terça-feira, 11 de agosto de 2015

DO TRABALHO ESCRAVO  AO TRABALHO ASSALARIADO


NOS  CAFEZAIS  PAULISTAS,  OS  'ESCRAVOS  BRANCOS'

Arquivos suíços mostram que imigrantes chegavam ao Brasil com dívidas 'impagáveis'. Jamil Chade, 
(http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,nova-noticia,1740669. Acesso em 08 Agosto 2015)

A longa transição da economia brasileira de um modelo escravagista para a abolição criou situações inesperadas aos próprios europeus que, por anos, haviam financiado e lucrado com o tráfico de africanos para as Américas: o surgimento de “escravos brancos” nos cafezais brasileiros.  

Documentos dos arquivos diplomáticos suíços obtidos pelo Estado revelam que milhares de imigrantes que chegaram ao Brasil para trabalhar nas fazendas de café acabaram se transformando, na opinião de seus governos, em “escravos”. Os casos abriram uma crise diplomática entre a Suíça e o imperador d. Pedro II, além de revoltas em algumas fazendas e a emissão de um decreto no país alpino proibindo os suíços de emigrarem para o Brasil. 

A situação, porém, não foi criada apenas pelos fazendeiros brasileiros, mas também pelos governos locais na Suíça, que levaram milhares de pessoas a optar pela emigração como forma de resolver os problemas internos de pobreza que sofriam as regiões rurais do país. Para isso, fizeram empréstimos a idosos, crianças órfãs e até para cegos que, com seu trabalho no “Novo Mundo”, teriam como quitar as dívidas. 

O centro da crise foi o sistema de parceria promovido pelo senador Nicolau Pereira de Campos Vergueiro. Diante da decisão do Reino Unido de proibir o comércio de escravos entre a África e a América em 1845, o preço dos escravos africanos explodiu e passou-se a buscar alternativas. Uma delas foi o sistema criado na Fazenda Ibicaba, em Limeira (SP), em que europeus foram convidados a se mudar ao Brasil para trabalhar. Eram os colonos.

Para chegar aos potenciais interessados, a empresa do senador, a Vergueiro & Cia, multiplicou escritórios pela Europa para oferecer o esquema de trabalho. Representações foram estabelecidas em Portugal, Alemanha e Suíça. A oferta parecia generosa para os agricultores em uma situação complicada na Europa: a passagem e parte dos custos seriam cobertos pelos empresários e os suíços pagariam essas despesas ao longo de meses, com trabalho.

O que rapidamente os colonos suíços descobriram é que haviam se transformado em escravos, com dívidas impagáveis. Tinham de comprar a comida dos fazendeiros, pagar pela hospedagem e eventuais remédios, além da passagem em navios até o Brasil. Além disso, a empresa que os trazia, a Vergueiro, cobrava uma taxa de juros de 6%. Não demorou para que o governo suíço pedisse esclarecimentos por parte do Brasil e até apelar ao “humanismo de d. Pedro II”.

‘Generosidade’. No dia 8 de junho de 1857, o cônsul da Suíça no Rio de Janeiro, Henri David, alertava o Itamaraty sobre a situação em uma carta com tom acusatório. “Alguns ambiciosos pensam em introduzir no Brasil a servidão dos brancos para substituir a escravidão dos negros”, atacou.

Segundo ele, foram os “próprios agentes diplomáticos do Brasil no exterior que protegeram os esforços para se obter colonos” e Berna teria “confiado na generosidade do Brasil”. Mas, de acordo com o diplomata, os suíços que optaram por emigrar estavam sendo “oprimidos em São Paulo”. 

Numa carta de 2 de dezembro de 1857, o Conselho Federal suíço – o Poder Executivo – exigiu uma solução para a crise ao ministro do Império, Pedro de Araújo Lima, o Marquês de Olinda. Lembrando que muitos dos imigrantes descobrem a “desilusão” ao chegar ao Brasil depois de terem sido convencidos por “ofertas brilhantes”, o governo suíço apelava à ajuda do Rio de Janeiro. “Ficamos emocionados com a descrição do sofrimento de nossos concidadãos”, apontou a carta. 

O texto se queixava do fato de que, apesar de pedidos feitos antes por diplomatas suíços, “os resultados ainda se fazem esperar”. “Não podemos perseverar num silêncio”, indicou. 

O governo apontava que, em três ou quatro anos de trabalho, as dívidas dos colonos dobravam. “Esse resultado diz mais que qualquer outro argumento”, afirmou. “Pedimos a intervenção poderosa do governo de Sua Majestade o imperador (d. Pedro II), para que os colonos suíços contratados pelos senhores Vergueiro et Cie sejam liberados de sua escravidão e transportados para terras do Estado”, apelava o governo suíço.

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Fazenda Ibicaba.
Naquele mesmo ano, na Fazenda Ibicaba, uma revolta dos colonos suíços deixaria claro o mal-estar e seria um primeiro sinal dos problemas que o modelo de produção poderia enfrentar.


Sem efeito. O apelo não surtiu efeito. No dia 5 de abril de 1859, o cônsul da Suíça no Pará, L. Brélaz, enviava uma nova carta ao governo em Berna para “denunciar as condições dos emigrantes suíços no Brasil”. 

“A abolição do tráfico de escravos neste império torna cada vez mais sensível a falta de braços para a agricultura e outros setores da indústria e a necessidade de buscar a imigração estrangeira”, explicou. Segundo ele, os colonos nada mais eram do que pessoas “empregadas por especuladores”.

Um ano depois, a situação ganhava contornos de uma crise diplomática sem precedentes na relação entre os dois países. Para vistoriar a situação dos emigrantes, o Parlamento suíço decidiu enviar ao Brasil o deputado Jacob von Tschudi. Ao retornar a Berna e apresentar seu informe no dia 6 de outubro de 1860, sua descrição das condições aterrorizaram a imprensa local, e obrigou o governo a impedir o fluxo de suíços ao Brasil.

Mas, para a surpresa de muitos no governo, o deputado apontaria que a culpa não era apenas do Brasil. Parte da responsabilidade seria também dos governos de cantões, como Unterwalden, Grisons e Argovie. Entre 1798 e 1850, cerca de 100 mil suíços abandonaram o país para emigrar pelo mundo. Para as autoridades, financiar a saída dessas pessoas chegava a ser mais vantajoso do que buscar soluções. “Essa medida teve para os colonos um impacto funesto”, escreveu Tschudi. 

O relator aponta que os problemas iam além e que os governos suíços de cada um dos cantões também adotaram práticas “deploráveis”. “Para se livrar de indivíduos incapazes, eles os ajuntaram aos que iam partir e mesmo a outras famílias”, escreveu o relator.

Fortuna.  Tschudi, porém, deixa claro que os suíços que foram ao Brasil sem a carga de dívidas conseguiram se transformar em “homens ricos”. “A melhor prova de que nem todos os colonos estão fortemente endividados é o fato de que quase todos aqueles que viajaram sem empréstimo já estão livres (de seus fazendeiros) há vários anos”, indicou. 

Segundo o relator, aqueles que conseguiram trabalhar “possuem no momento presente e sem exceção uma bela fortuna, já que na Província de São Paulo todos os homens trabalhadores e que não mergulham em dívidas acham uma forma de ganhar dinheiro e fazer fortuna”. 

Até o fim dos anos 1870, o sistema havia terminado diante dos problemas e conflitos que gerava. A situação chegou a ser tratada por Sérgio Buarque de Hollanda, que indicou que o sistema pode ter fracassado por conta de os fazendeiros “não entenderem as finalidades do trabalho livre”, o que também explicava a longa tradição escravista.

O historiador brasileiro traduziu nos anos 50 uma obra de Thomaz Davatz, um líder religioso suíço, que havia feito um relato daquela situação vivida por seus concidadãos. Parte da “desilusão” dos suíços, porém, estava relacionada com o fato de a promessa de se transformarem em proprietários não ter vingado. 

Em 1933, Mário de Andrade chegou a considerar o livro de Davatz como um dos mais importantes para se entender a história social do Brasil. Para ele, a obra seria a “primeira a revelar especificamente a luta de classes e reivindicações proletárias no Brasil”.

Estimativas apontam que o senador Vergueiro e seus filhos enriqueceram importando 60 mil imigrantes. Os mesmos que fizeram parte de uma parcela da construção econômica do Brasil e da miscigenada sociedade de um País em formação naquele momento. 


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