quarta-feira, 14 de outubro de 2015

A DIFÍCIL EXPERIÊNCIA DEMOCRÁTICA (1946-1964)


  Em outubro de 1945, por meio de um golpe militar, desaparecia o Estado Novo e começava uma nova era para a história política brasileira. A República ia fazer mais uma tentativa - a terceira - de implantar um regime democrático. A primeira havia se dado com a Constituição de 1891, mas resultou num regime dominado pelas oligarquias. A segunda ocorreu com a Constituição de 1934, e teve uma vida muito curta, encerrando-se três anos depois. E agora, com o fim do Estado Novo, seguido da elaboração da Constituição de 1946, o país iniciava mais uma experiência democrática, que duraria menos que o espaço de tempo de uma geração.

Essa nova era - de 1946 a 1964 - é chamada, às vezes, de República Populista, porque nessa época praticava-se o estilo de fazer política, criado por Vargas, que recebeu a denominação de “populismo”. Outras vezes é chamada de República Democrática, porque o país viveu um período democrático, intercalado entre dois regimes autoritários. Mas qualquer que seja o nome que se lhe dê, a era iniciada no final de 1945 caracterizou-se por ser um período extremamente agitado, em que a normalidade democrática foi constantemente quebrada pelas tentativas de golpes de Estado, praticados por militares e civis.

Nesse período de quase vinte anos, os brasileiros elegeram quatro presidentes. Desses, dois concluíram os cinco anos de governo, um se matou durante o mandato e outro renunciou à presidência, apenas sete meses após ter tomado posse. E o período se encerrou, em 1964, com outro golpe militar.

A transição para a democracia. O Governo de Eurico Gaspar Dutra (1946-1951)


Com a deposição de Getúlio Vargas, e na ausência de um Congresso Nacional, assumiu a chefia do governo o presidente do Supremo Tribunal Federal, José Linhares. Sua tarefa básica era realizar as eleições presidenciais que já estavam marcadas para 2 de dezembro de 1945. O resultado das eleições não apresentou surpresas. A vitória do candidato do PSD, Eurico Gaspar Dutra, foi esmagadora: recebeu 55,39% dos votos. O PTB, seguindo orientação de Getúlio Vargas, apoiou Dutra, e esse apoio foi decisivo.
Vargas, aliás, desempenhou, nessa eleição, o papel do “grande eleitor”, pois não só contribuiu decisivamente para a vitória de Dutra, como atraiu votos para o PTB e PSD, ao eleger-se, ele próprio, senador pelos estados do Rio Grande do Sul e São Paulo, e deputado federal por outros sete estados  - uma coisa que parece muito estranha, mas que estava de acordo com as leis da época. Vargas assumiu uma cadeira no Senado, mas sua atuação como parlamentar foi relativamente apagada, pois ele preferiu agir nos bastidores da política, preparando sua volta à presidência.
Dutra foi empossado no dia 31 de janeiro de 1946. Como vemos, os elementos que haviam servido ao Estado Novo ganharam as eleições e se conservaram no poder. Seriam os responsáveis pela redemocratização.
Nas eleições parlamentares, registrou-se uma vitória esmagadora dos dois partidos conservadores, representativos dos interesses da elite: o PSD conquistou 54% das cadeiras e a UDN, 27%. Enquanto isso, o PTB e o PCB obtinham 7,5% e 4,7%, respectivamente.

1. A nova Constituição

Para elaborar a nova Constituição, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal se reuniram para formar o Congresso Constituinte e iniciou seus trabalhos no dia 2 de fevereiro de 1946. Menos de oito meses depois, a Constituição ficou pronta e entrou em vigor no dia 18 de setembro.
O Brasil continuava sendo definido como uma República Federativa, com a tradicional divisão dos três poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário). Foi estabelecida a duração de cinco anos para o mandato do presidente da República, de quatro, para deputado, e de oito anos para senador. O direito de voto foi atribuído aos brasileiros alfabetizados, de ambos os sexos, com mais de 18 anos, ressalvadas algumas exceções.

Veja o leitor que coisa mais esdrúxula: o mandato do presidente seria de 5 ano e o dos deputados, de apenas 4! O Brasil já teve dessas coisas!

Elaborada por uma maioria conservadora, a Constituição estabelecia algumas restrições ao processo democrático. Entre elas, podemos destacar:
·      a manutenção, praticamente inalterada, da estrutura corporativista, criada pelo Estado Novo;
·      limitações ao direito de greve;
·      a proibição do direito de voto ao analfabeto;
·      e a imposição de dificuldades legais para mexer na propriedade da terra, o que dificultava, ou mesmo impossibilitava, uma reforma agrária no país.
·      a manutenção do voto obrigatório, que havia sido introduzido no país com o Código Eleitoral de 1932.

2. A Guerra Fria e suas repercussões no Brasil

Dutra organizou o ministério com a participação dos três maiores partidos (PSD, UDN e PTB), predominando elementos do PSD. Seu governo foi extremamente conservador, tendo adotado internamente uma política antioperária, e externamente uma posição de apoio automático aos Estados Unidos, exatamente quando tinha início a Guerra Fria.
A Guerra Fria foi iniciada logo após o final da Segunda Guerra Mundial e consistiu numa disputa ideológica entre a antiga URSS e os EUA. A primeira queria expandir a área de influência do comunismo, enquanto que os norte-americanos queriam exatamente o contrário. A Guerra Fria teve início oficialmente em março de 1947, num discurso pronunciado pelo presidente norte-americano, Harry Truman.
Nessa ocasião, Truman anunciou que os EUA estavam dispostos a conter, a qualquer preço, o avanço do comunismo internacional, e a intervir militarmente em qualquer país para garantir governos amigos ameaçados. Essa política ficou conhecida pela expressão Doutrina Truman.

Essa posição dos EUA foi acompanhada por todos os países latino-americanos. O compromisso entre eles foi firmado numa reunião realizada no Rio de Janeiro, nos meses de agosto e setembro de 1947, quando foi assinado o Tratado Interamericano de AssistênciaRecíproca (TIAR).

Esse tratado previa que ataque ao território ou à soberania de qualquer um dos países americanos seria revidado pelas forças conjuntas de todos eles.

Pouco depois, na IX Conferência Interamericana, realizada em Bogotá, os EUA lançaram as bases da Organização dos Estados Americanos (OEA). Com esses dois instrumentos, o TIAR e a OEA, os Estados Unidos colocaram a América Latina sob seu controle.

A propósito, há um fato conhecido, que ilustra bem essa nova situação, que merece ser mencionado. O deputado Otávio Mangabeira, da UDN, beijou a mão do general americano Eisenhower, quando este fazia uma visita de cortesia ao Brasil, logo após a Segunda Guerra Mundial (foto). Impossível imaginar servilismo maior!


No contexto da guerra fria, o governo Dutra subordinou-se completamente aos interesses norte-americanos. Esse posicionamento teve efeitos imediatos:
·      o rompimento de relações diplomáticas com a antiga URSS, e
·      a cassação do Partido Comunista e de todos os políticos eleitos por esse partido (1947).

3. A política antioperária

O governo Dutra adotou uma política nitidamente antioperária. Com efeito, com a justificativa de combater a inflação, o governo adotou medidas de contenção salarial. A consequência foi uma queda acentuada no poder aquisitivo dos salários, como se pode ver na tabela abaixo. Em protesto, os trabalhadores urbanos faziam manifestações e greves, que o governo reprimia com dureza, inclusive decretando a intervenção em grande número de sindicatos.

Salário mínimo real - Guanabara e São Paulo
Índices (Base – 1944 = 100) em %

Ano

Guanabara
São Paulo
1946
74,1
70,9
1947
60,1
53,9
1948
58,0
49,6
1949
55,4
50,4
1950
50,9
47,9
1951
53,6
53,0
Fonte: Oliveira, F. de A economia brasileira.
São Paulo, Brasiliense/CEBRAP,1976, p. 41

Guanabara era como se chamava o estado brasileiro que ocupava o território do atual município do Rio de Janeiro e existiu entre 1960 e 1975.

Durante o governo Dutra, apesar da inflação, o salário mínimo não teve nenhum reajuste. É por isso que, como mostra a tabela, o poder de compra do salário caiu sem parar. Em 1950, o trabalhador que ganhava salário mínimo comprava praticamente a metade (50,9%) e menos da metade (47,4%) do que podia comprar em 1944.

4. A política econômica do governo Dutra

No início de seu governo, Dutra se afastou do nacionalismo econômico que havia caracterizado o Estado Novo. E adotou um amplo liberalismo, abrindo o mercado brasileiro às mercadorias estrangeiras. O governo justificava essa abertura com a necessidade de combater a alta de preços que vinha acontecendo.
O governo Dutra também se afastou do modelo getulista ao abandonar a preocupação com a industrialização. Nesse aspecto, a mentalidade do novo governo pode ser avaliada pelas palavras do Ministro da Fazenda:

É da essência da economia latino-americana (incluindo o Brasil) certa concentração de esforços na exportação de matéria-prima e de gêneros alimentícios, bem como na importação de ampla variedade de artigos manufaturados e de comestíveis industrializados.[1]

Como se pode ver, era a mesma mentalidade dos governos da República Velha.

Como consequência dessa política, ocorreu um brusco aumento das importações, muitas vezes de mercadorias supérfluas, tais como casacos de pele, comida para cachorro, e até televisores, quando ainda não havia estação de TV no Brasil. Isso fez com que a reserva de divisas (moedas fortes), acumulada durante a guerra, rapidamente se esgotasse, caindo de 708 milhões para 92 milhões de dólares.

A partir de junho de 1947, o governo teve de introduzir uma mudança brusca na política econômica. E adotou um rigoroso controle seletivo sobre as importações, privilegiando as mais indispensáveis ao parque industrial, que tinha de produzir as mercadorias que deixavam de ser importadas. Essas medidas geraram uma “industrialização espontânea”, algo parecido com o que ocorrera depois de 1930.

Graças a isso, a economia brasileira cresceu, e pôde exibir a notável média 8% de crescimento do PIB, ao ano, entre 1948 e 1950. [2]

A mesma necessidade de restringir os gastos externos levou o governo Dutra a controlar os gastos públicos internos. Em função disso, Dutra chegou a esboçar uma tentativa de planejamento econômico.

Em maio de 1947, ele lançou um programa de investimentos em alguns setores, que ficou conhecido como PlanoSalte (Saúde, Alimentação, Transporte e Energia). Mas o plano não chegou a ser inteiramente aplicado e foi abandonando no início do governo seguinte.

5. A sucessão presidencial

Em 1950, teve início a campanha para eleger o novo Presidente da República. Por insistência de Dutra, o PSD indicou Cristiano Machado, um político mineiro de pouca expressão. A UDN apresentou, pela segunda vez, o nome do brigadeiro Eduardo Gomes, que teve o apoio do antigo líder integralista Plínio Salgado. O pequeno PSB concorreu com João Mangabeira. Mas o candidato mais importante, sem dúvida, foi Getúlio Vargas.

Ele ganhou a eleição com relativa facilidade, graças às alianças que conseguiu articular. Além do PTB, seu próprio partido, obteve o apoio de uma expressiva ala do PSD, e do PSP (Partido Social Progressista), controlado por Ademar de Barros, um político populista de São Paulo. Inclusive uma parcela dos comunistas votou em Vargas, apesar de o PCB ter recomendando aos seus simpatizantes o voto em branco.

Vargas obteve 48,7% dos votos, e pôde dizer que voltava à presidência “nos braços do povo”. Mas a UDN tentou, na justiça, anular a eleição, alegando que Getúlio não obtivera a maioria absoluta dos votos. Mas foi um recurso inútil, pois a Constituição não fazia essa exigência.





[1] Apud Skidmore, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, p. 97.
[2] Cf. Fausto, Boris. Op. cit., p. 405.

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