DO TRABALHO ESCRAVO AO TRABALHO ASSALARIADO
NOS CAFEZAIS
PAULISTAS, OS 'ESCRAVOS BRANCOS'
Arquivos suíços mostram que imigrantes
chegavam ao Brasil com dívidas 'impagáveis'. Jamil Chade,
(http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,nova-noticia,1740669. Acesso em 08 Agosto 2015)
A longa transição da economia brasileira de um modelo
escravagista para a abolição criou situações inesperadas aos próprios europeus que,
por anos, haviam financiado e lucrado com o tráfico de africanos para as
Américas: o surgimento de “escravos brancos” nos cafezais brasileiros.
Documentos dos arquivos diplomáticos suíços obtidos pelo Estado revelam
que milhares de imigrantes que chegaram ao Brasil para trabalhar nas fazendas
de café acabaram se transformando, na opinião de seus governos, em “escravos”.
Os casos abriram uma crise diplomática entre a Suíça e o imperador d. Pedro II,
além de revoltas em algumas fazendas e a emissão de um decreto no país alpino
proibindo os suíços de emigrarem para o Brasil.
A situação, porém, não foi criada apenas pelos fazendeiros
brasileiros, mas também pelos governos locais na Suíça, que levaram milhares de
pessoas a optar pela emigração como forma de resolver os problemas internos de
pobreza que sofriam as regiões rurais do país. Para isso, fizeram empréstimos a
idosos, crianças órfãs e até para cegos que, com seu trabalho no “Novo Mundo”,
teriam como quitar as dívidas.
O centro da crise foi o sistema de parceria promovido pelo
senador Nicolau Pereira de Campos Vergueiro. Diante da decisão do Reino Unido
de proibir o comércio de escravos entre a África e a América em 1845, o preço
dos escravos africanos explodiu e passou-se a buscar alternativas. Uma delas
foi o sistema criado na Fazenda Ibicaba, em Limeira (SP), em que europeus foram
convidados a se mudar ao Brasil para trabalhar. Eram os colonos.
Para chegar aos potenciais interessados, a empresa do
senador, a Vergueiro & Cia, multiplicou escritórios pela Europa para
oferecer o esquema de trabalho. Representações foram estabelecidas em Portugal,
Alemanha e Suíça. A oferta parecia generosa para os agricultores em uma
situação complicada na Europa: a passagem e parte dos custos seriam cobertos
pelos empresários e os suíços pagariam essas despesas ao longo de meses, com
trabalho.
O que rapidamente os colonos suíços descobriram é que
haviam se transformado em escravos, com dívidas impagáveis. Tinham de comprar a
comida dos fazendeiros, pagar pela hospedagem e eventuais remédios, além da
passagem em navios até o Brasil. Além disso, a empresa que os trazia, a
Vergueiro, cobrava uma taxa de juros de 6%. Não demorou para que o governo
suíço pedisse esclarecimentos por parte do Brasil e até apelar ao “humanismo de
d. Pedro II”.
‘Generosidade’.
No dia 8 de junho de 1857, o cônsul da Suíça no Rio de Janeiro, Henri David,
alertava o Itamaraty sobre a situação em uma carta com tom acusatório. “Alguns
ambiciosos pensam em introduzir no Brasil a servidão dos brancos para
substituir a escravidão dos negros”, atacou.
Segundo ele, foram os “próprios agentes diplomáticos do
Brasil no exterior que protegeram os esforços para se obter colonos” e Berna
teria “confiado na generosidade do Brasil”. Mas, de acordo com o diplomata, os
suíços que optaram por emigrar estavam sendo “oprimidos em São Paulo”.
Numa carta de 2 de dezembro de 1857, o Conselho Federal
suíço – o Poder Executivo – exigiu uma solução para a crise ao ministro do
Império, Pedro de Araújo Lima, o Marquês de Olinda. Lembrando que muitos dos
imigrantes descobrem a “desilusão” ao chegar ao Brasil depois de terem sido
convencidos por “ofertas brilhantes”, o governo suíço apelava à ajuda do Rio de
Janeiro. “Ficamos emocionados com a descrição do sofrimento de nossos
concidadãos”, apontou a carta.
O texto se queixava do fato de que, apesar de pedidos
feitos antes por diplomatas suíços, “os resultados ainda se fazem esperar”.
“Não podemos perseverar num silêncio”, indicou.
O governo apontava que, em três ou quatro anos de trabalho,
as dívidas dos colonos dobravam. “Esse resultado diz mais que qualquer outro
argumento”, afirmou. “Pedimos a intervenção poderosa do governo de Sua
Majestade o imperador (d. Pedro II), para que os colonos suíços contratados
pelos senhores Vergueiro et Cie sejam liberados de sua escravidão e
transportados para terras do Estado”, apelava o governo suíço.
![Resultado de imagem para fazenda ibicaba](https://encrypted-tbn3.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcT061OhYMRNJle_uywJlk1Ml8thGJdVJsCRy6FZkR05a2b4_u81Gw) |
Fazenda Ibicaba. |
Naquele mesmo ano, na Fazenda Ibicaba, uma revolta dos
colonos suíços deixaria claro o mal-estar e seria um primeiro sinal dos
problemas que o modelo de produção poderia enfrentar.
Sem efeito. O
apelo não surtiu efeito. No dia 5 de abril de 1859, o cônsul da Suíça no Pará,
L. Brélaz, enviava uma nova carta ao governo em Berna para “denunciar as
condições dos emigrantes suíços no Brasil”.
“A abolição do tráfico de escravos neste império torna cada
vez mais sensível a falta de braços para a agricultura e outros setores da
indústria e a necessidade de buscar a imigração estrangeira”, explicou. Segundo
ele, os colonos nada mais eram do que pessoas “empregadas por especuladores”.
Um ano depois, a situação ganhava contornos de uma crise
diplomática sem precedentes na relação entre os dois países. Para vistoriar a
situação dos emigrantes, o Parlamento suíço decidiu enviar ao Brasil o deputado
Jacob von Tschudi. Ao retornar a Berna e apresentar seu informe no dia 6 de
outubro de 1860, sua descrição das condições aterrorizaram a imprensa local, e
obrigou o governo a impedir o fluxo de suíços ao Brasil.
Mas, para a surpresa de muitos no governo, o deputado
apontaria que a culpa não era apenas do Brasil. Parte da responsabilidade seria
também dos governos de cantões, como Unterwalden, Grisons e Argovie. Entre 1798
e 1850, cerca de 100 mil suíços abandonaram o país para emigrar pelo mundo.
Para as autoridades, financiar a saída dessas pessoas chegava a ser mais
vantajoso do que buscar soluções. “Essa medida teve para os colonos um impacto
funesto”, escreveu Tschudi.
O relator aponta que os problemas iam além e que os
governos suíços de cada um dos cantões também adotaram práticas “deploráveis”.
“Para se livrar de indivíduos incapazes, eles os ajuntaram aos que iam partir e
mesmo a outras famílias”, escreveu o relator.
Fortuna. Tschudi,
porém, deixa claro que os suíços que foram ao Brasil sem a carga de dívidas
conseguiram se transformar em “homens ricos”. “A melhor prova de que nem todos
os colonos estão fortemente endividados é o fato de que quase todos aqueles que
viajaram sem empréstimo já estão livres (de seus fazendeiros) há vários anos”,
indicou.
Segundo o relator, aqueles que conseguiram trabalhar
“possuem no momento presente e sem exceção uma bela fortuna, já que na
Província de São Paulo todos os homens trabalhadores e que não mergulham em
dívidas acham uma forma de ganhar dinheiro e fazer fortuna”.
Até o fim dos anos 1870, o sistema havia terminado diante
dos problemas e conflitos que gerava. A situação chegou a ser tratada por
Sérgio Buarque de Hollanda, que indicou que o sistema pode ter fracassado por
conta de os fazendeiros “não entenderem as finalidades do trabalho livre”, o
que também explicava a longa tradição escravista.
O historiador brasileiro traduziu nos anos 50 uma obra de
Thomaz Davatz, um líder religioso suíço, que havia feito um relato daquela
situação vivida por seus concidadãos. Parte da “desilusão” dos suíços, porém,
estava relacionada com o fato de a promessa de se transformarem em
proprietários não ter vingado.
Em 1933, Mário de Andrade chegou a considerar o livro de
Davatz como um dos mais importantes para se entender a história social do
Brasil. Para ele, a obra seria a “primeira a revelar especificamente a luta de
classes e reivindicações proletárias no Brasil”.
Estimativas apontam que o senador
Vergueiro e seus filhos enriqueceram importando 60 mil imigrantes. Os mesmos
que fizeram parte de uma parcela da construção econômica do Brasil e da
miscigenada sociedade de um País em formação naquele momento.