MULATO
Sérgio Rodrigues
O termo 'mulato' nasceu racista, mas sem ele é difícil entender o Brasil
A
palavra "mulato(a)" está na berlinda. Rebola no centro da polêmica às
vésperas daquele que promete ficar na história como o Carnaval PC
("politicamente correto", claro, e não "Partido Comunista"
ou "computador pessoal").
No
pente fino que alguns ativistas passam em marchinhas consagradas à cata de
vestígios de preconceito, a palavra tem sido tratada como piolho. Anda com fama
de racista. Será?
Começo
por varrer da avenida e jogar no lixo o argumento autoritário de que, não sendo
mulato (há controvérsia), devo ficar calado no meu canto. É inaceitável.
Um
axioma PC tão difundido quanto tolo sustenta que cabe apenas a quem se sente
ofendido dizer o que é ofensivo, o que justificaria o fato de nazistas se
ofenderem com a existência de judeus. Não. Decidir o que é ofensivo requer um
concerto social de vozes. Vamos em frente.
Filha
de uma época escravocrata (século 16), é inegável que a palavra
"mulato" nasceu racista. Seu parentesco com "mula" é um
fato. O elo entre o animal e a pessoa mestiça de branco e negro se deu pela
ideia de hibridismo. O latim "mulus" já designava o produto –estéril–
do "cruzamento do cavalo com a jumenta, ou da égua com o jumento"
(Houaiss).
Como
se vê, ninguém chamou propriamente o mulato de burro, mas isso não atenua o
pecado original da palavra. Dificilmente uma associação entre pessoas e muares
teria prosperado sem o adubo racista.
Entre
essa constatação etimológica e a revolta de setores do movimento negro contra
"mulato", contudo, há uma distância. Se qualquer um pode
problematizar (termo da moda) o que quiser, problematizar a problematização não
é menos saudável.
Palavras
mudam. "Rapaz" é primo de "rapina": era o salteador.
"Brasileiro" já foi o nome pejorativo dos nativos desta terra. Em
mais de quatro séculos, o vocábulo "mulato" se encharcou tanto de
história que hoje seria impossível descartá-lo sem uma grave perda cultural.
Desde
que Gilberto Freyre enterrou o racismo pseudocientífico da eugenia, exaltando a
miscigenação, o "mulatismo cultural" virou marca de identidade
nacional. A impureza como destino, a mistura como salvação contra a
intolerância crescente do mundo. Nossa melhor arte o confirma.
Claro
que nada disso é simples. Como apontam os críticos do mulatismo, ele também
pode mascarar conflitos e atenuar tensões num país em que até hoje há quem
defenda esta ideia espantosa: "Não existe racismo no Brasil".
O
Brasil é racista, mas de um racismo meândrico muito diferente do americano, no
qual negro é negro, branco é branco e a mulata não é a tal. E vem de lá o
modelo –ululantemente racista– segundo o qual basta ter "uma gota" de
sangue negro para ser negro. Não mulato, não mestiço, nada de nuance. Negro.
A
importação desse trator conceitual é avanço? Retrocesso? Meio a meio? Ninguém
disse que seria simples. De todo modo, acho recomendável ir devagar nessa hora,
nem que seja em respeito ao sábio mandamento carnavalesco de João Bosco e Aldir
Blanc: "Não põe corda no meu bloco!"
Baixando
o volume da gritaria, talvez a gente consiga distinguir na cantoria vinda do
bloco que desfila na rua ao lado o potencial libertário dos versos mulatos de
Martinho da Vila: "José do Patrocínio/ Aleijadinho/ Machado de Assis que
também era mulatinho/ Salve a mulatada brasileira!"
(http://www1.folha.uol.com.br/colunas/sergio-rodrigues/2017/02/1857083-o-termo-mulato-nasceu-racista-mas-sem-ele-e-dificil-entender-o-brasil.shtml#_=,
acesso em 15/fev/2017)
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