagem, que durou
dois meses.
Segui sem
pressa, parando aqui e acolá e, cerca de dez dias depois, cheguei a Buenos
Aires, depois atravessar o Rio da Prata, tendo partido da cidade uruguaia de
Colônia del Sacramento. Em Buenos Aires, fiquei chocado ao saber que o metrô
tinha sido inaugurado em 1913. Isso mesmo: 1913!
Pretendia ficar
uns dias na capital portenha, mas as coisas não correram bem, e caí fora na
primeira oportunidade. Fui para a estrada para percorrer a Argentina no sentido
leste-oeste, atravessando a região dos pampas.
A primeira
parada foi em Rosário, uma cidade localizada na margem direita do Rio Paraná. O
acaso me levou até a casa de uma família argentina que me recebeu com grande
simpatia. Eram pessoas modestas, mas fizeram questão de me oferecer um bom
jantar, acompanhado com o melhor vinho que eles tinham, e até convidaram alguns
vizinhos. Foi um momento festivo, muito agradável. O dono da casa, um senhor já
passado dos sessenta anos, socialista fervoroso, tomou gosto pela minha
aventura e se dispôs a ir comigo. A esposa, porém, não concordou: - Mi viejito, estos son cosas para los jóvenes...,
disse, carinhosamente, para o marido.
No dia seguinte eu estava na estrada novamente (foto). Peguei uma carona até Córdoba, uma cidade muito bonita com a qual me encantei instantaneamente. Consegui me hospedar numa república estudantil e decidi que ia permanecer uns dias por ali. Gostei particularmente da cafeteria. Achei o máximo sentar-me a uma mesa na calçada para tomar o cafezinho, que vinha acompanhado de uns cubinhos de açúcar.
No dia seguinte eu estava na estrada novamente (foto). Peguei uma carona até Córdoba, uma cidade muito bonita com a qual me encantei instantaneamente. Consegui me hospedar numa república estudantil e decidi que ia permanecer uns dias por ali. Gostei particularmente da cafeteria. Achei o máximo sentar-me a uma mesa na calçada para tomar o cafezinho, que vinha acompanhado de uns cubinhos de açúcar.
Tudo ia muito
bem, mas no terceiro dia uns policiais me abordaram e me convidaram para
acompanhá-los até a delegacia. Após um breve interrogatório, levavam-me para um
presídio, enquanto iriam fazer investigações a meu respeito. Foi o que me
disseram.
O presídio
era uma construção térrea, com um pátio central, ladeado de celas, que curiosamente
permaneciam abertas. Ali havia presos comuns e presos políticos, juntos e
misturados. Os presos políticos eram “montoneros”, pertencentes a uma organização
que lutava contra o regime militar. O país dos hermanos também vivia sob uma ditadura.Naquela época as ditaduras
estavam se espalhando como uma praga na América Latina.
Distraia-me ouvindo
os “montoneros” discursando sobre política para os presos comuns. Enquanto isso,
fiz amizade com um detento, que, segundo me disse, ganhava a vida como batedor
de carteiras. Ele gostava do Brasil e conhecia bem o Rio de Janeiro. Até sabia
de cor letras de músicas brasileiras. Era um figuraço! Foi com ele que fiquei
sabendo da existência do “lunfardo”, uma linguagem formada de gírias, quase um
dialeto, muito comum nos portos da região do Prata. Quando chegou a hora do
recolhimento, acomodei-me numa cela, meti-me no meu saco de dormir e tive uma
noite muito tranquila.
Fui libertado
exatamente 24 horas depois de ter sido detido. Sem perda de tempo, passei na
república estudantil, peguei minhas coisas e fui para a estrada. Estava com
sorte: consegui carona com um caminhoneiro muito simpático, que ficou feliz por
ter companhia, enquanto trafegava pela paisagem monótona da extensa planície. Viajamos
a tarde toda e, quando já começava a escurecer, chegamos a um ponto em que a
estrada fazia uma bifurcação. Ele parou o caminhão e me disse: - Aquí, tienes que bajar. Yo seguiré por la
derecha, pero tu, que te vás para Chile, tienes que seguir por la izquierda.
Ele me disse
que caminhasse na direção indicada, que logo encontraria uma cidade. Agradeci
pela carona e me pus a caminhar. Já anoitecia quando cheguei à tal cidade, que na
verdade, de tão pequena, era pouco mais do que um povoado. Procurei o hotel, o
único do lugar, mas me informaram que não havia mais vaga disponível. Não devia
ser verdade. O mais provável era que o atendente não tinha gostado do meu
jeitão.
Bem, saí
andando, meio sem rumo, até chegar a uma pracinha e ali me sentei num banquinho.
Precisava pensar no que fazer. O problema número um era: onde passar a noite? Não
demorei para pensar numa solução, que me pareceu um tanto óbvia: procurar a
delegacia e pedir que me deixassem dormir ali. A ideia se mostrou muito
acertada. O delegado me recebeu gentilmente e disse que eu podia, sim, passar a
noite numa das duas celas da delegacia, que, por sinal, estavam vazias.
Mas eu não ia ficar
sozinho, felizmente, pois daí a pouco chegou um indivíduo pedindo para
pernoitar. Era um argentino aparentando bem mais de 60 anos e que se declarava
um andarilho convicto. Achei aquilo legal, e entabulamos uma animada
conversação. Foi então que aconteceu algo absolutamente inesperado: por volta
das 21 horas, o delegado nos chamou para tomar um chá com ele. Fiquei encantado
com aquilo. Ficamos ali bem mais de uma hora, dentro de uma delegacia, mantendo
uma conversa civilizada, que em nada lembrava que o país vivia sob uma
ditadura. Bem, mas chegou a hora de dormir. Eu procurei meu canto e me
acomodei. Metido no meu saco de dormir, pus-me a matutar na coisa surpreendente
que era aquela minha aventura, sujeita totalmente ao acaso e que a cada
instante me reservava momentos inesquecíveis. Já havia percorrido um pouco mais
de três mil quilômetros. E pensar que eu ainda não tinha chegado nem no meio da
minha viagem!
(São Paulo,
2014)
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