segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018


VINDA  DA  FAMÍLIA  REAL  PORTUGUESA  PARA  O  BRASIL


 Em  1806,  com  a  decretação do Bloqueio Continental por Napoleão Bonaparte, Portugal viu-se diante de um dilema. O decreto exigia que as nações europeias deixassem de comerciar com a Grã-Bretanha, fechando seus portos aos navios ingleses. Com isso, Napoleão pretendia quebrar o poderio econômico de seu principal inimigo e exercer total domínio sobre a Europa.
D. João chega ao Rio de Janeiro.
Pintura de Armando Martins Viana (1897-1992).


Portugal e Grã-Bretanha eram velhos parceiros comerciais. Acatar o bloqueio imposto por Napoleão significava para Lisboa expor o reino e suas colônias às represálias britânicas. Não acatá-lo, porém, seria uma afronta a Napoleão, e o país correria o risco de uma invasão. Durante quase dois anos, a diplomacia portuguesa procurou ganhar tempo, dilatando as negociações. Foi ao extremo de fingir uma guerra contra os britânicos para enganar a França. Esses esforços, no entanto, não surtiram efeito: em agosto de 1807, Napoleão ordenou a invasão a Portugal.
Comandadas pelo general Junot, as tropas invasoras chegaram às portas de Lisboa em novembro de 1807. No dia 27 desse mês, dom João e sua corte bateram em retirada, embarcando para a colônia portuguesa na América.
Embora parecesse precipitada, a fuga fora combinada previamente com a Grã-Bretanha, cuja marinha de guerra se comprometera a escoltar a frota portuguesa na travessia do Atlântico. Na verdade, a transferência da corte de Lisboa para o Rio de Janeiro interessava particularmente aos britânicos, que viam nessa mudança uma ótima oportunidade de ampliar seus negócios.
Dom João governava Portugal como príncipe regente, depois de sua mãe, dona Maria I, ter sido afastada do trono por problemas mentais. Ao sair de Lisboa, ele estava acompanhado de toda a corte, que incluía, além da família real e de diversos funcionários graduados, muitos membros da nobreza com seus familiares e criados. Eram, ao todo, de 12 a 15 mil pessoas, embarcadas em catorze navios escoltados por vasos de guerra de bandeira britânica e carregados de móveis, joias, prataria,
roupas luxuosas e obras de arte. Em espécie, transportavam metade do dinheiro em circulação no reino português. Para os britânicos, isso significava enorme injeção de recursos no mercado colonial, que logo estaria aberto às suas mercadorias e investimentos.

1. Abertura dos portos brasileiros.
Ou o fim do monopólio comercial português no Brasil
Durante a travessia do Atlântico, parte da comitiva, na qual se encontrava o príncipe regente, desviou-se da rota inicialmente traçada e acabou chegando a Salvador em janeiro de 1808. Sem ao menos descer do navio, o príncipe assinou o decreto de abertura dos portos brasileiros às nações amigas. Fez isso pressionado pelas circunstâncias, pois o reino estava ocupado pelo inimigo, e a Inglaterra apresentava-se, naquele momento, como a única nação amiga. Portanto, com amplo acesso ao mercado brasileiro, graças ao avanço de sua indústria e o domínio dos mares.
Ali, no que foi o primeiro centro administrativo da colônia (até 1763), dom João satisfez à expectativa da Grã-Bretanha, decretando a abertura dos portos às nações amigas.
A medida estabelecia uma tarifa alfandegária de 24% sobre os produtos importados e de 16% sobre as mercadorias de origem portuguesa.
Mesmo tendo sido tomada em caráter provisório, a abertura dos portos abolia o exclusivo metropolitano e introduzia a liberdade de comércio no que restava do antigo Império Lusitano. Imediatamente, houve o crescimento do comércio exterior brasileiro. Internamente, o comércio também cresceu, estimulado pela presença de comerciantes de várias nacionalidades.

2. Novos impostos para sustentar a corte
No dia 8 de março de 1808, dom João e sua comitiva chegaram ao Rio de Janeiro. Ao chegar, dom João tratou logo de organizar o governo, distribuindo os cargos administrativos entre os membros da nobreza. Segundo o cientista político Raimundo Faoro, tudo se resumia em “situar no mundo político e administrativo os fugitivos desempregados, colocando-lhes na boca uma teta do Tesouro” (FAORO, Raimundo. Os donos do poder. 9. ed. São Paulo: Globo, 1991. p. 250-252. v. 1.).
Além dos nobres que não dispunham de meios próprios de vida, havia monsenhores, desembargadores, empregados da casa real, médicos, homens do serviço privado da família real e protegidos de dom João.
Assim, o governo instalado no Rio de Janeiro foi constituído com os mesmos vícios que o caracterizavam em Lisboa: empreguismo, utilização dos recursos públicos para fins privados do rei, da nobreza e da alta burocracia do Estado, desperdício, corrupção. O reino – acrescenta Faoro – deveria servir à camada dominante, ao seu desfrute e gozo. Os fidalgos ganharam pensões; os oficiais da Armada e do Exército, acesso aos postos superiores; os funcionários civis e eclesiásticos, empregos e benefícios.
Com toda essa gente vivendo à custa do governo, foi preciso aumentar a carga de impostos. Dessa forma, a receita pública subiu mais de quatro vezes entre 1808 e 1820. Nesse mesmo ano, dois terços das despesas do governo eram destinados ao pagamento de pensões e soldos e a custear a casa real, o Exército e os tribunais. Como se pode imaginar, muito pouco sobrava para investir na infraestrutura necessária às condições de vida da população.
Em abril de 1808, já tendo fixado residência no Rio de Janeiro, dom João decretou a suspensão do alvará de 1785, que proibia a criação de indústrias no Brasil. Ficavam, assim, autorizadas as atividades industriais em território colonial. A medida permitiu a instalação, em 1811, de duas fábricas de ferro, em São Paulo e Minas Gerais. Mas o sopro de desenvolvimento parou por aí, como veremos a seguir.

3. Os tratados de 1810
Em 1810, dom João assinou novos tratados com a Grã-Bretanha. Um deles era um tratado de comércio altamente vantajoso para os britânicos. Por esse acordo, o governo português concedia aos produtos britânicos tarifa preferencial de 15%, abaixo da taxa que incidia sobre os próprios artigos provenientes de Portugal, que era de 16% (depois reduzida para 15%). Para os demais países, valia a tarifa de 24%.
Como compensação, era dada a dom João a proteção e a promessa inglesas de não reconhecer nenhum governo que Napoleão nomeasse em Portugal.
Para o Brasil e para Portugal, o tratado tinha consequências imediatas desastrosas: o Brasil foi inundado por produtos ingleses a baixo preço, com os quais era impossível a concorrência para qualquer produto industrial fabricado no Brasil ou em Portugal.
Em outra medida, tomada logo após a chegada da corte ao Brasil, o governo de dom João declarou guerra à França, e, com o auxílio dos britânicos, partiu para a ocupação da Guiana Francesa em 1809.

4. Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves
Além das concessões de ordem econômica, os tratados de 1810 com a Grã-Bretanha estabeleciam privilégios a cidadãos britânicos em territórios luso-brasileiros. Um desses tratados, o de Comércio e Navegação, garantia aos britânicos fixados no Brasil o direito de serem julgados segundo as leis da Grã-Bretanha, aplicadas por um juiz britânico instalado no Rio de Janeiro (direito de extraterritorialidade). Outro acordo determinava a extinção gradual do tráfico negreiro no Brasil.
Esse tratamento privilegiado ampliava a hegemonia britânica, que deixava de ser apenas econômica para assumir dimensões políticas importantes. Ao invadir essa esfera, os britânicos encontraram forte resistência de alguns setores do governo português, que não estavam dispostos a transformar Portugal em simples vassalo da Grã-Bretanha.
A primeira reação de desagrado partiu do próprio dom João, que, em 1811, reafirmou a soberania lusitana, ordenando a invasão da Banda Oriental (atual Uruguai) por tropas luso-brasileiras, contra a vontade dos britânicos. A justificativa era a necessidade de garantir as fronteiras dos domínios portugueses no Sul, em um momento em que as lutas de independência agitavam o Vice-Reinado do Prata.
Uma nova invasão foi ordenada em 1816.
A Inglaterra apoiava o governo de Buenos Aires, em luta por sua emancipação da Espanha, e opunha-se à decisão do príncipe regente. Dom João, entretanto, manteve-se firme e, em 1821, anexou a Banda Oriental aos domínios luso-brasileiros com o nome de Província Cisplatina.
Com a derrota de Napoleão na Europa, em 1814, a política portuguesa entrou mais uma vez em choque com os britânicos. O Congresso de Viena, visando a restaurar as antigas monarquias europeias, exigia o retorno da família real a Portugal para reassumir o trono e colocar fim ao exílio na colônia.
Mas dom João não queria deixar o Brasil. Resistente à ideia, a alternativa foi elevar o Brasil à categoria de Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Com isso, o Brasil deixava de ser colônia e o governo português, portanto, estaria instalado em terras do reino e não em território colonial.
A ideia de Reino Unido partira de Talleyrand, delegado francês no Congresso de Viena, cuja política contrariava frontalmente com os interesses da Grã-Bretanha

5. Mudanças na colônia
A presença da família real em terras coloniais era um fato inusitado e acabou provocando muitas transformações no Brasil. Veja algumas delas:
• fundação do Banco do Brasil (1808);
• criação da Imprensa Régia e autorização para o funcionamento de tipografias e para a publicação de jornais (1808);
• abertura de algumas escolas, entre as quais duas de medicina – uma na Bahia e outra no Rio de Janeiro;
• instalação de uma fábrica de pólvora;
• instalação de indústrias de ferro em Minas Gerais e em São Paulo;
• vinda da Missão Artística Francesa (1816) e fundação da Academia de Belas-Artes, no Rio de Janeiro;
• mudança de denominação das unidades territoriais, que deixaram de se chamar capitanias e passaram a ser denominadas províncias (1821);
• criação da Biblioteca Real (1810), do Jardim Botânico (1811) e do Museu Real (1818), mais tarde Museu Nacional.

Em 10 de setembro de 1808, por exemplo, começou a circular o primeiro jornal editado no Brasil. Era a Gazeta do Rio de Janeiro, impresso na tipografia da Imprensa Régia. Com apenas quatro páginas, a publicação limitava-se a divulgar notícias oficiais e de interesse da família real. Mas a partir daí surgiram tipografias em diversas regiões do país e outros jornais passaram a ser publicados.
Mais significativa, no entanto, foi a publicação, entre 1808 e 1822, do Correio Brasiliense, editado em Londres por Hipólito José da Costa, um brasileiro que estudara na Universidade de Coimbra e se filiara ao movimento liberal. Trazido clandestinamente para o Brasil por comerciantes britânicos, o jornal de oposição ao governo joanino contribuiu para incutir na elite brasileira as ideias liberais que formariam a ideologia do movimento de independência.

6. Revolução Pernambucana (1817)
Em 6 de março de 1817, eclodiu no Recife uma revolta de grandes proporções. Senhores de terra, padres, diversos militares de prestígio e comerciantes participavam do movimento, que se propagou rapidamente pela cidade e pôs em fuga o governador de Pernambuco. O rápido êxito da revolta decorreu de um conjunto de fatores, como a difusão das ideias iluministas, liberais e republicanas entre as classes dominantes da região e a insatisfação popular com o aumento dos impostos estabelecido pelo governo para custear as invasões da Guiana Francesa e da Banda Oriental do Rio da Prata.
No dia 8 de março, os revolucionários formaram um governo provisório, republicano, integrado por cinco membros – representando a agricultura, o comércio, o clero, a magistratura e os militares – e assessorado por um Conselho de Estado. Prontamente, emissários do governo recém-criado foram em busca de apoio à sua causa em outras províncias e em alguns países, como Estados Unidos, Argentina e Grã-Bretanha. Na Paraíba, formou-se um governo revolucionário, que também se declarou independente de Portugal.
Enquanto isso, no Recife, os rebeldes adotavam uma Lei Orgânica, destinada a regulamentar os poderes da República de Pernambuco. Inspirada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa, a Lei Orgânica deveria vigorar até a convocação de uma Assembleia Constituinte, que desse ao novo país uma Constituição definitiva. Até lá, ficavam estabelecidos como princípios básicos a forma republicana de governo e a liberdade de consciência, de opinião e de imprensa. O trabalho escravo, entretanto, foi mantido.

A derrota da revolução
O movimento rebelde contou com o apoio incondicional da população do Recife, mas durou apenas 74 dias. Em 19 de maio de 1817, tropas reais enviadas por mar e por terra pelo governo do Rio de Janeiro ocuparam a capital de Pernambuco, desencadeando intensa repressão. Os principais líderes do movimento foram presos e sumariamente executados. Seguiram-se nove meses de prisões, julgamentos e execuções. Em 1820, com a eclosão da Revolução do Porto (em Portugal), que veremos a seguir, alguns presos remanescentes foram anistiados. Entre eles estavam frei Joaquim do Amor Divino Caneca e Antônio Carlos Ribeiro de Andrada – irmão de José Bonifácio de Andrada e Silva –, que logo seria eleito um dos representantes do Brasil nas Cortes de Lisboa.

7. Revolução em Portugal (1820)
A rainha dona Maria I falecera em 1816. Com isso, dom João tornou-se rei em 1818 com o título de dom João VI, decidido a permanecer no Brasil, enquanto Portugal passava por difícil situação.
Expulso o exército francês, cuja ação de ocupação do reino motivara a fuga da família real, formou-se um governo regencial para administrar o país. A suprema autoridade, porém, passou a ser exercida por William Beresford, comandante das tropas britânicas que permaneceram no país mesmo após a derrota definitiva de Napoleão em 1815.
A situação de submissão a um general britânico provocava insatisfação e revolta. Além disso, depois de 1815, rebeliões liberais começaram a eclodir em toda a Europa. Essa atmosfera de rebeldia acabou provocando o surgimento de sociedades secretas e movimentos de contestação em Portugal. Uma dessas sociedades era o Sinédrio, criada por comerciantes, magistrados e militares na cidade do Porto em 1818.
Em agosto de 1820, a guarnição militar do Porto rebelou-se contra o domínio britânico. No dia 15 do mês seguinte, a rebelião chegou a Lisboa, sublevando a tropa com o apoio de manifestações populares contra a monarquia absolutista. As lideranças rebeldes constituíram então um governo provisório, que convocou as Cortes de Lisboa, uma espécie de Assembleia Constituinte portuguesa, para votar uma Constituição e criar uma monarquia constitucional.
Com a evolução dos acontecimentos, as Cortes de Lisboa se converteriam no mais importante órgão do governo revolucionário lusitano. Compostas de 205 cadeiras, das quais 75 deveriam ser preenchidas por representantes do Brasil, as Cortes contavam com esmagadora maioria de deputados delegados portugueses.

A revolução queria recolonizar o Brasil
No Brasil, a notícia da Revolução do Porto foi recebida com entusiasmo. Entretanto, a partir de janeiro de 1821, quando as Cortes começaram a se reunir, ficava cada vez mais claro para os brasileiros que a política do novo governo de Lisboa nada tinha de inovadora em relação ao Brasil.
As Cortes, na verdade, faziam parte do projeto da burguesia comercial portuguesa, interessada em estabelecer uma monarquia constitucional em Portugal. Mas, em relação ao Brasil, a intenção era desfazer a situação de relativa independência alcançada pela ex-colônia sob o governo de dom João VI e restaurar o monopólio português do comércio brasileiro.
Para começar, as Cortes determinaram o regresso de dom João VI a Portugal. Em abril de 1821, o rei voltou para a Europa, deixando em seu lugar o príncipe regente, dom Pedro. (Veremos esse assunto com mais profundidade em outra  postagem deste blogue.)
Em seguida, as Cortes subordinaram todas as províncias brasileiras ao comando direto de Lisboa, como se não existisse governo no Rio de Janeiro. Além disso, fecharam diversos órgãos públicos instalados no Brasil, favoreceram os comerciantes portugueses com o restabelecimento de privilégios no comércio brasileiro e passaram a fazer pressão para que o príncipe regente voltasse para Portugal. Com essa política, as Cortes pretendiam mesmo era recolonizar o Brasil.


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