quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

MULATO

Sérgio Rodrigues

O termo 'mulato' nasceu racista, mas sem ele é difícil entender o Brasil
A palavra "mulato(a)" está na berlinda. Rebola no centro da polêmica às vésperas daquele que promete ficar na história como o Carnaval PC ("politicamente correto", claro, e não "Partido Comunista" ou "computador pessoal").
No pente fino que alguns ativistas passam em marchinhas consagradas à cata de vestígios de preconceito, a palavra tem sido tratada como piolho. Anda com fama de racista. Será?
Começo por varrer da avenida e jogar no lixo o argumento autoritário de que, não sendo mulato (há controvérsia), devo ficar calado no meu canto. É inaceitável.
Um axioma PC tão difundido quanto tolo sustenta que cabe apenas a quem se sente ofendido dizer o que é ofensivo, o que justificaria o fato de nazistas se ofenderem com a existência de judeus. Não. Decidir o que é ofensivo requer um concerto social de vozes. Vamos em frente.
Filha de uma época escravocrata (século 16), é inegável que a palavra "mulato" nasceu racista. Seu parentesco com "mula" é um fato. O elo entre o animal e a pessoa mestiça de branco e negro se deu pela ideia de hibridismo. O latim "mulus" já designava o produto –estéril– do "cruzamento do cavalo com a jumenta, ou da égua com o jumento" (Houaiss).
Como se vê, ninguém chamou propriamente o mulato de burro, mas isso não atenua o pecado original da palavra. Dificilmente uma associação entre pessoas e muares teria prosperado sem o adubo racista.
Entre essa constatação etimológica e a revolta de setores do movimento negro contra "mulato", contudo, há uma distância. Se qualquer um pode problematizar (termo da moda) o que quiser, problematizar a problematização não é menos saudável.
Palavras mudam. "Rapaz" é primo de "rapina": era o salteador. "Brasileiro" já foi o nome pejorativo dos nativos desta terra. Em mais de quatro séculos, o vocábulo "mulato" se encharcou tanto de história que hoje seria impossível descartá-lo sem uma grave perda cultural.
Desde que Gilberto Freyre enterrou o racismo pseudocientífico da eugenia, exaltando a miscigenação, o "mulatismo cultural" virou marca de identidade nacional. A impureza como destino, a mistura como salvação contra a intolerância crescente do mundo. Nossa melhor arte o confirma.
Claro que nada disso é simples. Como apontam os críticos do mulatismo, ele também pode mascarar conflitos e atenuar tensões num país em que até hoje há quem defenda esta ideia espantosa: "Não existe racismo no Brasil".
O Brasil é racista, mas de um racismo meândrico muito diferente do americano, no qual negro é negro, branco é branco e a mulata não é a tal. E vem de lá o modelo –ululantemente racista– segundo o qual basta ter "uma gota" de sangue negro para ser negro. Não mulato, não mestiço, nada de nuance. Negro.
A importação desse trator conceitual é avanço? Retrocesso? Meio a meio? Ninguém disse que seria simples. De todo modo, acho recomendável ir devagar nessa hora, nem que seja em respeito ao sábio mandamento carnavalesco de João Bosco e Aldir Blanc: "Não põe corda no meu bloco!"
Baixando o volume da gritaria, talvez a gente consiga distinguir na cantoria vinda do bloco que desfila na rua ao lado o potencial libertário dos versos mulatos de Martinho da Vila: "José do Patrocínio/ Aleijadinho/ Machado de Assis que também era mulatinho/ Salve a mulatada brasileira!"