terça-feira, 27 de fevereiro de 2018


ALVARÁ DE 1º. DE ABRIL DE 1808

D. João VI nos trajes de sua aclamação,
pintura de Debret.
Recém-chegado ao Brasil, dom João VI (1767--1826) logo tratou de alterar a política econômica de seu império luso-afro-brasileiro. Além da abertura dos portos às “nações amigas”, o príncipe regente decretou o Alvará de 1o de abril de 1808, autorizando a instalação de manufaturas na colônia portuguesa. Leia, a seguir, a íntegra desse alvará.

ALVARÁ DE 1º. DE ABRIL DE 1808.

"Eu o príncipe regente[1] faço saber aos que o presente alvará[2] virem: que desejando promover, e adiantar a riqueza nacional, e sendo um dos mananciais dela as manufaturas[3], e melhoram, e dão mais valor aos gêneros e produtos da agricultura, e das artes, e aumentam a população dando que fazer a muitos braços, e fornecendo meios de subsistência a muitos dos meus vassalos[4], que por falta deles se entregariam aos vícios da ociosidade: e convindo remover todos os obstáculos, que podem inutilizar, e prestar tão vantajosos proveitos: sou servido abolir, e revogar toda e qualquer proibição, que haja a este respeito no Estado do Brasil, e nos meus domínios ultramarinos[5], e ordenar, que daqui em diante seja o país em que habitem, estabelecer todo o gênero de manufaturas, sem excetuar alguma, fazendo os seus trabalhos em pequeno, ou em grande, como entenderem que mais lhes convém, para o que. Hei por bem revogar o alvará de cinco de janeiro de mil setecentos oitenta e cinco[6]e quaisquer leis, ou ordens que o contrário decidam, como se delas fizesse expressa, e individual menção, sem embargo da lei em contrário.
[...]
Dado no Palácio do Rio de Janeiro em o primeiro de abril de mil oitocentos e oito. Príncipe = d.Fernando José de Portugal."[7]


[1] Segundo filho de d. Maria I e d. Pedro III, que se tornou herdeiro da Coroa com a morte de seu irmão primogênito, d. José, em 1788, d. João VI (1767-1826) assumiu a regência do reino em 1792, no impedimento de sua mãe, considerada louca. Foi sob o governo do então príncipe regente d. João, que Portugal enfrentou sérios problemas com a França de Napoleão Bonaparte, sendo invadido pelos exércitos franceses em 1807. Em decorrência da invasão francesa a Portugal, a Corte portuguesa e a família real partiram para o Brasil em novembro daquele mesmo ano, aportando em Salvador em janeiro de 1808. Dentre as medidas tomadas por d. João em relação ao Brasil estão: a abertura dos portos às nações amigas; a liberação para criação de manufaturas; a criação do Banco do Brasil; a fundação da Real Biblioteca; a criação de escolas e academias, e a implantação de uma série de outros estabelecimentos dedicados ao ensino e à pesquisa, representando um importante fomento para o cenário cultural e social da colônia. Em 1816, com a morte de d. Maria I, tornou-se d. João VI, rei de Portugal, Brasil e Algarves. Em 1821, retornou com a Corte para Portugal, deixando seu filho Pedro como regente. Ainda durante seu reinado, foi reconhecida a Independência do Brasil, no ano de 1825.
[2] Proclamações do rei, articuladas geralmente em incisos, tendo, originariamente, natureza de lei de cunho geral, mas que passaram, posteriormente, a ter caráter temporário, modificando as disposições constantes em decretos, regulamentações, normas administrativas, processuais e tributárias, dentre outras.
[3] O termo manufatura frequentemente é associado à indústria e a fábricas, por vezes sendo usado indiscriminadamente. Ao longo do período colonial verifica-se a presença de pequena atividade manufatureira (de caráter doméstico e artesanal), devido à repressão operada pela Coroa portuguesa por este tipo de prática ferir a estrutura do sistema colonial e a lógica mercantilista. Essa repressão culminou com a assinatura do alvará de 5 de janeiro de 1785, que proibiu a atividade manufatureira no Brasil, à exceção da produção de tecidos grosseiros de algodão, que serviam para ensacar gêneros agrícolas e para vestuário dos escravos. Somente depois da transferência da Corte e da sede do Império português para o Brasil em 1808, por meio do alvará de 1º de abril do mesmo ano, o príncipe regente revogou a lei de 1785 e, não apenas autorizou como passou a incentivar a instalação de fábricas no Brasil, concedendo isenção de direitos de importação de matérias-primas e subsídios para a construção das primeiras manufaturas, sobretudo no setor têxtil e de ferro. Ainda assim, boa parte das manufaturas criadas não vingaria; entre as razões principais para este fracasso, a impossibilidade das pequenas fábricas, sem mão-de-obra especializada e sem uma verdadeira organização fabril, de competir com as importações inglesas, mais baratas, e de qualidade muito superior, preferidas pela maioria da população em condições de consumir. Sem capital para investimento em melhorias e sem um mercado consumidor interno, a maior parte delas acabou falindo. Dentre as manufaturas que mais se destacaram ao longo do período colonial podemos citar a construção naval favorecida pela grande oferta de madeiras de boa qualidade proporcionada pela colônia; a produção de têxteis, principalmente dos tecidos grossos de algodão para consumo interno, atividade doméstica e feminina, muito disseminada pelo Brasil (sobretudo em Minas Gerais) e que constituía a fonte de renda para muitos colonos; e atividades artesanais diversas, urbanas e rurais, voltada para a produção de artigos necessários à vida cotidiana, como móveis, cerâmica, instrumentos de ferro, sapatos, ourivesaria, entre outros, exercidas sobretudo por escravos de ganho e libertos. A liberação das manufaturas e sua promoção em todo Império português por d. João em abril de 1808, faziam parte de toda uma política de cunho liberal defendida por intelectuais como José da Silva Lisboa, visconde de Cairu. Com a liberação, houve uma série de alvarás posteriores, que concediam isenções e privilégios, para impulsionar a produção manufatureira no Brasil e nos domínios ultramarinos portugueses.
[4] Neste contexto, súdito do rei, independente de sua localização no Império. Até o século XV, o título ‘vassalo' era empregado para designar homens fiéis ao rei, aqueles que o serviam na guerra, sendo, portanto, cavaleiros ou nobres de títulos superiores, que recebiam em troca do apoio e serviço, tenças, pensões, dadas, inicialmente, a todos os vassalos e seus filhos varões. A medida em que se pulverizavam as distribuições destes títulos, principalmente por razões de guerra (a conquista de Ceuta foi a mais significativa deste processo), e que eles começam a ser mais almejados, principalmente pelos plebeus e burgueses em busca de mercês e de aproximação com a realeza, o rei diminui a concessão dos títulos, e, mais importante, das tenças. A esta altura, as dificuldades financeiras da monarquia também empurraram para a suspensão da distribuição dos títulos e benefícios. O rei passa, então, a conceder mercês e vantagens individuais, e o termo se esvazia do antigo significado de título, passando a indicar homens do rei, súditos e habitantes do reino, de qualquer parte do Império.
[5] O termo domínios ultramarinos, também chamados de Ultramar, designava as possessões de além-mar, as terras conquistadas e colonizadas no período da expansão marítima e comercial europeia, ocorrida a partir do século XV. No caso português, as possessões coloniais espalhavam-se pelos continentes africano, americano e asiático, tendo como principais cidades Luanda e Benguela na África, Macau e Malaca na Ásia, e Rio de Janeiro e Salvador na América.
[6] O alvará de 5 de janeiro de 1785 foi considerado uma medida de reforço dos laços exclusivistas do mercantilismo, cuja intenção era proibir a colônia de encetar uma produção manufatureira que substituísse parte do comércio obrigatório com a metrópole. A medida visava especificamente proteger uma tentativa de crescimento da indústria em Portugal, que por sua vez buscava libertar o reino da dependência dos tecidos ingleses. O alvará, no entanto, atingiu pouco as manufaturas coloniais, pela isenção que estabelecia dos tecidos grossos de algodão, que constituíam a maior parte da produção da colônia. Poucos teares de boa qualidade foram suprimidos. O teor da lei, contudo, não era afirmativo quanto a questão dos vínculos coloniais, mas sugeria uma preocupação com o próprio desenvolvimento da colônia. Segundo o texto da lei, a difusão das manufaturas promovia uma expansão no número de "fabricantes", e uma consequente diminuição no de "cultivadores", e descobridores, que desbravavam, ampliavam, ocupavam, lavravam, e produziam no território, quer cultivando a terra, quer extraindo dela riquezas minerais. Uma decorrência direta seria a diminuição dos produtos que sustentavam o comércio Atlântico entre o reino e seus domínios. Proibia, então, para evitar a "falta de braços", as fábricas, manufaturas e teares, de tecidos, galões, bordados de ouro e prata. Proibia a produção de tecidos de seda, linho, lãs, e finos de algodão, ou qualquer mistura entre eles, permitindo apenas as fazendas grossas de algodão, usadas para vestimentas de escravos, para produção de sacos para enfardar gêneros e usos afins.
[7] Fernando José de Portugal e Castro, 1752-1817, filho terceiro do marquês de Valença, formado em direito pela Universidade de Coimbra, ocupou vários postos na administração portuguesa no decorrer de sua carreira. Foi governador da Bahia, entre os anos de 1788 a 1801, passando depois a exercer a função de vice-rei do Estado do Brasil até 1806. Logo em seguida, regressou a Portugal para tornar-se presidente do Conselho Ultramarino até a transferência da Corte para o Rio de Janeiro. A experiência acumulada na administração colonial valeu-lhe a nomeação, em 1808, para Secretário de Estado dos Negócios do Brasil, função exercida até seu falecimento. Durante este período ainda acumulou as funções de presidente do Real Erário, e ministro e secretário de Estado dos Negócios da Guerra e dos Negócios Estrangeiros, e foi agraciado com o título de conde e marquês de Aguiar. Dentre suas atividades intelectuais, destaca-se a tradução para o português do livro Ensaio sobre a crítica, de Alexander Pope, publicado pela Imprensa Régia, em 1810.

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