terça-feira, 20 de outubro de 2015

O  GOVERNO  GOULART  E  O GOLPE  DE 1964


O governo de João Goulart nasceu, viveu e morreu sob a ameaça do golpe de Estado. A crise que se abrira com a renúncia de Jânio Quadros havia sido momentaneamente superada, como vimos, com a adoção do sistema parlamentarista. Mas o clima de tensão iria permanecer e se agravar, levando ao desfecho dramático do golpe militar de março de 1964.

1. A fase parlamentarista

O Brasil teve três primeiros-ministros, em pouco mais de um ano. Depois de Tancredo Neves, ocuparam o cargo Brochado da Rocha e Hermes Lima, sucessivamente. E, na verdade, eram poucos os que estavam interessados em que o parlamentarismo desse certo. Por isso, logo teve início uma campanha para antecipar o plebiscito, que estava marcado para 1965. A campanha contava com o apoio dos políticos mais poderosos, incluindo o próprio João Goulart. Por fim, a pressão pela antecipação prevaleceu, e o Congresso Nacional a aprovou e o plebiscito foi marcado para o dia 6 de janeiro de 1963.

Houve uma grande campanha pelo NÃO (não, ao parlamentarismo). O parlamentarismo praticamente não teve defensores, pois todos os grandes líderes políticos da época (Leonel Brizola, Carlos Lacerda, etc.) eram presidencialistas, já que todos queriam ser candidatos a presidente em 1965. E o povo, numa proporção de 5 votos a 1, optou pela volta do presidencialismo.

2. A fase presidencialista

Ao iniciar a nova fase como chefe de um governo presidencialista, Jango ainda tinha três anos para tentar uma solução para dois problemas econômicos que, mais de perto, infernizavam a vida dos brasileiros:

  • aceleração inflacionária: 47,8% em 1961 e 51,6% em 1962;
  • desaceleração do crescimento: 10,3% em 1961 e 5,3% em 1962.


Para enfrentá-los, colocou em prática um programa de governo, chamado Plano Trienal, elaborado pelo economista Celso Furtado, ministro do Planejamento. Esse plano constituía-se de duas partes:

  • um programa econômico de estabilização da moeda
  • um programa de reformas estruturais, que foram denominadas reformas de base (agrária, tributária, administrativa, urbana, educacional).


Como programa de estabilização, não diferia dos programas monetaristas (ou ortodoxos) anteriores. E encontrou as mesmas dificuldades, pois propunha medidas impopulares. Previa conseguir o equilíbrio das contas públicas, aumentando a arrecadação e cortando despesas. Esse propósito, porém, logo fracassou, porque o funcionalismo público pressionou o governo e obteve um reajuste de 70% nos salários. Além disso, o sucesso do plano dependia de setores - credores estrangeiros e o governo dos EUA - que não tinham desejo de colaborar com o governo nacionalista de João Goulart.

Poucos meses depois, o plano de estabilização havia fracassado e foi abandonado. A inflação continuou se acelerando, ao mesmo tempo em que se acentuava a queda no crescimento econômico.

Perdida a luta nessa frente, Jango então adotou uma postura mais de esquerda e passou a tomar medidas cada vez mais radicais na linha do nacionalismo. Voltou-se, então, para as reformas de base, consideradas necessárias para eliminar os chamados “pontos de estrangulamento”, que impediam o natural desenvolvimento econômico do país. Eram, porém, reformas que dependiam de aprovação do Congresso Nacional, e, delas, a mais importante era a reforma agrária, que se justificava por dois motivos:

  • econômico: faria aumentar a produção agrícola e criaria um mercado interno consumidor mais amplo para bens manufaturados;
  • social: faria uma distribuição mais justa das terras e contribuiria para aliviar as tensões sociais.


Mas propor a reforma agrária era muita ousadia de Jango. Afinal nunca antes um governante brasileiro ousara tocar na propriedade fundiária brasileira. E Jango ousou. Propôs ao Congresso uma lei de reforma agrária, bem como outras medidas nessa linha do nacionalismo getulista, destacando-se:

  • a promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural, que estendia ao campo os benefícios dos trabalhadores urbanos;
  • o fortalecimento da política externa independente, desafiando os EUA;
  • o cumprimento mais rigoroso da Lei de Remessa de Lucros, aprovada em 1962.


3. A radicalização política

Todas essas medidas, combatidas por uns e defendidas por outros, levaram ao máximo a agitação política, refletindo um amadurecimento das lutas sociais no país. Contra o conservadorismo das elites, que teimavam em manter as velhas estruturas, estavam os setores explorados da população, os trabalhadores do campo e da cidade.

Os trabalhadores rurais emergiram no cenário das lutas sociais e políticas, da época, rompendo uma secular passividade, raramente quebrada no passado. Segundo Boris Fausto, esse fenômeno se explicaria pela crescente urbanização e pela rápida industrialização das últimas décadas.

A terra passou a ser mais rentável do que no passado, e os proprietários trataram de expulsar antigos posseiros ou agravar suas condições de trabalho, o que provocou forte descontentamento entre a população rural. Além disso, as migrações aproximaram campo e cidade, facilitando a tomada de consciência de uma situação de extrema submissão, por parte da gente do campo.

Mobilizando os trabalhadores do campo, organizando suas lutas, atuavam algumas entidades políticas, favoráveis às reformas sociais no país. Uma delas foram as Ligas Camponesas, que surgidas no Pernambuco em 1955, vinham crescendo e se espalhando para outros estados, lutando contra a violência e a exploração no campo. Seu líder principal era o advogado e político de Pernambuco, Francisco Julião.

Outros que atuavam junto aos camponeses eram os comunistas e uma ala reformista da Igreja Católica, que preferiam criar e fortalecer os sindicatos rurais, como instrumentos de luta. Culminando o processo de organização no campo, em dezembro de 1963, foi fundada a CONTAG (Confederação dos Trabalhadores na Agricultura).

Os operários, por seu lado, já tinham experiência de mobilização e organização desde os tempos da República Velha. No início da década de 1960, as entidades sindicais, lideradas por comunistas e trabalhistas, haviam se tornado extremamente combativas.

Um dado ilustrativo a esse respeito é o número de greves, que passaram de 31, em 1958, para 172, em 1963. E ultimamente o movimento operário vinha mudando de qualidade, e a prova disso é que as greves assumiam, cada vez mais, um caráter político, evidenciando a politização da luta social no Brasil.

O ponto alto desse avanço foi a fundação do CGT (Comando Geral dos Trabalhadores), em dezembro de 1962.

O que ficou dito a respeito dos trabalhadores, rurais e urbanos, vale para os demais grupos sociais, todos tendendo para algum grau de politização, mobilização e organização, na defesa de seus interesses imediatos ou convicções políticas.

A politização da sociedade, em condições extremas de injustiça social, levava a política populista a alcançar rapidamente seu limite, e colocar a sociedade brasileira diante de um impasse. O passo seguinte era absolutamente incerto, pois dificilmente a solução, qualquer que fosse, trilharia pelo caminho da normalidade democrática.

4. A divisão das forças políticas

Uma parcela grande da população tomou posição e se organizou ou para defender ou para combater o governo Goulart. Apareceram várias entidades. As principais forças em conflito eram:

I) a favor do governo:     
  • Frente Parlamentar Nacionalista (FPN) - funcionava no Congresso Nacional e reunia parlamentares de diferentes partidos, no apoio às reformas nacionalistas;
  • Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT) - uma central sindical surgida em 1962, que apesar de proibida, tinha grande atuação;
  • Confederação dos Trabalhadores Agrícolas (CONTAG) - que representava os trabalhadores do campo;
  • União Nacional dos Estudantes (UNE) - que representava os estudantes universitários, e apoiava as mudanças sociais no país;
  • Ligas Camponesas - que lutavam pela reforma agrária e tinham grande atuação no Nordeste.


II) contra o governo:

  • Ação Democrática Parlamentar (ADP) - funcionava no Congresso e reunia parlamentares conservadores de diferentes partidos;
  • IPES/IBAD, complexo formado por duas entidades: Instituto de Pesquisas Sociais e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática. Este último, integrado por setores dominantes da sociedade (empresários, Igreja, militares, etc.), reunia recursos para financiar estudos, ações e organizações direitistas, procurando desestabilizar o regime populista. Uma ação importante era o financiamento de políticos conservadores nas eleições.
  • chefes militares, Embaixada dos EUA, a Igreja, etc.


A imprensa desempenhava evidentemente um papel importante. A grande imprensa, de um modo geral, não apoiava Goulart, e até o combatia. Os mais importantes eram: O Estado de São Paulo, O Globo, Diários Associados e Tribuna da Imprensa. Já os jornais que apoiavam o presidente, ao contrário, eram poucos. Entre estes, sobressaia-se o diário Ultima Hora, que pertencia ao jornalista Samuel Weiner.

Os políticos de direita mais influentes eram Carlos Lacerda (RJ), Ademar de Barros (SP) e Magalhães Pinto (MG). Entre os líderes de esquerda, destacavam-se Leonel Brizola (Sul), Miguel Arraes e Francisco Julião (Nordeste).

Goulart era combatido pela direita, que o acusava de corrupção, de estar preparando um golpe ou de estar levando o país para o comunismo. A esquerda também não confiava completamente em Goulart, que afinal era um político populista, um burguês muito rico e um líder hesitante e moderado demais.

5. O comício de 13 de março

Goulart sentiu que precisava de um apoio popular mais firme para avançar seu programa de reformas, e optou pela realização de grandes concentrações de massa, nas quais anunciaria a adoção de medidas reformistas. Com esse intuito, programou um comício para o dia 13 de março.

Também chamado de “Comício das Reformas”, representou a verdadeira guinada de Goulart para a esquerda. Foi realizado no Rio de Janeiro, com amplo apoio oficial e reuniu cerca de 200 mil pessoas. Líderes populistas fizeram discursos radicais.

O último a discursar foi o próprio presidente, que naquela ocasião se fazia acompanhar de sua esposa, Maria Teresa, numa de suas raras aparições em eventos políticos. Ali mesmo, sobre o palanque, Goulart assinou dois decretos: um nacionalizando refinarias de petróleo e outro desapropriando terras para fins de reforma agrária.


Jango, ao lado da mulher, Maria Tereza, discursa no comício do
dia 13 de março de 1964, no Rio de Janeiro.

Era uma atitude muito arriscada do presidente, pois estava provocando a direita, sem contar com o apoio seguro da esquerda que, por sua vez, estava dividida em várias facções. Sem dúvida, Jango e a esquerda superestimavam suas forças.

Se a esquerda estava dividida e estava sendo apressada, a direita, ao contrário, estava unida e agia com calma, fazendo seus preparativos para um golpe. Sob a liderança do general Castello Branco, chefe do Estado Maior do Exército, os golpistas tratavam de conseguir a adesão daqueles chefes militares que ainda duvidavam da necessidade de quebrar a legalidade e derrubar o presidente.

6. A ofensiva golpista e o Golpe de Março de 1964

Em resposta ao comício de 13 de março, a direita intensificou os preparativos para o golpe e iniciou uma série de manifestações em todo o Brasil, começando, em São Paulo, pela “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, que reuniu cerca de 500 mil pessoas. A finalidade dessas manifestações era criar o clima propício para o golpe.


"Marcha da Família", dia 19 de março de 1964, em São Paulo.

O consenso entre os militares para a necessidade de intervenção foi finalmente alcançada no dia 26 de março, quando ocorreu a chamada “Revolta dos Marinheiros”. Mais de mil marinheiros e fuzileiros navais fizeram uma assembleia não-autorizada, no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro. Nessa ocasião, Goulart, sob pressão dos marinheiros, mudou o ministro da Marinha, numa evidente quebra da hierarquia militar. Esse fato selou a sorte do presidente. Os conspiradores marcaram a data do golpe: 2 de abril.

Mas o golpe começou antes. Há controvérsias sobre a data exata do início do golpe, mas não se pode negar o fato de que, na madrugada de 31 de março, o general Mourão Filho [1] (Comandante da IV Região Militar-MG) ordenou às suas tropas que se movimentassem em direção ao Rio de Janeiro.




Outros comandos militares aderiram. O general Amauri Kruel, comandante do poderoso II Exército, sediado em São Paulo, se dispôs a apoiar Goulart, mas exigiu que o presidente retirasse seu apoio a algumas entidades consideradas subversivas (a UNE, por exemplo), mas não foi atendido. Diante da negativa de Goulart, o general Kruel também aderiu ao golpe. A sorte do presidente estava selada. 

Diante do levante militar, Goulart não esboçou qualquer reação. Do Rio de Janeiro, onde se encontrava, voou para Brasília e, de lá, para o Rio Grande do Sul, onde Brizola tentou, sem sucesso, convencê-lo a reagir. Em seguida, Goulart exilou-se no Uruguai. A facilidade com que a República Populista foi derrubada surpreendeu até os próprios golpistas, que haviam se preparado para enfrentar resistência.

No dia 1º. de abril, o Congresso Nacional declarou vaga a presidência da República. Era um ato ilegal, pois o presidente Goulart ainda se encontrava em território nacional. No dia 2, o presidente da Câmara, Ranieri Mazzili, tomou posse como presidente da República. Poucas horas depois, o presidente dos EUA enviava um telegrama saudando o novo governo brasileiro. O golpe, que a UDN sempre desejara, havia finalmente triunfado.

7. Conclusões

No governo Goulart, o movimento popular esteve, pela primeira vez na história do Brasil, próximo de chegar ao poder. A liderança desse movimento esperava que a burguesia nacional desse apoio ao programa de reformas, o que não aconteceu. A pretendida aliança de classes (trabalhadores e burguesia nacional) nunca ocorreu, mesmo porque a burguesia preferiu aliar-se ao capital multinacional.
Para o sucesso do golpe, um papel importante coube às elites e setores das classes médias. Por não aceitarem a crescente radicalização política do movimento popular e preferiram apoiar a derrubada do governo. O novo regime, implantado pelos militares, iria realizar, de cima para baixo, a “modernização conservadora”, evidentemente, sem a participação do movimento popular.

Era inevitável a derrota do movimento popular em 1964?

O historiador Jacob Gorender acha que não. Escreve ele:

No dia 31 de março, a situação não era ainda favorável aos golpistas do ponto de vista estritamente militar. Teria sido possível paralisar o golpe se, ao menos, alguma ação viável de contra-ofensiva imediata fosse empreendida. Sabe-se que Lacerda só contava com defesa muito precária no Palácio Guanabara. A tomada do Palácio pelos fuzileiros navais seria operação relativamente rápida e de enorme repercussão moral. O mesmo efeito de paralisia teria a dispersão dos recrutas que desciam de Minas, por uma esquadrilha de aviões de bombardeio.
“A força-tarefa naval dos Estados Unidos, mobilizada no Caribe pela operação chamada Operação Brother Sam, não alcançaria Santos antes de 11 de abril. Não trazia contingentes de desembarque e o seu objetivo era o do efeito demonstração e o apoio  aos insurretos com armas, munições e combustível, na previsão de guerra civil prolongada. Já envolvidos na escalada da guerra do Vietnã, não seria fácil aos Estados Unidos manterem uma segunda frente no Brasil. Havia tempo para preparar condigna recepção de repúdio à força-tarefa norte-americana, tanto do ponto de vista militar como da mobilização das massas populares... Houve a possibilidade de vencer, mas foi perdida. Mais grave é que foi perdida de maneira desmoralizante... [2]

Mas Gorender certamente faz uma análise muito otimista. Pensando com realismo, e com a perspectiva do tempo, é forçoso admitir que a derrota da esquerda era inevitável.

Primeiro, porque o governo Goulart estava desgastado pela crise e por isso não contava com suficiente apoio popular. Segundo, o dispositivo sindical tinha uma capacidade limitada de mobilização dos trabalhadores. Por isso, quando o CGT ordenou uma greve geral contra o golpe, a greve não ocorreu. Em terceiro lugar, a esquerda estava dividida. A esse respeito, é ilustrativo o texto abaixo, com o depoimento de um dirigente sindical.

Hércules Corrêa, comunista e dirigente do CGT na época, admitia que o governo Jango precisa de uma trégua e não de uma greve atrás da outra”. E se referia às pressões sofridas pelo governo, que mesmo vindas dos setores que o apoiavam, contribuíam para sua desestabilização. Sobre o comício de 13 de março, ele declarou:

Quando o comício terminou e foi todo mundo embora fiquei para dar ordens (desmontar o palanque, etc.). Olhava tudo aquilo - faixas, cartazes pelo chão - o vazio aumentou em mim. O sentido da derrota foi de tal ordem que me deu vontade de chorar. Parecia que eu tinha terminado uma batalha em que tinha sido dizimado. Muita gente saiu dali eufórica, mas eu tinha a exata noção da nossa divisão. Era impossível superá-la.[3]

A chance de fazer frente ao golpe dependeria de uma divisão nas Forças Armadas. Mas ocorreu justamente o contrário. Enquanto a esquerda permaneceu dividida, a direita havia encontrado uma liderança indiscutível, a do general Castello Branco, que conseguiu unir todas as forças golpistas.





[1] Esse general era o mesmo que em 1937, quando ainda era capitão, elaborou o Plano Cohen.
[2] Gorender, Jacob. O Combate nas trevas. São Paulo, Ática, 1987, p. 66-67.
[3] Citado por Nadai, E. e Neves, J. História do Brasil. São Paulo, Saraiva, 1995, p. 380

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