sábado, 24 de outubro de 2015

GOVERNO  DE  JOSÉ  SARNEY  (1985-1990)


 José Sarney chegou à presidência politicamente enfraquecido, com a difícil tarefa de substituir ninguém menos do que Tancredo Neves, o político cujo prestígio popular chegara às nuvens. Seu governo não ia ser nada fácil. E, ainda, tinha de dar posse a um ministério que não havia sido de sua escolha, mas de Tancredo.

Sarney procurou adaptar-se à nova situação, e fazer o que dele se esperava. No campo político era necessária a imediata revogação das leis autoritárias do regime militar, ainda em vigor - o chamado “entulho autoritário”- e a adoção de medidas que promovessem a rápida redemocratização do país: restabelecimento das eleições diretas para presidente, concessão do direito de voto aos analfabetos, legalização dos partidos ainda proibidos (PCB e PC do B), reatamento de relações diplomáticas com Cuba, etc.

Mas o passo decisivo era a convocação de uma Assembleia Constituinte. Sarney marcou o dia 15 de novembro de 1986 para a eleição e nomeou uma comissão de notáveis para elaborar um projeto de Constituição.

1. Os problemas da economia

No momento em que Sarney assumiu a presidência, a economia continuava o processo de crescimento, iniciado após a recessão de 1981-1983. Em 1984 (o último ano do governo Figueiredo), o PIB havia crescido 4,5% e a balança comercial havia apresentado um superávit recorde: as exportações superaram as importações em US$ 13,1 bilhões. No final desse ano, o volume de reservas em moedas fortes – chamadas divisas - chegava a US$ 9 bilhões. Aparentemente, Sarney estava herdando um país em boa situação econômica.
Havia, porém, outros números que causavam preocupação. A dívida externa havia chegado à casa dos US$ 100 bilhões. Outro dado preocupante era o montante da dívida interna, igualmente enorme. E o pagamento dessas dívidas exigia uma enorme soma de recursos.

Ainda pior do que as dívidas, entretanto, no curto prazo, era o crescimento da inflação. De um índice anual de 99,7%, em 1981, havia pulado para 235%, em 1985. E continuava subindo: no mês de janeiro de 1986, a inflação alcançou 16,2%, o que apontava para um índice anual acumulado de cerca de 400 %.

A inflação havia se transformado num círculo vicioso, desafiando os mecanismos clássicos de controle – leia-se monetaristas -, que teimavam em não funcionar no Brasil.

Os economistas do governo Sarney desenvolveram, então, o entendimento de que a persistência da inflação se devia a um aspecto particular da economia brasileira, ou seja, o seu alto grau de indexação. Quer dizer, todos os preços eram reajustados pelos índices de inflação. A única forma de romper o círculo vicioso era romper a corrente da indexação. E foi isso que o governo tentou fazer, através do congelamento de preços e salários, ao editar o Plano Cruzado.

2. O Plano Cruzado

Em fevereiro de 1986, o país foi surpreendido com o anúncio do Plano Cruzado. Esse plano vinha sendo preparado em sigilo pela equipe econômica do governo, comandada pelo ministro da Fazenda, Dilson Funaro, e pelo ministro do Planejamento, João Sayad. As cláusulas mais importantes eram as seguintes:

  • substituição da moeda: o cruzeiro, com três zeros a menos, daria lugar ao cruzado. Cada 1000 cruzeiros se transformavam em 1 cruzado.
  • abolição da indexação, através do congelamento das hipotecas e aluguéis por um ano e do congelamento dos preços em geral por tempo indeterminado.
  • reajuste do salário-mínimo pelo seu valor médio dos últimos seis meses, acrescido de um abono de 8%.
  • os reajustes posteriores dos salários seriam automáticos, sempre que a inflação acumulasse um índice de 20% - era o chamado “gatilho”.


Moedas Brasileiras. As moedas que já circularam no Brasil foram as seguintes: Mil-Réis (até 1942), Cruzeiro (1942-1967), Cruzeiro-Novo (1967-1970), Cruzeiro (1970-1986), Cruzado (1986-1989), Cruzado Novo (1989-1990), Cruzeiro (1990-1992), Cruzeiro Real (1992-1994), URV-Cruzeiro Real (1994), Real (a partir de 1994).

A aceitação do plano foi imediata, e muitos cidadãos, atendendo a um apelo do presidente, se tornaram fiscais dos preços, denunciando os comerciantes que estavam violando o congelamento. Levavam no peito um botton com a inscrição: “Sou fiscal do Sarney”. A inflação caiu para índices que há muito não eram vistos no Brasil: nos meses de março-abril-maio, a média mensal ficou em 3,4 %.

Mas houve aqueles que criticaram as medidas. Brizola, por exemplo, foi à TV, poucos dias depois do anúncio do plano, e criticou-o impiedosamente. Também o PT e a CUT criticaram o plano com base no argumento de que os salários haviam sido congelados pela média, enquanto os preços o foram pelo pico (ou seja, pelo preço mais alto) e, portanto, o plano era prejudicial aos trabalhadores. Teria, pois, havido um arrocho salarial disfarçado. Nos meses seguintes, ficou provado que esse argumento era falso, pois com a queda da inflação, houve um aumento do poder aquisitivo da população.

3. O fracasso do Plano Cruzado

Passados os primeiros meses de euforia, começaram a aparecer os problemas e, no mês de julho, os pontos falhos do plano já eram bastante visíveis. O mais evidente de todos era o desabastecimento, ou seja, muitas mercadorias começaram a sumir das prateleiras dos supermercados, dos açougues, das padarias. O problema se devia a mais de uma causa:

  • à sonegação de produtos por parte dos fornecedores, que alegavam não poder vender pelos preços da tabela. Essa alegação, pelo menos em parte, era verdadeira, pois muitos produtores, pegos de surpresa pelo congelamento, ficaram com os preços defasados. Esse problema poderia ter sido evitado através das importações, mas naquele tempo o mercado brasileiro era muito fechado, protegido por altas barreiras alfandegárias.
  • ao excesso de demanda, pois os consumidores estavam comprando mais do que antes: uns compravam mais porque o congelamento de preços havia aumentado o poder de compra do dinheiro; outros estavam fazendo estoques, achando que o congelamento não ia durar muito tempo.
Cartas em supermercado inform a falta de margarina: o desabastecimento
doi um dos grandes problemas do Plano Cruzado.


A consequência foi o surgimento do ágio (um valor maior do que o do tabelamento): para conseguir as mercadorias, as pessoas se dispunham a pagar um preço acima da tabela. O caso mais espetacular estava acontecendo com os automóveis novos. Para se comprar um deles, era preciso esperar meses na fila, ou pagar o ágio.  

Ainda em julho, o governo tentou tirar um pouco do excesso de dinheiro em poder das pessoas, e criou um “empréstimo compulsório” de 20 a 25 %, restituível em três anos, sobre os preços dos carros, combustíveis e sobre as passagens aéreas.

Isso, na verdade, era pouco. Para salvar o plano do fracasso inevitável era preciso adotar medidas mais fortes, de efeitos imediatos, tais como corrigir as distorções do plano, fazer ajustes de preços, etc. Mas isso não foi feito: o governo sofreu pressões dos aliados políticos, principalmente do PMDB, para não mexer no congelamento, antes das eleições que se aproximavam.

4. As eleições de 1986, a Constituinte e a Constituição de 1988

A parte mais importante da transição democrática seria, entretanto, a convocação de uma Assembleia Constituinte, para escrever uma nova Constituição, em sintonia com  o processo de redemocratização que o país vivia. Sarney atendeu a essa aspiração nacional marcando a eleição da Assembleia Constituinte para novembro de 1986. E até nomeou, como já foi dito, uma comissão de notáveis para elaborar um projeto de Constituição.

Constituinte Exclusiva versus Constituinte Congressual. Alguns setores da população defendiam a ideia de que a Constituinte a ser convocada devia ser exclusiva, ou seja, que tivesse como única tarefa escrever a Constituição, e em seguida se dissolvesse. Isso daria, aos constituintes, mais independência em relação a cobrança de eleitores e de financiadores de campanha, e seria, ainda, uma garantia de que eles não legislariam em causa própria. Mas não foi isso o que aconteceu. 

Prevaleceu a forma mais conservadora da Constituinte, a forma congressual (a mesma que fora adotada em 1891, 1934 e 1946). Em outras palavras: a Constituinte seria o próprio Congresso Nacional, eleito em 1986, acumulando as funções legislativas normais com a tarefa de elaborar a Constituição.

As eleições de 1986 deram uma vitória esmagadora ao PMDB, que explorou politicamente a popularidade que o Plano Cruzado ainda desfrutava. Elegeu todos os governadores de estado, com uma única exceção, e a maioria absoluta dos membros do Congresso: 53% da Câmara e 72% do Senado. Portanto, a Constituição que ia ser feita teria, em grande parte, a marca ideológica de um partido, o PMDB.

O Congresso Constituinte tomou posse em fevereiro de 1987. Preferiu ignorar o projeto elaborado pela comissão de notáveis e começar tudo desde o zero. E, por isso, levou quase dois anos para concluir o trabalho. A nova Constituição, que foi finalmente promulgada no dia 5 de outubro de 1988, era a sexta da história brasileira e a quinta da República.

Tornava o Brasil, pelo menos na lei, um dos países mais democráticos do mundo, assegurando, aos brasileiros, um enorme elenco de direitos. Entretanto, os constituintes deixaram para um plebiscito decidir entre República e Monarquia, e entre presidencialismo e parlamentarismo. A votação se deu no dia 7 de setembro de 1993 e venceram a República e o presidencialismo.

Além disso, os constituintes também tinham previsto que, depois do plebiscito, haveria um período de reforma constitucional, para facilitar a aprovação de mudanças na Constituição. Mas quando chegou o momento, o país vivia a ressaca do impeachment de Fernando Collor, e não houve condições para discutir as reformas. E perdeu-se a oportunidade de fazer mudanças que mais tarde se revelaram indispensáveis, porém em condições muito mais difíceis.

5. Outros planos contra a inflação

Passadas as eleições de novembro de 1986, o governo se apressou em corrigir o Plano Cruzado, que vinha sendo minado pela volta da inflação e pelo desabastecimento. E fez o Plano Cruzado II. O novo plano estabelecia novo congelamento de preços, além de outras providências, mas não conseguiu evitar o agravamento da crise. Em janeiro de 1987, sem dólares em caixa, o governo foi obrigado a decretar unilateralmente uma moratória, ou seja, dar-se um prazo para o pagamento dos juros da dívida externa. Era uma péssima medida, pois prejudicava o crédito externo, além de expor o país a um vexame mundial.

Enquanto isso, a inflação continuava subindo. Em maio chegou aos 23%, a mais alta já registrada num único mês em toda a história do país. Sarney mudou o ministro da Fazenda, que passou a ser Luís Carlos Bresser Pereira. O novo ministro trabalhou sigilosamente num novo plano para conter a espiral inflacionária. O plano, conhecido como Plano Bresser, foi anunciado no dia 12 de junho de 1987, que entre outras medidas:

  • estabeleceu um novo congelamento, válido por três meses e substituiu o gatilho salarial por um reajuste trimestral;
  • liberou os preços da carne de primeira, para que o produto reaparecesse no mercado. cortou o subsídio do trigo (o que fez aumentar o preço do pão e das massas);
  • limitou o salário dos funcionários públicos e proibiu novas contratações, entre outras providências.

Bresser Pereira voltou atrás na moratória. Retomou as negociações com os credores, pagou parte dos juros atrasados em troca de novos créditos.

A inflação, entretanto, não dava tréguas. No final de 1987, o índice anual já passava dos 350%. Sarney novamente mudou o ministro. Entrou Maílson da Nóbrega, que começou tudo de novo. Fez o Plano Verão, impondo novo congelamento, nova moeda (Cruzado Novo) e novas promessas.

Mas o governo já estava completamente desmoralizado e ninguém mais levava a sério os planos de estabilização. O presidente sabia disso, e tudo o que ele queria era ganhar tempo e evitar o colapso da economia antes do final do mandato. O descontrole da economia (e da administração pública) chegou a tal ponto que a inflação alcançou 85%, em março de 1990, o último mês do governo Sarney.

Com a alta da inflação, o governo se via obrigado a lançar
cédulas com valores cada vez maiores.

6. A sucessão de Sarney

A Constituição de 1988 introduziu as eleições em dois turnos, novidade que seria testada já nas eleições presidenciais de 1989. O segundo turno seria disputado pelos dois candidatos mais votados no primeiro, desde que um dos candidatos não atingisse maioria absoluta (metade mais um dos votos válidos). Era bom que fosse assim, porque havia muitos partidos políticos e eram muitos os interessados em sentar-se na cadeira presidencial. Se a eleição se decidisse num só turno, haveria o risco de que o candidato vitorioso fosse eleito com uma parcela pequena dos votos, o que lhe retiraria a indispensável força política.

Na sucessão de Sarney, havia nada menos do que sete candidatos com chances de serem eleitos: Leonel Brizola (PDT), Luís Inácio Lula da Silva (PT), Ulysses Guimarães (PMDB), Paulo Maluf (PDS), Mário Covas (PSDB), Aureliano Chaves (PFL) e Guilherme Afif Domingos (PL). Havia mais 15 candidatos apresentados pelos pequenos partidos.

E foi justamente dentre os pequenos partidos que emergiu a surpresa da campanha, que ficou por conta de Fernando Collor de Mello, um político oriundo de Alagoas. Havia sido prefeito nomeado de Maceió e governador eleito de Alagoas. Quando se aproximaram as eleições presidenciais de 1989, junto com alguns amigos, ele fundou um novo partido, o PRN (Partido da Renovação Nacional) e se lançou à campanha.

Collor aparentemente não tinha chances: provinha de um estado pequeno e pobre, não tinha o apoio de um partido político importante, e era muito moço - tinha menos de 40 anos. Apesar disso, ele logo conquistou a simpatia de uma grande parcela do eleitorado. Não é difícil explicar esse sucesso.

Collor apresentava-se como o antipolítico, e isso sempre agrada aos eleitores, que desconfiam dos chamados políticos profissionais. E centrou sua campanha no combate à corrupção, outra tecla de agrado popular.

Como governador, havia conquistado a fama de “caçador de marajás”, como eram chamados os funcionários públicos que recebiam altos salários, e isso lhe deu uma certa credibilidade. Além disso, Collor sabia explorar o marketing político, ou seja, fazer e dizer coisas que agradam o eleitorado, tais como: mostrar dinamismo, fazer promessas demagógicas, pronunciar discursos inflamados.

Graças a esses e outros elementos, tais como a personalidade carismática e o sucesso junto ao público feminino, Collor subiu rapidamente nas pesquisas. E tão logo mostrou ser o único com condições de vencer Lula e Brizola, passou a ser apoiado pela TV Globo e a receber doações de empresários.

Collor e Lula foram os dois candidatos mais votados e credenciaram-se para disputar o segundo turno. Lula foi apoiado pelos partidos de esquerda (PCB, PC do B, PSB); por setores progressistas do PMDB e do PSDB; por setores intelectualizados da classe média e por uma parcela importante da Igreja; pela CUT (Central Única dos Trabalhadores); e por Leonel Brizola, dono de muitos votos, pois havia sido o terceiro colocado no primeiro turno.

Collor, por sua vez, recebeu o apoio de grande parte do empresariado, dos partidos de direita (PFL, PDS, etc.), de setores mais conservadores do PSDB e do PMDB e de importantes líderes sindicais de São Paulo, entre eles Medeiros e Magri. Collor recebeu votos de todas as classes sociais, sobretudo do eleitorado pobre, a quem o candidato chamava de “descamisados”. E contou com o apoio da TV Globo, que foi um fator decisivo na campanha.


Eram duas candidaturas radicais, extremamente diferentes, e que provocaram uma polarização ideológica do eleitorado. As fortes diferenças entre os candidatos levava muitos eleitores a votarem num deles para evitar a vitória do outro, daí que ambos tinham altos índices de rejeição. Como sabemos todos, Collor venceu e, no dia 15 de março de 1990, tomou posse na presidência da República, substituindo José Sarney. 

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