terça-feira, 8 de julho de 2014

IBIÚNA, 1968. LEMBRANÇAS DE UM CONGRESSISTA DA UNE

Uma das gratificações da idade é a possibilidade de evocar lembranças antigas, que quanto mais recuam no tempo mais se confundem com a história. Penso nisso, no momento em que se completam quarenta anos do XXX Congresso da UNE, ocorrido no distante mês de outubro de 1968. O congresso da UNE, ao reunir, num sítio, em Ibiúna, centenas de estudantes, oriundos de todo o Brasil, foi o ponto alto, mas também o mais trágico do Movimento Estudantil daquele ano, "o ano que não terminou", como já foi denominado. Eu estava entre os congressistas, e gostaria de lembrar os fatos, resgatando-os da penumbra em que repousam um tanto esquecidos.
Minha participação no referido congresso começou a acontecer no dia 10 de outubro, uma quinta feira. Eu estava no CRUSP (Conjunto Ressidencial da USP), onde ocupava com outros três colegas, o apartamento 402, do Bloco G. Por volta das vinte horas, apareceu-me o Abel, um colega da FEA (Faculdade de Economia e Administração da USP). Vinha propor-me ir ao Congresso da UNE. Minha primeira reação foi de surpresa, já que não houvera eleições para a escolha dos três representantes a que a FEA tinha direito. É verdade que eu havia sido um dos delegados eleitos para o congresso regional da UEE (União estadual de estudantes), realizado alguns dias antes. Mas isso não era credencial suficiente. Para tomar parte no congresso da UNE, teria sido necessária uma nova eleição, que todavia não se fizera. Situação, aliás, que deve ter se repetido na maioria das escolas do país. A repressão estava muito forte.
Apesar desse pecadilho, aceitei prontamente. Afinal, ser congressista da UNE seria a glória suprema. De maneira que aprontei uma sacola com alguns objetos, e segui para um local ignorado. Abel me deixou em uma casa, à beira de um estrada de chão, onde já se encontrava um grupo de estudantes, esperando pelos acontecimentos. Pernoitamos ali e no dia seguinte fomos levados, na carroceria de um caminhão, cobertos por uma lona, até um ponto mais distante. Daí em diante, a estrada se tornava intrasitável para o caminhão, e seguimos a pé, numa distância de alguns quilômetros. Chovera e havia muita lama. Para piorar, fazia muito frio, embora estivéssemos em outubro. No caminho, passávamos em frente a algumas casas, muito humildes, cujos moradores olhavam surpresos para aquelas figuras muito estranhas. Afinal, estavam ali pessoas de diferentes partes do Brasil. Moças e rapazes, alguns tinham barbas e cabelos longos, outros estavam enrolados em cobertores. Para aquela gente, devíamos estar parecendo seres vindos de outro planeta.

O LOCAL DO CONGRESSO
Chegamos por volta de três horas da tarde ao local que os organizadores, na sua imensa sabedoria, haviam escolhido para realizar o Congresso da UNE. Era uma fazenda de criação de gado, situada no meio de um vale. Soube depois que a fazenda se chamava Murundu e se localizava nas imediações de Ibiúna. As construções eram poucas, e se resumiam a uma casa, que ficara reservada às moças; um galpão, destinado ao uso dos rapazes; e um estábulo, onde se improvisou a cozinha. E numa encosta foi montado o plenário: cobrira-se o espaço com lonas e cavaram-se os degraus no próprio terreno. Eram instalações absolutamente insuficientes e precárias. Fiquei sabendo, posteriormente, que havia sanitários e enfermaria. Eu, porém, não os vi. Mas lembro-me bem de que para caminhar era preciso meter os pés na lama. Santo Deus, quanta lama!
A esse local, completamente impróprio, os congressistas vinham chegando desde a segunda-feira. No meio da semana, já eram cerca de trezentos. O grande número de delegados criou um sério problema de abastecimento. A comida era escassa. Para se ter uma idéia, no dia em que cheguei, sexta-feira, o almoço foi servido por volta das quatro horas e constistia de um único prato - arroz empapado com batatas. Mais nada. E aquela ficou sendo a única refeição do dia.
À noite, na hora de dormir, as coisas se complicaram um pouco mais. Não era nada difícil prever que aquela seria uma noite de terror. O galpão era pequeno e não havia lugar para todos. Não havia camas; dormia-se diretamente no assoalho. Com um pouco de sorte, consegui um espaço no meio de toda aquela gente, onde me acomodei, agasalhado por dois pequenos cobetores que trouxera do Crusp. Mas logo me tomaram um deles. E nem pude reclamar, pois sabia que muitos delegados não tinham cobertor nenhum. Era impossível dormir, e o jeito foi esperar pelo amanhecer.
Foi, portanto, um alívio quando o dia clareou. Era sábado, dia 12 de outubro. O tempo continuava chuvoso e o frio havia aumentado. Saí à procura de um local para lavar o rosto. Percebi que, a certa distância, havia uma bica d’água. Lá se encontravam algumas pessoas, que provavelmente haviam passado a noite em claro.
Café, nem pensar. Não ia haver mesmo. Sem outra coisa para fazer, tomei o rumo do "plenário" e me sentei num daqueles degraus cavados diretamente na terra. Era impossível evitar uma certa sensação de desencanto, principalmente considerando-se a expectativa que se criara em torno do Congresso da UNE. Ia ser o coroamento das lutas do Movimento Estudantil naquele ano, de que eu tomara parte ativamente.

ANTECEDENTES
Procurando enxergar através da bruma do tempo, tentarei lembrar um pouco dessa participação. Quando o ano letivo de 68 começou, eu era calouro da FEA, que naquele tempo ainda funcionava na rua doutor Vila Nova. Bem ao lado, ficava a Faculdade de Filosofia, na rua Maria Antônia, que estava prestes a se tornar cenário das lutas entre os alunos da Filosofia e os do Mackenzie, que lhe ficava em frente. Havia chegado recentemente do Paraná e tinha a cabeça cheia de planos e de sonhos. E nem de longe imaginava o ano extraordinário que iria ter pela frente. É verdade que, em janeiro e fevereiro, já haviam ocorrido as manifestações dos "excedentes", mas ninguém poderia prever que elas eram apenas um pálido prenúncio das lutas memoráveis que estavam por acontecer. Estas iriam começar pra valer quando a primeira vítima da repressão policial tombou no Rio de Janeiro, no final de março. A vítima era o secundarista Edson Luís de Lima Souto, que tomava parte numa manifestação de estudantes no Calabouço, um restaurante que atendia estudantes pobres no Rio de Janeiro, no momento em que a polícia chegou disparando para todos os lados.
Imediatamente, o tiro que vitimou o estudante carioca ecoou por todo o país, provocando uma indignação geral. No bojo das manifestações que se se seguiram, na FEA, realizou-se uma assembléia para tomada de posição. Na abertura, pedi a palavra e propuz que se guardasse um minuto de silêncio em memória do estudante morto pela "polícia nazi-fascista do governador Negrão de Lima". Era minha estréia na política estudantil paulista. Lembro-me de que a proposta causou algum espanto, mas foi acatada, embora sem muito entusiasmo.
No início de abril, novas violências iriam ocorrer por ocasião da missa de sétimo dia da morte de Edson Luís. As piores iriam se registrar novamente no Rio de Janeiro, quando a polícia investiu sobre a multidão que ficou esprimida contra as paredes da Igreja da Candelária. Mas, depois disso, as lutas diminuíram de intensidade, por um período que durou até o final de maio.

CRUSP, QG DO MOVIMENTO ESTUDANTIL EM 68
No começo desse mês, correu pela FEA a notícia de que os estudantes haviam ocupado um bloco recentemente concluído no Crusp. Era o bloco G, que estava reservado para alunos de pós-graduação e por isso mesmo o mais chique do conjunto. Não perdi tempo: corri até a pensão que ficava ali perto, na Major Sertório, juntei minhas poucas coisas, e fui para o Crusp. Cheguei a tempo de ocupar uma das últimas vagas ainda disponíveis, e me instalei no apartamento 402, onde já estavam três alunos do curso de Letras - Alírio, Adilson e Fernando.
Naquele momento, eu nem imaginava que estava me colocando no olho do furacão. De fato, o Crusp era nada menos que o quartel-general do movimento estudantil no Estado de São Paulo. A discussão política rolava o tempo todo - nos apartamentos, nos corredores, no restaurante; por toda parte, enfim. As reuniões e as assembleias aconteciam a qualquer momento.
Os temas que mobilizavam os estudantes eram muitos, desde os específicos, ligados ao ensino, tais como reforma universitária, defesa do ensino público, luta por mais verbas, até os temas mais gerais, dos quais a oposição ao imperialismo e à guerra do Vietnã eram recorrentes, passando, evidentemente, pelo combate à ditadura militar e à repressão. Os mais avançados viam no movimento estudantil um instrumento de combate ao capitalismo. A palavra revolução era a que mais se ouvia. Embora nem todos tivessem ideia clara do que isso queria dizer, ela estava associada a mudanças radicais e, no limite, ao advento do socialismo, visto como a panaceia para os males da sociedade. Era, enfim, um tempo de rebeldia. Não só no Brasil, mas em todo o mundo. Uma rebeldia juvenil, romântica, que achava possível tomar o céu de assalto apenas com a força dos sonhos.

AS LIDERANÇAS
Comandando o Movimento Estudantil havia muitas entidades, todas proibidas pelo governo. Apesar de clandestinas, eram muito atuantes e algumas delas iriam tornar-se muito poderosas naquele ano. Seus dirigentes, por sua vez, converteram-se em figuras nacionalmente conhecidas. Em São Paulo, havia a UEE (União Estadual de Estudantes), presidida pelo José Dirceu (hoje, presidente nacional do PT). No Rio de Janeiro, a UME (União Metropolitana de Estudantes), liderada pelo Wladimir Palmeira. E mais uma miríade de siglas e de nomes. Sobre todas e sobre todos, pairava a UNE, comandada pelo Luís Travassos (falecido prematuramente em 1982).
Depois de um mês relativamente tranquilo, em maio, o movimento estudantil retomou com intensidade as manifestações no mês seguinte. Entre outros eventos, deu-se a tomada da reitoria da USP. Os estudantes exigiam participação na comissão que estudava a reestruturação da universidade. Poucos dias depois, foi a vez dos alunos da FEA decidirem, em assembleia, pela ocupação da faculdade. Era um protesto contra a política educacional do governo e contra a aprovação de uma lei estadual que feria a autonomia da universidade. Pretendia-se também, de acordo com orientação da UEE, impedir que o governo decretasse férias para esvaziar o movimento. O diretor da faculdade concordou em entregar a chave do prédio ao presidente do centro acadêmico. Para garantir a ocupação, os alunos permaneciam no prédio as vinte e quatro horas do dia. Lembro-me de haver passado muitas noites na faculdade, em vigília, indo pela manhã para o Crusp.
Durante a ocupação, formaram-se grupos de estudo para propor mudanças no currículo e nos programas. A ideia básica era adequar a teoria à realidade. E de fato, quando a ocupação se encerrou, no início de agosto, foi entregue à direção da escola um relatório com as propostas e reivindicações dos alunos, juntamente com a exigência de formação de uma comissão paritária, integrada por professores e alunos. Essa comissão chegou a formar-se, mas dissolveu-se poucos dias depois.
No início do segundo semestre, numa data que não posso precisar, fui assistir a uma palestra do sociólogo Fernando Henrique Cardoso, que voltara do exílio pouco tempo antes. O auditório estava cheio. Eram muitos os que queriam ouvir o intelectual renomado, um dos criadores da famosa teoria da dependência, lançada no ano anterior.

AS PASSEATAS
Uma das principais manifestações políticas do movimento estudantil em 68 eram as passeatas. Como acontecia em todo o Brasil, em São Paulo fizeram-se muitas. Não saberia dizer de quantas participei. Recordo-me, porém, especialmente de uma, ocorrida no final de setembro ou no início de outubro, num momento de extrema radicalização, em virtude da morte de um estudante, nos choques da Maria Antônia, entre alunos da USP e os do Mackenzie. Seguiram-se as passeatas de protesto, que a polícia reprimiu sem dó nem piedade. Numa delas, eu fazia parte de um grupo que estava armado de coquetéis molotov. Ao meu lado, dando cobertura, vinha um colega, a quem chamava pelo sobrenome - Siqueira. A intenção era usar as bombas contra a repressão. Mas as bombas se mostraram inúteis naquele instante em que a polícia chegou. Foi tudo muito rápido, e não deu tempo para nada. Impossível esquecer a cena da cavalaria investindo contra os estudantes, despejando golpes de cassetetes para todos os lados. Nem os pacatos transeuntes escapavam. Naquele momento, não havia outra coisa a fazer que não fosse salvar a própria pele. Tive muita sorte. Um lojista abençoado abriu a porta e pude entrar, alguns segundos antes que passassem os cavalarianos. Fiquei ali escondido por algum tempo. A certa altura, o lojista perguntou-me se estava armado. Só então me lembrei do "coquetel", que trazia comigo. Deixei-o ali mesmo, na loja e saí para a rua, tão logo a situação se acalmou, e voltei para o Crusp. Um dos colegas de apartamento - o Alírio - tivera menos sorte. Agarrado pelos policiais, havia apanhado muito e estava bastante machucado. Me lembro de algumas meninas em volta de sua cama, aplicando-lhe pomadas e outros mimos.

A HORA DO CONGRESSO
Nessa altura do ano - outubro -, aproximava-se um dos momentos importante do Movimento Estudantil, talvez o mais importante. Ia acontecer o congresso nacional da UNE, ocasião em que delegados provenientes de escolas superiores de todo o Brasil iriam reunir-se para aprovar uma nova carta-programa e eleger uma nova diretoria para a entidade. Não ia ser uma tarefa fácil, pois, em 68, o governo estava firmemente determinado a não permitir a realização do congresso da UNE, coisa que não conseguira nos dois anos anteriores. Efetivamente, em 66 e 67, apesar da proibição, os estudantes haviam burlado a vigilância das autoridades e realizado os congressos. Agora, a UNE ia tentar mais uma vez realizar seu congresso nacional, apesar de tudo.
Uma primeira etapa já havia se dado em setembro, com a realização, no Crusp, do congresso estadual da UEE. A FEA havia participado com dez delegados, e o fato de ter sido um deles acabou me levando, pelas mãos do Abel, a tomar parte no Congresso da UNE, como já referi anteriormente.
E era por isso que eu estava ali, sentado, naquela manhã de sábado, aguardando o reinício dos trabalhos. Para que o congresso se completasse, faltava ainda a parte mais importante, ou seja, a votação de um novo programa para a UNE e a eleição do novo presidente da entidade. Havia dois candidatos. Um deles, e provável vencedor, era o José Dirceu, de São Paulo, apoiado pelo Wladimir Palmeira, do Rio de Janeiro. De posição mais moderada, defendia a ênfase da luta estudantil no âmbito da universidade Seu opositor, Jean Marc Von Der Weig, do Rio de Janeiro, que contava com o apoio do Travassos, defendia a luta aberta contra o governo por meio de manifestações nas ruas.
Mas não ia ser nada fácil fazer as discussões políticas, com os congressistas naquelas condições. Além da fome e do cansaço, havia o frio e a lama. Era até mesmo uma imprudência reter os delegados naquele local por mais tempo. A qualquer momento, as pessoas poderiam começar a adoecer. Mas não ia haver mais tempo para isso.

A QUEDA DO CONGRESSO
Eram cerca de sete horas da manhã, quando o XXX Congresso da UNE caiu. Primeiramente, ouviram-se tiros. Em seguida, vieram os gritos e as correrias. Era a polícia que estava invadindo a fazenda. A operação foi rápida, e não houve violência. Nem era preciso, pois ninguém ofereceu a menor resistência. Foram presos mais de setecentos delegados e as principais lideranças do Movimento Estudantil.


Durante algum tempo, ajudei a carregar,
numa maca improvisada, uma estudante
paraplégica, que viera da Bahia.
Colocados em fila indiana, seguimos a pé, em silêncio. 
Voltamos pelo mesmo caminho por onde viemos, passando novamente diante dos moradores do local, que nos observavam calados, sem esboçar nenhum gesto, nem de simpatia, nem de hostilidade. Apenas o olhar aparvalhado de quem não fazia a menor idéia do que estava acontecendo.
Mais à frente, a certa altura da estrada, uma frota de ônibus nos esperava. Fomos levados para São Paulo. Chegamos já no final do dia ao presídio Tiradentes.
Nas celas, o moral se manteve elevado. Apesar de tudo, o pessoal não havia perdido o espírito de luta. Discutia-se o tempo todo. E não eram poucos os que pretendiam, mesmo atrás das grades, dar continuidade ao congresso. A certa altura, decidiu-se por uma greve de fome, como forma de pressionar as autoridades. Lá fora, reuniam-se mães de estudantes presos. O Jornal da Tarde não perdeu a oportunidade para tirar uma casquinha, publicando um editorial, que estampava um título arrasador: "De revolucionário da UNE a coitadinho de meu filho". Foi um vexame.
Do Tiradentes, fomos transferidos para a Casa de Detenção, e finalmente para o DOPS. Todos posaram para fotografias. Foram interrogados e fichados. E enquadrados na Lei de Segurança Nacional. Fiquei detido por seis dias. Outros ficaram mais tempo. Os líderes permaneceram presos; alguns deles seriam trocados, tempos depois, pelo embaixador americano sequestrado.
Solto, voltei para o apartamento 402, do Bloco G. Mas não ficaria ali por muito tempo. Dois meses depois, o Crusp foi tomado pelo Exército. O romantismo dos sonhos sucumbia ante o realismo dos tanques! Era o golpe final no Movimento Estudantil, que já vinha ferido de morte desde a tragédia de Ibiúna. Mas o pior estava por vir: os anos de chumbo do AI-5.
Passaram-se quarenta anos, e a queda do Congresso de Ibiúna é pouco mais do que uma lembrança na cabeça de alguns. Lembrança de um tempo difícil, de incertezas, que, felizmente, já é passado e virou história. Hoje, tantos anos depois, olhando para trás, creio que o grande ensinamento de 68 é de que a ditadura não é uma boa opção. Na vida dos povos não há atalhos, nem soluções milagrosas. É preciso, pois, persistir na construção do Estado de Direito, por mais demorado e difícil que seja o processo. Em que pesem as imperfeições da democracia, é por ela que passam os caminhos que conduzem para o futuro melhor.
(São Paulo, 2008)



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