O GOVERNO GOULART E O GOLPE DE 1964
O governo de João Goulart nasceu,
viveu e morreu sob a ameaça do golpe de Estado. A crise que se abrira com a
renúncia de Jânio Quadros havia sido momentaneamente superada, como vimos, com
a adoção do sistema parlamentarista. Mas o clima de tensão iria permanecer e se
agravar, levando ao desfecho dramático do golpe militar de março de 1964.
1. A fase
parlamentarista
O Brasil teve três
primeiros-ministros, em pouco mais de um ano. Depois de Tancredo Neves,
ocuparam o cargo Brochado da Rocha e Hermes Lima, sucessivamente. E, na
verdade, eram poucos os que estavam interessados em que o parlamentarismo desse
certo. Por isso, logo teve início uma campanha para antecipar o plebiscito, que
estava marcado para 1965. A campanha contava com o apoio dos políticos mais
poderosos, incluindo o próprio João Goulart. Por fim, a pressão pela antecipação
prevaleceu, e o Congresso Nacional a aprovou e o plebiscito foi marcado para o
dia 6 de janeiro de 1963.
Houve uma grande campanha pelo
NÃO (não, ao parlamentarismo). O parlamentarismo praticamente não teve
defensores, pois todos os grandes líderes políticos da época (Leonel Brizola,
Carlos Lacerda, etc.) eram presidencialistas, já que todos queriam ser
candidatos a presidente em 1965. E o povo, numa proporção de 5 votos a 1, optou
pela volta do presidencialismo.
2. A fase
presidencialista
Ao iniciar a nova fase como chefe
de um governo presidencialista, Jango ainda tinha três anos para tentar uma
solução para dois problemas econômicos que, mais de perto, infernizavam a vida
dos brasileiros:
- aceleração inflacionária: 47,8% em 1961 e 51,6% em 1962;
- desaceleração do crescimento: 10,3% em 1961 e 5,3% em 1962.
Para enfrentá-los, colocou em
prática um programa de governo, chamado Plano Trienal, elaborado pelo
economista Celso Furtado, ministro do Planejamento. Esse plano constituía-se de
duas partes:
- um programa econômico de estabilização da moeda
- um programa de reformas estruturais, que foram denominadas reformas de base (agrária, tributária, administrativa, urbana, educacional).
Como programa de estabilização,
não diferia dos programas monetaristas (ou ortodoxos) anteriores. E encontrou
as mesmas dificuldades, pois propunha medidas impopulares. Previa conseguir o
equilíbrio das contas públicas, aumentando a arrecadação e cortando despesas.
Esse propósito, porém, logo fracassou, porque o funcionalismo público
pressionou o governo e obteve um reajuste de 70% nos salários. Além disso, o
sucesso do plano dependia de setores - credores estrangeiros e o governo dos
EUA - que não tinham desejo de colaborar com o governo nacionalista de João
Goulart.
Poucos meses depois, o plano de
estabilização havia fracassado e foi abandonado. A inflação continuou se
acelerando, ao mesmo tempo em que se acentuava a queda no crescimento
econômico.
Perdida a luta nessa frente,
Jango então adotou uma postura mais de esquerda e passou a tomar medidas cada
vez mais radicais na linha do nacionalismo. Voltou-se, então, para as reformas
de base, consideradas necessárias para eliminar os chamados “pontos de
estrangulamento”, que impediam o natural desenvolvimento econômico do país.
Eram, porém, reformas que dependiam de aprovação do Congresso Nacional, e,
delas, a mais importante era a reforma agrária, que se justificava por dois
motivos:
- econômico: faria aumentar a produção agrícola e criaria um mercado interno consumidor mais amplo para bens manufaturados;
- social: faria uma distribuição mais justa das terras e contribuiria para aliviar as tensões sociais.
Mas propor a reforma agrária era
muita ousadia de Jango. Afinal nunca antes um governante brasileiro ousara
tocar na propriedade fundiária brasileira. E Jango ousou. Propôs ao Congresso
uma lei de reforma agrária, bem como outras medidas nessa linha do nacionalismo
getulista, destacando-se:
- a promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural, que estendia ao campo os benefícios dos trabalhadores urbanos;
- o fortalecimento da política externa independente, desafiando os EUA;
- o cumprimento mais rigoroso da Lei de Remessa de Lucros, aprovada em 1962.
3. A
radicalização política
Todas essas medidas, combatidas
por uns e defendidas por outros, levaram ao máximo a agitação política,
refletindo um amadurecimento das lutas sociais no país. Contra o
conservadorismo das elites, que teimavam em manter as velhas estruturas,
estavam os setores explorados da população, os trabalhadores do campo e da
cidade.
Os trabalhadores rurais emergiram
no cenário das lutas sociais e políticas, da época, rompendo uma secular
passividade, raramente quebrada no passado. Segundo Boris Fausto, esse fenômeno
se explicaria pela crescente urbanização e pela rápida industrialização das
últimas décadas.
A terra passou a ser mais rentável do que no
passado, e os proprietários trataram de expulsar antigos posseiros ou agravar
suas condições de trabalho, o que provocou forte descontentamento entre a
população rural. Além disso, as migrações aproximaram campo e cidade,
facilitando a tomada de consciência de uma situação de extrema submissão, por parte
da gente do campo.
Mobilizando os trabalhadores do
campo, organizando suas lutas, atuavam algumas entidades políticas, favoráveis
às reformas sociais no país. Uma delas foram as Ligas Camponesas, que surgidas
no Pernambuco em 1955, vinham crescendo e se espalhando para outros estados,
lutando contra a violência e a exploração no campo. Seu líder principal era o
advogado e político de Pernambuco, Francisco Julião.
Outros que atuavam junto aos
camponeses eram os comunistas e uma ala reformista da Igreja Católica, que
preferiam criar e fortalecer os sindicatos rurais, como instrumentos de luta.
Culminando o processo de organização no campo, em dezembro de 1963, foi fundada
a CONTAG (Confederação dos Trabalhadores na Agricultura).
Os operários, por seu lado, já
tinham experiência de mobilização e organização desde os tempos da República
Velha. No início da década de 1960, as entidades sindicais, lideradas por
comunistas e trabalhistas, haviam se tornado extremamente combativas.
Um dado ilustrativo a esse respeito
é o número de greves, que passaram de 31, em 1958, para 172, em 1963. E
ultimamente o movimento operário vinha mudando de qualidade, e a prova disso é
que as greves assumiam, cada vez mais, um caráter político, evidenciando a
politização da luta social no Brasil.
O ponto alto desse avanço foi a
fundação do CGT (Comando Geral dos Trabalhadores), em dezembro de 1962.
O que ficou dito a respeito dos
trabalhadores, rurais e urbanos, vale para os demais grupos sociais, todos
tendendo para algum grau de politização, mobilização e organização, na defesa
de seus interesses imediatos ou convicções políticas.
A politização da sociedade, em
condições extremas de injustiça social, levava a política populista a alcançar
rapidamente seu limite, e colocar a sociedade brasileira diante de um impasse.
O passo seguinte era absolutamente incerto, pois dificilmente a solução,
qualquer que fosse, trilharia pelo caminho da normalidade democrática.
4. A divisão
das forças políticas
Uma parcela grande da população
tomou posição e se organizou ou para defender ou para combater o governo
Goulart. Apareceram várias entidades. As principais forças em conflito eram:
I) a favor do governo:
- Frente Parlamentar Nacionalista (FPN) - funcionava no Congresso Nacional e reunia parlamentares de diferentes partidos, no apoio às reformas nacionalistas;
- Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT) - uma central sindical surgida em 1962, que apesar de proibida, tinha grande atuação;
- Confederação dos Trabalhadores Agrícolas (CONTAG) - que representava os trabalhadores do campo;
- União Nacional dos Estudantes (UNE) - que representava os estudantes universitários, e apoiava as mudanças sociais no país;
- Ligas Camponesas - que lutavam pela reforma agrária e tinham grande atuação no Nordeste.
II) contra o governo:
- Ação Democrática Parlamentar (ADP) - funcionava no Congresso e reunia parlamentares conservadores de diferentes partidos;
- IPES/IBAD, complexo formado por duas entidades: Instituto de Pesquisas Sociais e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática. Este último, integrado por setores dominantes da sociedade (empresários, Igreja, militares, etc.), reunia recursos para financiar estudos, ações e organizações direitistas, procurando desestabilizar o regime populista. Uma ação importante era o financiamento de políticos conservadores nas eleições.
- chefes militares, Embaixada dos EUA, a Igreja, etc.
A imprensa desempenhava
evidentemente um papel importante. A grande imprensa, de um modo geral, não
apoiava Goulart, e até o combatia. Os mais importantes eram: O Estado de São
Paulo, O Globo, Diários Associados e Tribuna da Imprensa. Já os jornais que
apoiavam o presidente, ao contrário, eram poucos. Entre estes, sobressaia-se o
diário Ultima Hora, que pertencia ao jornalista Samuel Weiner.
Os políticos de direita mais
influentes eram Carlos Lacerda (RJ), Ademar de Barros (SP) e Magalhães Pinto
(MG). Entre os líderes de esquerda, destacavam-se Leonel Brizola (Sul), Miguel
Arraes e Francisco Julião (Nordeste).
Goulart era combatido pela
direita, que o acusava de corrupção, de estar preparando um golpe ou de estar
levando o país para o comunismo. A esquerda também não confiava completamente
em Goulart, que afinal era um político populista, um burguês muito rico e um
líder hesitante e moderado demais.
5. O comício
de 13 de março
Goulart sentiu que precisava de
um apoio popular mais firme para avançar seu programa de reformas, e optou pela
realização de grandes concentrações de massa, nas quais anunciaria a adoção de
medidas reformistas. Com esse intuito, programou um comício para o dia 13 de
março.
Também chamado de “Comício das
Reformas”, representou a verdadeira guinada de Goulart para a esquerda. Foi
realizado no Rio de Janeiro, com amplo apoio oficial e reuniu cerca de 200 mil
pessoas. Líderes populistas fizeram discursos radicais.
O último a discursar foi o
próprio presidente, que naquela ocasião se fazia acompanhar de sua esposa,
Maria Teresa, numa de suas raras aparições em eventos políticos. Ali mesmo,
sobre o palanque, Goulart assinou dois decretos: um nacionalizando refinarias
de petróleo e outro desapropriando terras para fins de reforma agrária.
Jango, ao lado da mulher, Maria Tereza, discursa no comício do dia 13 de março de 1964, no Rio de Janeiro. |
Era uma atitude muito arriscada
do presidente, pois estava provocando a direita, sem contar com o apoio seguro
da esquerda que, por sua vez, estava dividida em várias facções. Sem dúvida,
Jango e a esquerda superestimavam suas forças.
Se a esquerda estava dividida e
estava sendo apressada, a direita, ao contrário, estava unida e agia com calma,
fazendo seus preparativos para um golpe. Sob a liderança do general Castello
Branco, chefe do Estado Maior do Exército, os golpistas tratavam de conseguir a
adesão daqueles chefes militares que ainda duvidavam da necessidade de quebrar
a legalidade e derrubar o presidente.
6. A
ofensiva golpista e o Golpe de Março de 1964
Em resposta ao comício de 13 de
março, a direita intensificou os preparativos para o golpe e iniciou uma série
de manifestações em todo o Brasil, começando, em São Paulo, pela “Marcha da
Família com Deus pela Liberdade”, que reuniu cerca de 500 mil pessoas. A
finalidade dessas manifestações era criar o clima propício para o golpe.
"Marcha da Família", dia 19 de março de 1964, em São Paulo. |
O consenso entre os militares
para a necessidade de intervenção foi finalmente alcançada no dia 26 de março,
quando ocorreu a chamada “Revolta dos Marinheiros”. Mais de mil marinheiros e
fuzileiros navais fizeram uma assembleia não-autorizada, no Sindicato dos
Metalúrgicos do Rio de Janeiro. Nessa ocasião, Goulart, sob pressão dos
marinheiros, mudou o ministro da Marinha, numa evidente quebra da hierarquia
militar. Esse fato selou a sorte do presidente. Os conspiradores marcaram a
data do golpe: 2 de abril.
Mas o golpe começou antes. Há
controvérsias sobre a data exata do início do golpe, mas não se pode negar o
fato de que, na madrugada de 31 de março, o general Mourão Filho [1]
(Comandante da IV Região Militar-MG) ordenou às suas tropas que se
movimentassem em direção ao Rio de Janeiro.
Outros comandos militares
aderiram. O general Amauri Kruel, comandante do poderoso II Exército, sediado
em São Paulo, se dispôs a apoiar Goulart, mas exigiu que o presidente retirasse
seu apoio a algumas entidades consideradas subversivas (a UNE, por exemplo),
mas não foi atendido. Diante da negativa de Goulart, o general Kruel também
aderiu ao golpe. A sorte do presidente estava selada.
Diante do levante militar, Goulart
não esboçou qualquer reação. Do Rio de Janeiro, onde se encontrava, voou para
Brasília e, de lá, para o Rio Grande do Sul, onde Brizola tentou, sem sucesso,
convencê-lo a reagir. Em seguida, Goulart exilou-se no Uruguai. A facilidade
com que a República Populista foi derrubada surpreendeu até os próprios
golpistas, que haviam se preparado para enfrentar resistência.
No dia 1º. de abril, o Congresso
Nacional declarou vaga a presidência da República. Era um ato ilegal, pois o
presidente Goulart ainda se encontrava em território nacional. No dia 2, o
presidente da Câmara, Ranieri Mazzili, tomou posse como presidente da
República. Poucas horas depois, o presidente dos EUA enviava um telegrama
saudando o novo governo brasileiro. O golpe, que a UDN sempre desejara, havia
finalmente triunfado.
7.
Conclusões
No governo Goulart, o movimento
popular esteve, pela primeira vez na história do Brasil, próximo de chegar ao
poder. A liderança desse movimento esperava que a burguesia nacional desse
apoio ao programa de reformas, o que não aconteceu. A pretendida aliança de
classes (trabalhadores e burguesia nacional) nunca ocorreu, mesmo porque a
burguesia preferiu aliar-se ao capital multinacional.
Para o sucesso do golpe, um papel
importante coube às elites e setores das classes médias. Por não aceitarem a
crescente radicalização política do movimento popular e preferiram apoiar a
derrubada do governo. O novo regime, implantado pelos militares, iria realizar,
de cima para baixo, a “modernização conservadora”, evidentemente, sem a
participação do movimento popular.
Era inevitável a derrota do
movimento popular em 1964?
O historiador Jacob Gorender acha
que não. Escreve ele:
No dia 31 de março, a situação não era ainda
favorável aos golpistas do ponto de vista estritamente militar. Teria sido
possível paralisar o golpe se, ao menos, alguma ação viável de contra-ofensiva
imediata fosse empreendida. Sabe-se que Lacerda só contava com defesa muito
precária no Palácio Guanabara. A tomada do Palácio pelos fuzileiros navais
seria operação relativamente rápida e de enorme repercussão moral. O mesmo
efeito de paralisia teria a dispersão dos recrutas que desciam de Minas, por
uma esquadrilha de aviões de bombardeio.
“A força-tarefa naval dos Estados
Unidos, mobilizada no Caribe pela operação chamada Operação Brother Sam, não
alcançaria Santos antes de 11 de abril. Não trazia contingentes de desembarque
e o seu objetivo era o do efeito demonstração e o apoio aos insurretos com armas, munições e
combustível, na previsão de guerra civil prolongada. Já envolvidos na escalada
da guerra do Vietnã, não seria fácil aos Estados Unidos manterem uma segunda
frente no Brasil. Havia tempo para preparar condigna recepção de repúdio à
força-tarefa norte-americana, tanto do ponto de vista militar como da
mobilização das massas populares... Houve a possibilidade de vencer, mas foi
perdida. Mais grave é que foi perdida de maneira desmoralizante... [2]
Mas Gorender certamente faz uma
análise muito otimista. Pensando com realismo, e com a perspectiva do tempo, é
forçoso admitir que a derrota da esquerda era inevitável.
Primeiro, porque o governo
Goulart estava desgastado pela crise e por isso não contava com suficiente
apoio popular. Segundo, o dispositivo sindical tinha uma capacidade limitada de
mobilização dos trabalhadores. Por isso, quando o CGT ordenou uma greve geral
contra o golpe, a greve não ocorreu. Em terceiro lugar, a esquerda estava
dividida. A esse respeito, é ilustrativo o texto abaixo, com o depoimento de um
dirigente sindical.
Hércules Corrêa, comunista e
dirigente do CGT na época, admitia que o governo Jango precisa de uma trégua e
não de uma greve atrás da outra”. E se referia às pressões sofridas pelo
governo, que mesmo vindas dos setores que o apoiavam, contribuíam para sua
desestabilização. Sobre o comício de 13 de março, ele declarou:
Quando o comício terminou e foi todo mundo
embora fiquei para dar ordens (desmontar o palanque, etc.). Olhava tudo aquilo
- faixas, cartazes pelo chão - o vazio aumentou em mim. O sentido da derrota
foi de tal ordem que me deu vontade de chorar. Parecia que eu tinha terminado
uma batalha em que tinha sido dizimado. Muita gente saiu dali eufórica, mas eu
tinha a exata noção da nossa divisão. Era impossível superá-la.[3]
A chance de fazer frente ao golpe
dependeria de uma divisão nas Forças Armadas. Mas ocorreu justamente o
contrário. Enquanto a esquerda permaneceu dividida, a direita havia encontrado
uma liderança indiscutível, a do general Castello Branco, que conseguiu unir
todas as forças golpistas.
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