terça-feira, 8 de julho de 2014

VIVER PARA CONTAR: LEMBRANÇAS DE UM MOCHILEIRO

VIVER PARA CONTAR: LEMBRANÇAS DE UM MOCHILEIRO

Numa manhã ensolarada de janeiro de 1971, quando eu ainda era um garoto que amava os Beatles e os Rollingstones, saí de São Paulo com destino ao Chile. Pretendia ver de perto a experiência de socialismo com democracia do presidente Salvador Allende. Levava comigo umas poucas roupas numa mochila, um saco de dormir, algum dinheiro e um desejo grande de aventura. A intenção era viajar de carona, e de fato assim foi. Relato, a seguir, alguns momentos dessa viagem, que durou dois meses.
Segui sem pressa, parando aqui e acolá e, cerca de dez dias depois, cheguei a Buenos Aires, depois atravessar o Rio da Prata, tendo partido da cidade uruguaia de Colônia del Sacramento. Em Buenos Aires, fiquei chocado ao saber que o metrô tinha sido inaugurado em 1913. Isso mesmo: 1913!
Pretendia ficar uns dias na capital portenha, mas as coisas não correram bem, e caí fora na primeira oportunidade. Fui para a estrada para percorrer a Argentina no sentido leste-oeste, atravessando a região dos pampas.
A primeira parada foi em Rosário, uma cidade localizada na margem direita do Rio Paraná. O acaso me levou até a casa de uma família argentina que me recebeu com grande simpatia. Eram pessoas modestas, mas fizeram questão de me oferecer um bom jantar, acompanhado com o melhor vinho que eles tinham, e até convidaram alguns vizinhos. Foi um momento festivo, muito agradável. O dono da casa, um senhor já passado dos sessenta anos, socialista fervoroso, tomou gosto pela minha aventura e se dispôs a ir comigo. A esposa, porém, não concordou: - Mi viejito, estos son cosas para los jóvenes..., disse, carinhosamente, para o marido.
No dia seguinte eu estava na estrada novamente (foto). Peguei uma carona até Córdoba, uma cidade muito bonita com a qual me encantei instantaneamente. Consegui me hospedar numa república estudantil e decidi que ia permanecer uns dias por ali. Gostei particularmente da cafeteria. Achei o máximo sentar-me a uma mesa na calçada para tomar o cafezinho, que vinha acompanhado de uns cubinhos de açúcar.  
Tudo ia muito bem, mas no terceiro dia uns policiais me abordaram e me convidaram para acompanhá-los até a delegacia. Após um breve interrogatório, levavam-me para um presídio, enquanto iriam fazer investigações a meu respeito. Foi o que me disseram.
O presídio era uma construção térrea, com um pátio central, ladeado de celas, que curiosamente permaneciam abertas. Ali havia presos comuns e presos políticos, juntos e misturados. Os presos políticos eram “montoneros”, pertencentes a uma organização que lutava contra o regime militar. O país dos hermanos também vivia sob uma ditadura.Naquela época as ditaduras estavam se espalhando como uma praga na América Latina.
Distraia-me ouvindo os “montoneros” discursando sobre política para os presos comuns. Enquanto isso, fiz amizade com um detento, que, segundo me disse, ganhava a vida como batedor de carteiras. Ele gostava do Brasil e conhecia bem o Rio de Janeiro. Até sabia de cor letras de músicas brasileiras. Era um figuraço! Foi com ele que fiquei sabendo da existência do “lunfardo”, uma linguagem formada de gírias, quase um dialeto, muito comum nos portos da região do Prata. Quando chegou a hora do recolhimento, acomodei-me numa cela, meti-me no meu saco de dormir e tive uma noite muito tranquila.
Fui libertado exatamente 24 horas depois de ter sido detido. Sem perda de tempo, passei na república estudantil, peguei minhas coisas e fui para a estrada. Estava com sorte: consegui carona com um caminhoneiro muito simpático, que ficou feliz por ter companhia, enquanto trafegava pela paisagem monótona da extensa planície. Viajamos a tarde toda e, quando já começava a escurecer, chegamos a um ponto em que a estrada fazia uma bifurcação. Ele parou o caminhão e me disse: - Aquí, tienes que bajar. Yo seguiré por la derecha, pero tu, que te vás para Chile, tienes que seguir por la izquierda.
Ele me disse que caminhasse na direção indicada, que logo encontraria uma cidade. Agradeci pela carona e me pus a caminhar. Já anoitecia quando cheguei à tal cidade, que na verdade, de tão pequena, era pouco mais do que um povoado. Procurei o hotel, o único do lugar, mas me informaram que não havia mais vaga disponível. Não devia ser verdade. O mais provável era que o atendente não tinha gostado do meu jeitão.
Bem, saí andando, meio sem rumo, até chegar a uma pracinha e ali me sentei num banquinho. Precisava pensar no que fazer. O problema número um era: onde passar a noite? Não demorei para pensar numa solução, que me pareceu um tanto óbvia: procurar a delegacia e pedir que me deixassem dormir ali. A ideia se mostrou muito acertada. O delegado me recebeu gentilmente e disse que eu podia, sim, passar a noite numa das duas celas da delegacia, que, por sinal, estavam vazias.
Mas eu não ia ficar sozinho, felizmente, pois daí a pouco chegou um indivíduo pedindo para pernoitar. Era um argentino aparentando bem mais de 60 anos e que se declarava um andarilho convicto. Achei aquilo legal, e entabulamos uma animada conversação. Foi então que aconteceu algo absolutamente inesperado: por volta das 21 horas, o delegado nos chamou para tomar um chá com ele. Fiquei encantado com aquilo. Ficamos ali bem mais de uma hora, dentro de uma delegacia, mantendo uma conversa civilizada, que em nada lembrava que o país vivia sob uma ditadura. Bem, mas chegou a hora de dormir. Eu procurei meu canto e me acomodei. Metido no meu saco de dormir, pus-me a matutar na coisa surpreendente que era aquela minha aventura, sujeita totalmente ao acaso e que a cada instante me reservava momentos inesquecíveis. Já havia percorrido um pouco mais de três mil quilômetros. E pensar que eu ainda não tinha chegado nem no meio da minha viagem!
(São Paulo, 2014)


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